domingo, 22 de fevereiro de 2015

..." a casa só é nossa quando é maior que o mundo" - Mia Couto

Lindonor Silveirinha 


Arrumou o carro e, depois de o trancar, dirigiu-se a casa. Era um primeiro andar numa rua calma e, àquela hora, quando a noite se aproximava, não se via ninguém.
Abriu a porta, que estava devidamente trancada com duas voltas da chave e procurou o interruptor às escuras. Fez-se luz. Fechou novamente a porta, poisou a mala e só então sentiu que estava em casa.
Passara uns dias com uma familiar em Lisboa e, agora, estava de volta. A primeira sensação foi de solidão. Não havia ninguém para a receber. A cadelita, sua fiel companheira tinha morrido e a pouca família que restava, vivia longe. Sentiu um arrepio de frio e tratou de abrir as luzes o que a fez sentir-se mais confortável. Dirigiu-se à salinha de estar e ligou a televisão para ouvir vozes.
....a sua casa era maior que o mundo
Então sentou-se na sua cadeira habitual e passou um olhar ao redor da sala. Estava tudo como deixara: a mesa de camilha com as revistas habituais; o sofá com as almofadas de renda feitas pela mãe; as cómodas com as fotografias do pai, da mãe e do irmão falecido tão cedo, os quadros nas paredes…A televisão projectava um filme e a sua atenção ficou presa numa cena de amor. Também ela vivera cenas como aquela, mas agora estava só.
A sua parente insistira com ela para que ficasse mais tempo, mas ela sentia que não pertencia ali. Não era a sua casa, não era o seu quarto. Tudo o que a rodeava era-lhe estranho. Enfim, apesar da gentileza com que era tratada, dos passeios que fazia, tinha saudades do seu cantinho, onde era senhora e mandadora. Tinha que voltar. A sua casa era pequena e singela, mas era lá que vivia as suas alegrias e as suas tristezas.
Em nenhum outro lugar se sentia à sua vontade como ali. O mundo lá fora era imenso, mas, para ela, a sua casa era maior que o mundo.

Lindonor Silveirinha ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A CAMÉLIA

Maria Celeste Salgueiro 

Ela estava ali na minha frente envolta pelo sol da manhã. Apenas uma flor, uma camélia vermelha em cima duma mesa, aberta ao meu olhar. Lembrei a sua origem asiática, o seu forte significado de flor emblemática, inspiradora de emoções, afecto e devoção.
...voltei à minha infância e adolescência
Mas não foram esses atributos que me cativaram. À volta dela tracei um círculo invisível fora do tempo e do espaço onde ela ficou presa. Ela transmitia-me paz, alegria, deslumbramento, estabelecendo uma aliança entre o passado e o presente.
Olhando-a eu voltei à minha infância e adolescência. Revi nela a cameleira centenária plantada no meu jardim pelo meu Avô e que em todas as primaveras, transbordando de cor e de beleza se transformava na rainha do jardim. As suas camélias enfeitavam a nossa casa e a nossa mesa no dia dos anos do meu Pai e à sua sombra eu brinquei e até troquei o meu primeiro beijo de amor.

Por isso, ao ver aquela camélia envolta pelo sol da manhã, com todo o seu peso simbólico que me trouxe à memória a cameleira centenária plantada pelo meu Avô, eu senti uma paz, uma alegria, um deslumbramento que me deixaram presa num círculo mágico fora do tempo e do espaço, onde o passado ficou suspenso!



Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sábado, 14 de fevereiro de 2015

INTERROGAÇÃO

Clavel
Com que flores adornarei o teu corpo
Com que palavras farei poesia para que sintas que o sol é quente
Com que fogos o olhar acenderei para te amar,- que nunca é tarde ?
Com que cores pintarei o caminho duma estrela cadente
Com que risca o céu em ímpetos de fogo, e caindo arde?

Com que flores adornarei teu corpo macio e ardente
Com que me alimentas a paixão e induzes a saudade ?
Com que água meus lábios dessedentarei na nascente
Com que cantarei a melodia da canção liberdade?

Com que pedras construirei segurança do castelo
Em que  impedirei a entrada da injustiça e da maldade?
Com que armas e ferros conquistarei o tosado velo
Com que me hei-de vestir de  tamanha felicidade?

Procuro a paz em que deporei o desejo profundo
No altar do sacrifício em que se purifique o mundo.

Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Eu, os livros e a burra

Ester Rocha Martins 


Já a chuva refrescou o monte,
Verdeja a terra transmontana,
O largo é uma imensidão de lama.
E a carga lá se vai.
Aqui apronta-se a burra,
A fiel acompanhante,
Carrega a mala de emigrante,
E alguns livros à mistura.
Seis ou sete Km de caminhada,          
O mesmo ritual,
Sempre igual.
Na lama, uma pata, outra pata,
E uma pata que não sai!...
Sopica e cai…
E a carga lá se vai.
Transborda o largo de ciência,
E eu de euforia.
Revejo a casa branca com carinho,
Guardo da minha mãe o sorriso,
E do cão o último latido.
O meu pai recolhe por inteiro
a estranha sementeira
Vamos, o comboio chega à tabela.
Olho ainda a última janela…
Assim parti.
Dos montes para Coimbra,
Numa manhã muito fria,
Com a amarga companhia
Dos livros … e da lama

Ester Rocha Martins ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Reencontro

Albertina Vaz 

   Encontrei-o há dias, escondido. Por detrás de outros bem mais corpulentos. Cheguei a pensar que o tinha perdido. Quem sabe se não o teria emprestado a alguém que por ele se apaixonara, como acontecera comigo. Quem sabe se não estaria misturado com os das crianças que tanto gostam dele. Dei por mim a afagá-lo muito de mansinho. E, sem quase querer, recordei a primeira vez que o vi: tinha mais ou menos cinco anos e fascinaram-me as cores, as formas. Não sabia muito bem o que lá estava dentro mas gostava que me falassem dele. Todas as noites adormecia a pensar por onde andaria ele e se já teria encontrado algum amigo. Invariavelmente, apanhava uma ou outra flor que guardava para, um dia, lhe dar. E, quando podia, fazia desenhos para, quando o encontrasse, alegrar o seu sorriso triste.
Procurei-o por toda a parte mas não queria encontrá-lo.
  Acho que me acompanhou por muito tempo. Até que um dia alguém me disse que aquilo era só para crianças, miúdos pequenos, que descobrem o fantástico numa esquina ou tropeçam num imaginário de fadas e duendes. Nessa época eu já não queria ser criança e guardei-o no fundo duma gaveta.
  Às vezes encontrava-o nas mãos de outras pessoas e escapava-me um sorriso – eu bem queria retomar aquela amizade mas os meus sonhos de adolescente queimavam-me os dedos e arriscavam-me a um corte definitivo naquela relação.
   Algum tempo depois, voltei a ter necessidade dele. Lembrei-me, vagamente, de que o ouvira falar de felicidade e de “preparar o coração” numa espera sem hora marcada, saboreando o momento antes, o durante e o depois. E pensei que, se calhar, aquilo não seria só de criança, se calhar havia ali uma sabedoria de gente grande num corpo franzino. E de repente deu-me uma vontade louca de voltar a vê-lo, e abraçá-lo, e devorá-lo com raivas e sonhos que via desfeitos e voltava a reconstruir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Mar Nosso

Fernanda Reigota 

O vosso dissipar da bruma cerrada

MAR!
Vieste silencioso insinuares-te a nossos pés.
Estremecemos, mas acorremos a outras marés.
Deste luta e, com trevas no coração,
Agarrámos as pepitas de água e luz.
Era a nossa criação:
Vislumbrámos-te as entranhas.

E teus areais suspensos e tuas terras odorosas e gentes estranhas.
Com as mãos crispadas muitos enfrentaram os temporais,
Com a vida outros pagaram nosso arrojo.
E nas praias sorviam o horizonte as mulheres incorporais!

ESTRELAS!
O vosso murmurar dos pontos cardeais
O vosso desvendar do mistério 
O vosso dissipar da bruma cerrada
Transpareceram
As ligações universais
As claras horas do planisfério
A necessária exaltação da TERRA REVELADA!

Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

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