© Albertina Vaz
Encontraram-se num vão de
escada, disputando o espaço e meia dúzia de cartões que lhes serviam de abrigo.
Naquela noite, cada um dormiu de costas voltadas. Não apareceu ninguém com sopa
quente e as meninas das carrinhas deviam estar muito ocupadas com outros sem
abrigo de outra rua. De noite, a fome apertava tanto que se enroscaram sobre si
mesmos até adormecerem.
De manhã, acordaram
abraçados e sorriram. Ela tinha uma cara rosada, bem queimada pela aragem fria,
e um dente a menos que lhe conferia um ar extravagante e original. Ele vestia
todas as camisolas que conseguira encontrar nos caixotes de lixo que,
invariavelmente, rebuscava todas as noites. O cabelo espesso e desgrenhado e
uns olhos azuis, qual mar pardacento num fim de tarde, tornavam-no um pequeno
gigante que se gostava e se amava.
Foram dias e dias de
descobertas sem fim – ruas insondáveis, caminhos sem saída e regressos ao ponto
de partida, sempre que a noite chegava e o sol se punha. Falavam do presente e
guardavam, numa cela fechada, um passado que não queriam partilhar. E sorriam,
pedalando pela calçada deserta, num jogo de esconde e de descoberta.
À noite imaginavam presentes
para se darem.
- Tenho aqui uma casa
branquinha, com lareira acesa e uma estrela na porta da entrada – e desenhava,
no ar, os contornos dum sonho que queria materializar.
- Olha, eu tenho aqui uma
panela, cheia de sopa, e um café quentinho que vamos beber juntos. Chschschs …
Está tão docinho!
- Pois eu quero dar-te um
bolo, com passas e nozes, e um cálice de licor – e continuava desenhando no ar,
presentes imagináveis que acariciavam a noite fria.
- Para ti tenho aqui os
sonhos que a minha avó fazia e o cheirinho da canela no arroz doce que escorre
da panela. Cuidado, não te queimes.
Era a noite a seguir ao
natal.Do outro lado da rua, uma criança de colo sugava sofregamente o peito de
uma mãe que se deixava escorregar da parede ao chão. Um som vazio e um choro
chocante marcaram a realidade e destruíram a magia.
- Anda, vamos lá ver se
encontramos alguma coisa para ela comer. O menino, se ela não come, também não
tem leite e ele já está tão fraquinho. Ontem é que foi natal, hoje temos mas e
que ir à vida e mudar este mundo.
Ontem foi a noite dos sonhos
e as estrelas no céu anunciaram um caminho de luz. No mundo dos mendigos,
partilhou-se a fome e, com um pouco de nada, construiu-se o Natal de todos os
dias.
Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal