segunda-feira, 30 de março de 2015

Vou ver o mar

Manuel Matias


Nesta fase mais avançada da vida, tenho oportunidade de viver momentos felizes, que não custam dinheiro e criam em mim um espírito sereno, de confiança e esperança no futuro. O benefício de tudo isto ajuda-me a melhor conviver com todos aqueles com quem me relaciono e sobretudo os que me estão mais próximo.
Quando chega a primavera, vou ver o mar.
Quando chega a primavera, vou ver o mar que, quando está calmo me enche de ânimo e transmite serenidade.
Esta viagem à praia é apaziguadora em momentos de algum stress. Neste período fico contente e gosto muito de passar pelos campos agrícolas e ver que os agricultores, sem cometerem qualquer transgressão, com os seus tractores revolvem a terra para as próximas culturas.

No inverno, aprecio o silêncio de minha casa e contemplo alguns recantos mais significativos que me transmitem boas e antigas recordações.

Manuel Matias ©2015,Aveiro,Portugal

sábado, 28 de março de 2015

Observo em Silêncio


Lourdes Lameiro


Sou muito admirada e contemplada, por vezes por longos minutos. Algumas pessoas não resistem e entram, mesmo que não comprem nada! Outros não desgrudam do vidro, fazem contas à vida.
Quando lhes encho as medidas, com a moda e os preços, divirto-me com os comentários. As vozes para mim são poesia.
Sou montra de loja, só me vestem do
que há de melhor na casa.
Uns comentam, está muito bonita, outros dizem é muito caro, volto quando chegar a época dos saldos. É uma animação.
Dou alegria e dinamismo às cidades, com as minhas luzes de várias cores. Pelo Natal sou a alegria dos miúdos e graúdos.
Quando colam no meu vidro papéis, a anunciar, por exemplo, formas de pagamento, eventos que se passam na cidade, as pessoas não resistem, mudam de passeio para ler e satisfazer a sua curiosidade. Ficam mais informadas, aproveitam para me ver melhor e eu fico feliz.
Todas as semanas me vestem com coisas novas, sempre diferentes!...Sou muito mimada, sempre muito limpa e brilhante.Sou montra de loja, só me vestem do que há de melhor na casa.


Lourdes Lameiro ©2015,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 26 de março de 2015

Transgredi

José Luís Vaz 

Num campo apaziguador transgredi e decidi construir uma casa. A ideia não surgiu ao deus-dará: dali era soberba a vista para o mar. Revolvi terra e mais terra empedernida com calhaus e, com calma, depois do campo limpo, iniciei a construção.
... implantei uma hortinha
Local muito silencioso fazia as delícias de quem ali relaxava, desfrutando aquela imensidão de mar. A contemplar em tal silêncio era vulgar o descambar para uma serena sesta, fazendo parecer a quem passava, tratar-se de um pelintra. Era de facto um local apaziguador parecendo ter fugido ao mundo real que cada vez mais insiste em transgredir a uma vida com qualidade.

Mas, não se pode ter tudo e, daí, era necessário ter proventos para subsidiar as mais valias consumidas com este novo prazer. Na parte de trás da casa, mais uma vez, transgredi, e no meu terreno e em mais dois metritos que subtraí, sem querer, é claro, ao vizinho, implantei uma hortinha.

José Luís Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 24 de março de 2015

Mulher serena e viva

Elsa Borges

Olhava, fascinada, o mar a revolver a areia que bordejava a costa.
O fragor das ondas contrastava com o calmo e silencioso lugar onde a sua casa, simples, muito branca e airosa, rodeada de cambiantes verdes, pontilhados por múltiplas cores, punha uma nota de frescura e vivacidade.
Mulher serena e viva
Contemplar as duas paisagens, que se abriam à frente dos seus olhos, exercia sobre ela um efeito apaziguador.
O campo, mais contido, dava-lhe uma serenidade, sempre renovada, pela sequência cromática e harmoniosa que as diferentes estações do ano imprimiam à natureza.
O mar, revolto, sempre a transgredir, desafiando constantemente o areal, ora ameaçando tantas vezes aqueles que no seu seio buscam o pão, ora oferecendo-se, manso e belo, na exuberância dos seus azuis, incutia-lhe energia e desafiava-a a ousadias e aventuras.
Os efeitos de ambos faziam de si o que era: serena e viva, interrogadora e contemplativa. Enfim, uma mulher rica de espírito e impregnada de uma beleza imortal, obra da natureza.   

Elsa Borges ©2015,Aveiro,Portugal

domingo, 22 de março de 2015

Utilizando palavras

Albertina Vaz


Era aquela a casa. Não havia dúvida nenhuma. Recortava-se, silenciosa, no horizonte.
...revolvendo páginas e acontecendo
contos 
Há anos que ali não vinha, mas ela lá continuava – mais degradada mas sempre apaziguadora.
Olhei em frente e vi o mar – em tons vermelho acinzentados, assemelhava-se a um vulcão em plena ebulição.
À minha memória regressaram vontades antigas de transgredir – virar as costas e embrenhar-me espuma adentro, sem rumo e sem horas. Do outro lado um campo imenso de papoilas gigantes emergia tingindo de vermelho as ondas salpicadas de sal.

Deixei-me teimosamente ficar ali, revolvendo páginas e acontecendo contos. Estava a escrever de novo e contemplava aquela folha em branco que se enchia de sons e símbolos. Na bruma da tarde a calma instalava-se serenamente.

Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 19 de março de 2015

MEU PAI

Maria Celeste Salgueiro





Levavas-me contigo a passear,
Em volta , a Primavera toda em flor;
Ensinavas-me a ver, a decifrar
A alma do jardim a arder em cor!

Descias ao meu nivel p´ra brincar
Como duas crianças sem temor;
Tinhas sempre uma história de encantar
Que eu gostava de ouvir em pormenor!

Partiste mas ainda estás presente;
Ensinaste-me o bem e a verdade,
A nunca desistir, ir sempre em frente

Teu exemplo de vida ecoa forte,
Teu amor está comigo na  Saudade,
Serás sempre o meu guia e o meu norte!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 13 de março de 2015

A MINHA MÁGOA

“Passamos a vida desperdiçando vidas” – Mia Couto


Maria Celeste Salgueiro


Sinto mágoa daquilo que não sei!
Mágoa de ter vivido sem viver,
De me lembrar de tudo o que olvidei,
De ter sofrido sem saber sofrer!

Mágoa das alegrias que gozei
E não soube gozar nem fiz render;
Mágoa de toda a luta que encontrei
E não tive coragem p´ra vencer!

Mágoa de ter mentido sem mentir,
E ter ditto a verdade sem saber
Que era verdade o que dizia a rir!

Mágoa de ter chorado sem chorar,
De acreditar e, afinal, não crer,
De ter amado sem saber amar!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 10 de março de 2015

PALAVRAS QUE EU GOSTO

Clavel


Gosto de palavras alegres, com raiz dirigida à seiva
que rejuvenesce o chão;
palavras de húmus e luz, que sejam na leiva
prova da sementeira e canção,
palavras que abram sorrisos e meiguice,
que drenem o sonho, a aventura
e, com fartura, imponderada dose de patetice.
Gosto dos verbos semear, nascer, crescer, florir, frutificar
que evocam o trilho da máquina a perfurar.
Gosto dos substantivos: libido, beijo, seio, mamilo, peito,
que dão conteúdo e saúde ao verbo namorar
por acaso ou com respeito, consoante a moda.
Gosto do engenho e do vocábulo moinho
em que pedra sobre pedra roda                            
Gosto de ter sede...
e mói e remói sem rodar contrafeito
sem perguntar ao grão se magoa muito
ou se goza poucochinho.
Gosto do perfume do rosmaninho
sem ofensa de outras flores e da rosa
ao sopro da brisa que ameniza o calor.
Gosto de ter sede e beber água e vinho
com euforia e a prosa
de um convincente sedutor.
Gosto de subir, subir bem alto, ao cume,
ficar na harmonia da liturgia da poesia
em sintonia com rimas de filosofia
viver o encantamento, a folia e a fúria do mar
e a mansidão da ria, alongada, a meditar.
Gosto de cumprir a promessa na romaria
com sumo de melancia e doce de aletria.
E, na vez de problemas de geometria,
que obrigam muito a matutar,
gosto do melro na folhagem do azevinho,
a refazer o ninho
com o jeito e o direito herdados da mãe.
Gosto das palavras alegres.
Porquê? Não aposto. Não sei de quem.
São palavras que eu gosto.




Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de março de 2015

“A obediência está escrita na curva das suas costas” – Mia Couto

Albertina Vaz

Passou a vida no corredor. À espera.
Menina de olhos tristes e ar sereno. Intranquila. Senhora da sua vontade e dona da sua
Menina de olhos tristes e
olhar sereno
vida. Ao lado dos outros meninos era pequenina e saltitante, como uma bola de sabão a deslisar ao sabor do vento. Teve, em tempos, um irmão que lhe pregava rasteiras e a fazia estatelar-se no chão. Um irmão mais velho, mais forte e homem.
Naturalmente tomava a dianteira, como todos os homens lá em casa. Quando saía ele acompanhava o pai, ela, obedientemente, caminhava atrás, com a mãe e as outras mulheres da casa. A obediência nunca fora a dominante da sua personalidade. Mas ia, ou tinha de ir. Aproveitava para pontapear uma pedra ou saltar um charco onde a luz se espalhava. E ouvia sempre alguém chamar-lhe rebelde. Por vezes excedia-se e sujava tudo à volta.
E, de castigo, ficava de pé, no corredor. Até que a ira lhe passasse, até pedir desculpas.
O pai preocupava-se - criança rebelde que não faz o que lhe mandam, tem de ser dobrada!
obedientemente, continuava à
espera, no corredor...
A vida ensinou-a a crescer e a rodopiar por entre as curvas do sol, enganando os pingos de chuva que se mesclavam com a vontade de ter vontade própria. A juventude abriu-lhe horizontes e mostrou-lhe caminhos diversos - aprendeu nos livros que havia gentes que pensavam e que sabiam o que queriam. Ela sabia o que queria também, mas, obedientemente, continuava à espera, no corredor, que a sua vez chegasse.
Um dia deixou de ser menina e achou-se mulher. Puseram-lhe um véu na cabeça, vestiram-na de branco e achou-se bonita. E veio um homem, um outro homem que lhe falou de sonhos e de desempacotar a vida. Pegou-lhe na mão. Fez-lhe promessas, criou-lhe desejos e jurou-lhe uma submissão diferente. Ainda tentou resistir mas voltou a deixar-se ir, a obedecer, a subir a escada depois do homem que lhe falava da cor e da esperança. Na sua cabeça martelava a voz do pai: a mulher tem se submeter à vontade do marido, aceitando e suportando tudo em nome da família.

terça-feira, 3 de março de 2015

Na amplidão do meu ser

Fernanda Reigota

Regresso ao mar: simplesmente o mar!
Na amplidão do meu ser,
ser eu por inteiro,
ver-me acontecer!
No mar e na sua vastidão
o meu reflexo
transgride-me
revolve-se
insurge-se
despedaça-se
não conhece submissão.
Já exausta
uma onda calma banha meus ímpetos:
e a maré cheia de silêncio apazígua-me.
Bendigo
cada partícula de ar que respiro,
cada sorriso que recebo,
cada abraço que desejo,
cada flor prometida,
cada canto de pássaro,
cada tom quente da alvorada,
cada salpico de sal que me atinge…

Olho para além do meu reflexo
e fixo a casa do meu ser no campo de mim:
vida com balizas, vida demarcada, vida com estações,
vida com opções, simplesmente a vida.
Regresso ao mar: simplesmente o mar!

Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

domingo, 1 de março de 2015

“Abre os armários, arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela.” - Mia Couto

Conceição Cação

A decisão estava tomada, nada nem ninguém poderia alterá-la. Acabava ali a luta sem tréguas travada anos a fio. Estava exausta, mas sentia-se finalmente apaziguada, liberta. Na mente iluminada por uma lucidez que há muito não experimentava o plano começou a desenhar-se.
Os caixotes guardados na arrecadação, após a mudança ainda tão recente para aquela casa, foram descendo para a sala e ali ficaram perfilados como servos fiéis, aguardando com expectativa o seu novo destino.
Lenta, mas regularmente, como um autómato, foi depositando neles as roupas elegantes, os livros, as louças, fotografias, recordações de viagens… Enfim, todos os objetos que a tinham rodeado, mas que já não sentia como seus. Foi sem emoção que
Foi sem emoção que reviu a coleira
colocou num cantinho uma coleira da Golden Retriever de pelo de seda e olhar doce, agora numa casa a que ainda não se habituara, recordando com saudade os passeios com a dona, o Espera um pouco que a mamã já vem quando tinha de esperar à entrada duma loja Foi com a mesma indiferença que  depositou num pequeno cofre os vários diplomas e com eles todo o sucesso académico e profissional, os documentos, as recordações mais íntimas, os laços de ternura sempre tão  fácil e bruscamente desatados…
          O dia acordou radioso, o sol da manhã inundou-lhe a casa. Que importava? – o coração carregava o outono mais sombrio, toda a melancolia daquele novembro que estava prestes a despedir-se …  Iria fazer o que tinha de ser feito. Mas não era ainda o momento: demasiada luz, muito bulício… O ritual requeria recolhimento, confiar-se-ia às sombras da noite.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

..." a casa só é nossa quando é maior que o mundo" - Mia Couto

Lindonor Silveirinha 


Arrumou o carro e, depois de o trancar, dirigiu-se a casa. Era um primeiro andar numa rua calma e, àquela hora, quando a noite se aproximava, não se via ninguém.
Abriu a porta, que estava devidamente trancada com duas voltas da chave e procurou o interruptor às escuras. Fez-se luz. Fechou novamente a porta, poisou a mala e só então sentiu que estava em casa.
Passara uns dias com uma familiar em Lisboa e, agora, estava de volta. A primeira sensação foi de solidão. Não havia ninguém para a receber. A cadelita, sua fiel companheira tinha morrido e a pouca família que restava, vivia longe. Sentiu um arrepio de frio e tratou de abrir as luzes o que a fez sentir-se mais confortável. Dirigiu-se à salinha de estar e ligou a televisão para ouvir vozes.
....a sua casa era maior que o mundo
Então sentou-se na sua cadeira habitual e passou um olhar ao redor da sala. Estava tudo como deixara: a mesa de camilha com as revistas habituais; o sofá com as almofadas de renda feitas pela mãe; as cómodas com as fotografias do pai, da mãe e do irmão falecido tão cedo, os quadros nas paredes…A televisão projectava um filme e a sua atenção ficou presa numa cena de amor. Também ela vivera cenas como aquela, mas agora estava só.
A sua parente insistira com ela para que ficasse mais tempo, mas ela sentia que não pertencia ali. Não era a sua casa, não era o seu quarto. Tudo o que a rodeava era-lhe estranho. Enfim, apesar da gentileza com que era tratada, dos passeios que fazia, tinha saudades do seu cantinho, onde era senhora e mandadora. Tinha que voltar. A sua casa era pequena e singela, mas era lá que vivia as suas alegrias e as suas tristezas.
Em nenhum outro lugar se sentia à sua vontade como ali. O mundo lá fora era imenso, mas, para ela, a sua casa era maior que o mundo.

Lindonor Silveirinha ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A CAMÉLIA

Maria Celeste Salgueiro 

Ela estava ali na minha frente envolta pelo sol da manhã. Apenas uma flor, uma camélia vermelha em cima duma mesa, aberta ao meu olhar. Lembrei a sua origem asiática, o seu forte significado de flor emblemática, inspiradora de emoções, afecto e devoção.
...voltei à minha infância e adolescência
Mas não foram esses atributos que me cativaram. À volta dela tracei um círculo invisível fora do tempo e do espaço onde ela ficou presa. Ela transmitia-me paz, alegria, deslumbramento, estabelecendo uma aliança entre o passado e o presente.
Olhando-a eu voltei à minha infância e adolescência. Revi nela a cameleira centenária plantada no meu jardim pelo meu Avô e que em todas as primaveras, transbordando de cor e de beleza se transformava na rainha do jardim. As suas camélias enfeitavam a nossa casa e a nossa mesa no dia dos anos do meu Pai e à sua sombra eu brinquei e até troquei o meu primeiro beijo de amor.

Por isso, ao ver aquela camélia envolta pelo sol da manhã, com todo o seu peso simbólico que me trouxe à memória a cameleira centenária plantada pelo meu Avô, eu senti uma paz, uma alegria, um deslumbramento que me deixaram presa num círculo mágico fora do tempo e do espaço, onde o passado ficou suspenso!



Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sábado, 14 de fevereiro de 2015

INTERROGAÇÃO

Clavel
Com que flores adornarei o teu corpo
Com que palavras farei poesia para que sintas que o sol é quente
Com que fogos o olhar acenderei para te amar,- que nunca é tarde ?
Com que cores pintarei o caminho duma estrela cadente
Com que risca o céu em ímpetos de fogo, e caindo arde?

Com que flores adornarei teu corpo macio e ardente
Com que me alimentas a paixão e induzes a saudade ?
Com que água meus lábios dessedentarei na nascente
Com que cantarei a melodia da canção liberdade?

Com que pedras construirei segurança do castelo
Em que  impedirei a entrada da injustiça e da maldade?
Com que armas e ferros conquistarei o tosado velo
Com que me hei-de vestir de  tamanha felicidade?

Procuro a paz em que deporei o desejo profundo
No altar do sacrifício em que se purifique o mundo.

Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Eu, os livros e a burra

Ester Rocha Martins 


Já a chuva refrescou o monte,
Verdeja a terra transmontana,
O largo é uma imensidão de lama.
E a carga lá se vai.
Aqui apronta-se a burra,
A fiel acompanhante,
Carrega a mala de emigrante,
E alguns livros à mistura.
Seis ou sete Km de caminhada,          
O mesmo ritual,
Sempre igual.
Na lama, uma pata, outra pata,
E uma pata que não sai!...
Sopica e cai…
E a carga lá se vai.
Transborda o largo de ciência,
E eu de euforia.
Revejo a casa branca com carinho,
Guardo da minha mãe o sorriso,
E do cão o último latido.
O meu pai recolhe por inteiro
a estranha sementeira
Vamos, o comboio chega à tabela.
Olho ainda a última janela…
Assim parti.
Dos montes para Coimbra,
Numa manhã muito fria,
Com a amarga companhia
Dos livros … e da lama

Ester Rocha Martins ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Reencontro

Albertina Vaz 

   Encontrei-o há dias, escondido. Por detrás de outros bem mais corpulentos. Cheguei a pensar que o tinha perdido. Quem sabe se não o teria emprestado a alguém que por ele se apaixonara, como acontecera comigo. Quem sabe se não estaria misturado com os das crianças que tanto gostam dele. Dei por mim a afagá-lo muito de mansinho. E, sem quase querer, recordei a primeira vez que o vi: tinha mais ou menos cinco anos e fascinaram-me as cores, as formas. Não sabia muito bem o que lá estava dentro mas gostava que me falassem dele. Todas as noites adormecia a pensar por onde andaria ele e se já teria encontrado algum amigo. Invariavelmente, apanhava uma ou outra flor que guardava para, um dia, lhe dar. E, quando podia, fazia desenhos para, quando o encontrasse, alegrar o seu sorriso triste.
Procurei-o por toda a parte mas não queria encontrá-lo.
  Acho que me acompanhou por muito tempo. Até que um dia alguém me disse que aquilo era só para crianças, miúdos pequenos, que descobrem o fantástico numa esquina ou tropeçam num imaginário de fadas e duendes. Nessa época eu já não queria ser criança e guardei-o no fundo duma gaveta.
  Às vezes encontrava-o nas mãos de outras pessoas e escapava-me um sorriso – eu bem queria retomar aquela amizade mas os meus sonhos de adolescente queimavam-me os dedos e arriscavam-me a um corte definitivo naquela relação.
   Algum tempo depois, voltei a ter necessidade dele. Lembrei-me, vagamente, de que o ouvira falar de felicidade e de “preparar o coração” numa espera sem hora marcada, saboreando o momento antes, o durante e o depois. E pensei que, se calhar, aquilo não seria só de criança, se calhar havia ali uma sabedoria de gente grande num corpo franzino. E de repente deu-me uma vontade louca de voltar a vê-lo, e abraçá-lo, e devorá-lo com raivas e sonhos que via desfeitos e voltava a reconstruir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Mar Nosso

Fernanda Reigota 

O vosso dissipar da bruma cerrada

MAR!
Vieste silencioso insinuares-te a nossos pés.
Estremecemos, mas acorremos a outras marés.
Deste luta e, com trevas no coração,
Agarrámos as pepitas de água e luz.
Era a nossa criação:
Vislumbrámos-te as entranhas.

E teus areais suspensos e tuas terras odorosas e gentes estranhas.
Com as mãos crispadas muitos enfrentaram os temporais,
Com a vida outros pagaram nosso arrojo.
E nas praias sorviam o horizonte as mulheres incorporais!

ESTRELAS!
O vosso murmurar dos pontos cardeais
O vosso desvendar do mistério 
O vosso dissipar da bruma cerrada
Transpareceram
As ligações universais
As claras horas do planisfério
A necessária exaltação da TERRA REVELADA!

Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ONDE É QUE ESTAVA A POESIA

Maria Celeste Salgueiro

Era o dia nacional da POESIA. Acordei feliz, disposta a tirar o melhor partido da data e tentar encontrar a POESIA nas mais pequenas coisas.
O dia estava lindo, o sol brilhava radioso num céu sem nuvens e tudo parecia perfeito. Deixei os meus problemas fechados numa gaveta, e, de cabeça liberta, lancei-me para a rua, caneta e lápis na mão para poder anotar tudo o que me chamasse a atenção.
Comecei a procurar. A cidade estava um caos, as ruas em confusão, só buracos, pedras soltas, só poeira à minha frente. Onde é que estava a POESIA? Devia estar escondida ou mesmo até soterrada com tanta obra pendente. Fui ao jardim onde o verde transbordava em profusão. Porém só desolação havia naquele espaço com as flores a definhar e o lago escuro e baço. Onde é que estava a POESIA que não a podia achar?
Meti-me no turbilhão de ruas a abarrotar de gente muito apressada e carros sempre a
...nos olhos de uma criança
encontrei-a nesse dia!
apitar. Então vi uma criança de boné e de sacola que regressava da escola muito contente a cantar. Pegou-me logo na mão e seguimos devagar, lado a lado a conversar.
Vês estas folhas no chão? Fazem música ao calcar. Olha o sol a rebrilhar no lago do meu castelo e os cavaleiros em volta. Já viste um quadro mais belo? Olhei para o chão pasmada. O lago era água parada, baça, escura, sem ter nada. O castelo era uma pedra e os cavaleiros formigas! Reparei no seu olhar: era azul , todo candura. Vi dentro o céu e o mar e o sol nele a sorrir.

E eu que perdera a esperança de descobrir a POESIA, nos olhos duma criança encontrei-a nesse dia!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Atravessando os séculos!

José Luís Vaz


Sempre elegantes, desde as altas às mais baixotas, coabitam com facilidade em espaços variados. Quando sós, deslumbram os seus admiradores pela conformação sui generis que proporciona a cada um especular sobre as suas formas.

Já lá vai o tempo em que a natureza determinava o seu livre desenvolvimento proporcionando, quantas vezes, uma arquitectura exótica e diferenciada. Hoje, é abruptamente “fabricada”, de acordo, única e simplesmente, com critérios economicistas que tudo determinam violentando as formas livres da mãe natureza.

Existe uma grande variedade distinguindo-se, entre si, pelo desenho, pela idade, pelo
Fonte inesgotável de vida
porte, pela raridade ou mesmo pelo seu interesse histórico. Podem atingir cerca de vinte metros de altura, o que justifica forte capacidade na procura dos nutrientes necessários. Neste ciclo de luta pela subsistência e desenvolvimento acaba por, com a sua acção, tantas vezes, evitar que fortes enxurradas arrastem catastroficamente os solos, destruindo uma estrutura em que existem os elementos necessários à vida.

Necessitando muito tempo para crescer, pode viver centenas de anos. Há mesmo exemplares referenciados com cerca de dois mil anos, sendo considerada a mais antiga do mundo, uma que existe perto de Tavira.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Manuel Sortudo - uma história quase verídica...

Graciete Manangão


O Manel era um jovem e dinâmico agricultor. Lavrava e cultivava quase todas as terras disponíveis, na sua aldeia, quer fossem suas ou não. Tinha investido em modernas máquinas agrícolas. Era muito requisitado para fazer todo o tipo de trabalhos de lavoura por quem o não podia fazer. Além disso, tinha uma ordenha mecânica que lhe dava um
um "empresário agrícola"
rendimento mensal razoável. Constava-se até que recebia subsídios do Estado para manter toda a sua actividade agrícola. Era o que se poderia dizer um “empresário agrícola”.
Estava casado, desde os 22 anos, com Bina, uma bonita e vivaça feirante. Sempre bem disposta e incansável, “fazia” mensalmente, durante todo o ano, fizesse chuva, sol ou vento, as feiras dos 7, dos 10, dos 12, dos 13, dos 21, dos 28, dos 29 e dos 30. Levantava-se de madrugada, em dias de feira, para preparar a carrinha fechada com todo o arsenal da tenda, incluindo os sacos de plástico enormes, carregados de mercadorias diversas.
Com toda esta azáfama diária, e porque ainda estavam no princípio da luta pela vida, Bina e o Manel resolveram adiar a chegada de um filho.
Sobrava muito pouco tempo para distrações ou passeios. Bina, aos domingos à tarde, desde que não fosse dia de feira, gostava de ir ver o mar, fazer algumas compras para casa e lanchar na pastelaria da dona Mariazinha.
O Manel, sempre que podia, ia ao “Café do Zé” beber uma cerveja ou um café e bagaço, com os seus amigos ou vizinhos. Às vezes, também jogava às cartas.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

IN MEMORIAM

José Carreto Lages


E se queres saber se doeu
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.
Não te deram  tempo nem ocasião
para a despedida que tu merecias.
A eternidade, talvez, para cumprir profecias
te levou. Mas tão formal, sem uma razão?                     
Sem  dos teus amigos um adeus
que os conformasse de arrelias
e evitasse fazer aos céus
justificada reclamação?
Se me perguntarem se a eternidade
foi justa contigo. Eu direi que não.
Que é da liberdade
de cada um viver e ter o que é seu?
Se partiste por tua vontade
E se queres saber se doeu,
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.


José Carreto Lages ©2015,Aveiro,Portugal

O Moinho

Esmeralda Dinis Assunção 


Fim de tarde. Uma pausa para uns minutos de leitura. Na capa da revista que tenho nas mãos há um moinho, em primeiro plano. Logo me veio à memória um outro moinho que conheci na infância, beirão de gema, bem perto da casa da avó Rita.
No alto do pequeno monte, sozinho, o moinho era um rei. À sua volta havia verde até perder de vista. De braços sempre abertos ao vento, corpo robusto, dominava todo o espaço que o cercava e, como um verdadeiro senhor, parecia ser ao mesmo tempo o protector daquelas terras. O caminho para chegar até ele não era fácil porque era íngreme e tinha muitas pedras.
O moinho ainda lá está no cimo do morro
O moleiro montado no seu burrico, o Moisés, lá ia sempre morro acima, levar-lhe o grão, em jeito de homenagem. Quando descia, já com os sacos cheios de farinha, vinha a assobiar de contente. É que aquele rei não tinha coroa mas tinha dentro de si o poder enorme de lhe dar o sustento, o ganha-pão. Aquele moinho representava para o moleiro a própria sobrevivência.
O moinho ainda lá está no cimo do morro. Dos braços abertos restam os paus que seguravam as velas. A porta e a janela são apenas uns buracos. Do corpo robusto do rei antigo restam as pedras resistentes. Agora já não tem poder, nem sequer é o sustento de alguém mas ele lá está como símbolo duma tradição perdida.
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