quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Prece ao Novo Ano


Maria Celeste Seabra




Mais um ano que acaba de ruir
Qual folha que o Outono derrubou;
Mais um ano que acaba de partir,
Mágoa que foi, Saudade que ficou!

Mais um ano que vem, prece a sorrir,
Pela estrada que o outro já pisou;
Mistério a despontar, a ressurgir,
Entre as sombras do ano que passou!

Ano que vens nas brumas da incerteza,
Benvindo sejas tu pela grandeza
Dum sonho que tão alto me conduz!

Veja ou não satisfeito o meu desejo,
Benvindo pela esp´rança que em ti vejo,
Esp´rança a abrir em pétalas de luz!...


Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

sábado, 27 de dezembro de 2014

Quando chegará o tempo de ouvir as crianças?!

José Luís Vaz

O verão de S. Martinho já lá vai e os dias vão diminuindo, dia após dia, criando espaço às frias e longas noites de inverno. Quase de seguida, o Dia Internacional da Generosidade, fazendo pairar no ar um tempo que faz adivinhar a proximidade de época natalícia. 

Uns começam a idealizar, outros a programar, outros fazendo cálculos e mais cálculos
Um tempo de exuberância para uns....
para melhor gerirem os seus pecúlios e, como sempre, tantos a vê-los passar… Um tempo de exuberância para uns, de desamparo para outros, mas, fundamentalmente, de uma verdadeira euforia à volta do consumo. O mundo inteiro entrega-se às tradições natalícias e sob esse auspício, em cada latitude, vive-se um tempo repleto de slogans, sempre recheados de paz, muita paz, fraternidade, caridade para uns, solidariedade para outros, Menino Jesus, Pai Natal, amizade, amor… Um verdadeiro romantismo vivido todos os anos com um, demasiado curto, prazo de validade. 

Mas... É agora tempo de Natal!
Os anos, uns a seguir aos outros, todos, ou quase todos, com trezentos e sessenta e cinco dias, são vividos, em função de rotinas obrigatórias, repressoras de excessos ou então na abundância a que o dinheiro permite chegar. Neste mundo globalizado, as desigualdades, que já o eram, são agora mais transparentes tornando mais difícil o alheamento e o desprezo pelo que se passa debaixo do mesmo céu azul, mais claro para uns e muito escuro ou mesmo praticamente negro para outros.


Mas… É agora tempo de Natal! O frenesim espalha-se, como as sementes que o lavrador lança para o solo, espevitando as vontades a um tempo de generosidade e harmonia, que até parece criar dias diferentes, como se os paradigmas da sociedade, num estalar de dedos, se tivessem alterado. Os sem abrigo, habituados aos Natais à volta da habitual fogueira gelada, agradecem agora o velho cobertor que a generosidade natalícia acaba por lhes proporcionar. Pedintes sentem nesta altura melhores compensações pelo apelo repetitivo que vão fazendo a quem passa. Desempregados, precários e escravos do ordenado mínimo, sobejamente habituados ao rigor do pouco, aventuram-se em pequenos, grandes arrojos, que mais tarde lhes sabe a amargo. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sonho

Maria Helena Linhares

Éramos um grupo de crianças, saltitante e garrido. Pertencíamos ao antigo ensino primário – da 1ª à 4ª classe.
Rapazes e raparigas, as meninas mais vistosas, mais enfeitadas, algumas com laçarotes na cabeça.
Eles, mais estouvados, empurrando-se uns aos outros, cavaqueando, ou atrás da bola que iam chutando pelo caminho...
Eram tempos felizes... mas para mim não o eram tanto. Dentro de mim havia como que um vazio, um desconforto, por um desejo tão contrariado que me provocava uma tristeza profunda, um desalento imenso!
Íamos andando rumo à escola e ia mirando disfarçadamente algumas colegas, pensando com os meus botões que elas é que tinham razões para serem felizes e rirem às gargalhadas por tudo e por nada.
Ah, se eu fosse uma delas como seria
plenamente feliz!
Mas eu era orgulhosa e não revelava a nenhuma amiga o meu sentir, a razão da minha tristeza.
Ah, se eu fosse uma delas como seria plenamente feliz!
Iria rir tanto, tanto, de boca escancarada, e adeus tristezas: — correria contra o vento, ainda mais
do que ele, andaria às voltas, de mãos ora na cabeça, ora postas nas saias para que elas não esvoaçassem... ai como eu iria ser tão feliz! Mas não, a minha mãe explicava, desdobrava-se em fazer-me compreender o incompreensível, mas qual quê? Quanto mais o fazia, menos eu compreendia. Porque não podia ser como a Celina, a minha vizinha? Seria fácil, tão fácil, eu prometia portar-me muito bem, estudar mais, mais isto mais aquilo...
Não! Não sejas teimosa e cala-te! O assunto morreu aqui! Não há mais conversa!

sábado, 13 de dezembro de 2014

O meu brinquedo

Maria Jorge

Era uma noite de outono e o frio já começava a ameaçar que tinha vindo para ficar. Era urgente ir chamar a ti Quitéria, porque a Emília já tinha começado com as dores de parto. Para ela já não era novidade: a terceira criança queria nascer e não havia tempo a perder. Começaram os preparativos. Uma panela de água ao lume no borralho, as toalhas em cima da cama e as primeiras roupinhas para o bebé. Seria menina ou menino?
Ao fim de algum tempo e com mais ou menos dificuldade nasceu uma menina, um pouco franzina mas de pulmões bem afinados. Como tinha sido previamente combinado, chamar-se-ia Maria em homenagem a uma tia entretanto falecida.
O meu brinquedo
Maria foi crescendo e como qualquer criança gostava de brincar. Mas à medida que os anos vão passando, um brinquedo faz parte integrante da sua vida, nascendo, crescendo e vivendo com ela. Apesar de não poderem estar um sem o outro, gostam muito de pregar partidas e sustos entre si e a vida tem sido um desafio constante, uma luta minuto a minuto.
Por vezes o brinquedo, já cansado, quer desaparecer da vida de Maria, mas ela agarra-o com toda a força, pede ajuda a quem sabe e pode porque a hora da despedida ainda não chegou. Quando se quer muito a um brinquedo só a presença dele é deveras importante e imprescindível. Sabermos que está ali, junto a nós conforta e faz-nos viver. Não é necessário mais nada. 
Porque no dia em que o meu coração deixar de bater, já nada mais me resta.

Nascemos e morremos sós. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado.

Maria Jorge ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 7 de dezembro de 2014

De são e de louco...

Albertina Vaz

Acho que foi na última 5.ª feira. Ia eu, já atrasada, a tentar correr até ao carro, quando me deparo com um homem, meio grisalho, alto, de pasta na mão, fato e gravata a condizer, passos cadenciados e vagarosos, de olhar esgazeado e colérico, gesticulando raivosamente, como se estivesse a falar com alguém que, ali, muito perto, talvez até junto dele, o escutasse.
Olhei para um e outro lado e não vi ninguém. Até olhei para trás, talvez a pensar que teria feito alguma coisa que lhe desagradasse. Mas não. Tudo estava dentro da normalidade. Aquela normalidade a que convencionámos chamar paz.
Esmurrava o inimigo...
E ele continuava, gesticulando, dando pontapés na parede, resmungando palavras ininteligíveis, em passadas largas, cada vez mais possuídas pela raiva que o avassalava, e vociferando, colérico, contra alguém, invisível, que teria provocado algo ou alguma coisa que, quem por ali estava, não entendia. Esmurrava o inimigo que só ele podia ver e ria desmedidamente quando um soco o atirava ao chão.
Ainda tentei entabular conversa mas fui imediatamente dissuadida por uma moradora que, sorrindo, me alertou:
- Não ligue, não está bom da cabeça, passa horas a falar sozinho. Ninguém o entende nem percebe o que ele quer. Dá-lhe para isto, agora.
O meu tempo estava a ficar sem tempo. Eu tinha alguém à minha espera, com quem me comprometera e tive de me desligar daquela representação que decorria ao meu lado. Mas a imagem dolorosa de alguém, que deixei para trás, foi-me acompanhando durante toda a viagem. E dei por mim a perguntar-me:
- O que terá acontecido àquele homem para o colocar naquele estado? O aspecto cuidado, a pasta na mão, as folhas que retirava de dentro da pasta, rasgando-as com violência, eram sinónimos de quê? Os pontapés que atirava descontroladamente contra as paredes, contra as floreiras do parque e até mesmo contra os carros estacionados, demonstravam um mau estar potenciado por quê? O descontrolo em que se encontrava poderiam gerar maior violência ou ela seria apenas uma forma de extravasar uma raiva incontida?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Um grito

Maria Helena Linhares

Não era cedo nem tarde... antevia-se que o sol ainda iria demorar a desaparecer na linha alaranjada e cintilante do horizonte.
Fazia ainda bastante calor, antevendo um novo dia estival, reforçando o sentimento de calmaria, motivado pelo cansaço das correrias e brincadeiras na praia.
- Aí o  meu menino!
De repente um grito, seguido de exclamações aflitivas.
 – Ai o meu menino! Ai que se afoga! – clamava a jovem mulher, tentando em vão agarrar o corpinho minúsculo da criança que se ia afastando das mãos estendidas da mãe, entre os baldões de água e areia.
Mas já outras mãos acorriam e pressurosas entravam na água e corajosa e firmemente agarravam o menino que gritava e estrebuchava buscando a progenitora...
Esta, ajoelhada no meio da água, soluçava agora já agarrada ao filho recuperado.

E o sol continuava a brilhar, e a tarde retomou a calma. Mas no ar perdurou o som daquele grito. O grito que causou espanto. O grito que salvou.

Maria Helena Linhares ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 30 de novembro de 2014

Fazes-me falta, quando não apareces.

Maria José 


Vives num local onde não te faltam vizinhos.
Não sei qual a tua relação com eles, mas deves sentir-te o rei!
És único, o mais brilhante!
Por vezes, teimas em ficar escondido. Envergonhado? Zangado?
E, de repente, lá apareces, espreitando, como que cuscando, por trás dos montes, montanhas, por entre as frestas das janelas, por entre a folhagem das árvores...
Adoras esconder-te e, quando dou conta, já mudaste de cor.
Queria que ficasses ali, para sempre.
Ficas maravilhoso, com esses tons quentes. Será do cansaço duma jornada de trabalho?
Quando te avisto, de manhãzinha, tens um ar pálido. À tardinha, ficas diferente.
O teu semblante é de cortar a respiração!
Quando te vejo assim, fico com a alma iluminada. Queria que ficasses ali, para sempre. Mas não, num instante, desapareces...
Resta a certeza de que amanhã vais voltar. Ou será que um dia vais morrer?
Para mim, vais ser eterno!
Quando não te vejo, fico triste, deprimida, sem vontade de fazer nada.
Sempre que mostras um brilhozinho no olhar, tudo muda.
Então, quando apareces com um semblante mais luminoso, é como se fosses a minha musa inspiradora.
Surgem ideias novas...

Pois é, amigo Sol, se não aparecesses, a minha vida seria bem mais triste!


Maria José ©2014,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A minha cidade


Maria Jorge

A minha cidade é linda. Banhada por uma ria extensíssima, tem uma igreja matriz, capelas e capelinhas; tem cemitério, lar da terceira idade e um centro de saúde; tem escolas,
Tem uma igreja matriz
infantários e escolinhas; tem marina para os barcos de recreio e de pesca; tem terrenos pequenos e grandes de cultivo, uns bem cuidados, outros ao abandono; tem supermercados e lojas, muitas lojas do comércio tradicional, umas já fechadas e outras em vias de fechar; tem espaços verdes, que na sua maioria, servem de casa de banho aos animais de estimação; tem empresas que, cada vez mais, empregam menos pessoas; tem avenidas, praças, pracetas e ruas: pequenas, grandes, particulares, com buracos, sem buracos, umas com os dois sentidos e outras com sentido único; tem prédios, casas para ricos e pobres, antigas e modernas: pequenas, grandes e mansões, umas ocupadas, outras a terem vida e movimento de vez em quando e outras ainda livres para um eventual inquilino ou futuro proprietário.
Em qualquer esquina ou quintal, qual grilo de Barcelona, também aqui no silêncio das noites quentes de verão com os seus melodiosos cânticos, os grilos despertam o ouvido do mais distraído, qual trilhar das cordas de uma guitarra de Coimbra nas mãos dum estudante.
Como em qualquer parte do nosso planeta, também na minha cidade cada família, na sua maioria, tem um animal de estimação.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Salvei os Clássicos!

Conceição Cação

Uma onda de calor invade-me o rosto, o coração bate aceleradamente… Sem ressentimento pela minha longa ausência, o Bairro Norton de Matos (o meu Bairro
Bairro Norton de Matos
Marechal Carmona) abre-se-me como um livro de história, de estórias. A dominar a colina, acolhe-nos, prazenteira, a rua de Angola. A emoção em crescendo, caminho ao longo do passeio empedrado. Como num espelho, os raios de sol miram-se na calçada polida; mais além, pedras soltas clamam pela mão que as enquadre no puzzle e faça renascer a estrela que deixaram apagar. Como num índice, vão-se apresentando as ruas principais que, bem alinhadas, terão o seu epílogo na rua de Moçambique, contracapa deste livro de páginas de betão. Entro na rua Vasco da Gama. As mesmas vivendas de outros tempos, bem conservadas, quase todas mantêm a traça inicial. Agrada-me ver que este bairro, resistindo à febre imobiliária, soube preservar o seu património e a qualidade de vida dos seus moradores. Lá está a casa da Maria João, mais além a da Arlete… Onde estarão as minhas colegas do liceu? Os jardins, bem cuidados, lembram-me que ali a vida continua a fluir, aquelas paredes vão acumulando décadas de memórias, enquanto acolhem no seu seio geração após geração. Viro à direita para a rua Bartolomeu Dias… Sim, toda a toponímia evoca os tempos áureos dos descobrimentos, do império, bem ao gosto do Estado Novo.
Chegámos agora a um pequeno jardim – vários bancos de pedra, um retângulo de relva ao centro bordejado de petúnias multicores; dois renques de árvores frondosas
...um pequeno jardim
prontas a oferecer sombra a alguém que, passando, ali queira aliviar o cansaço ou simplesmente deleitar-se com aquele pedacinho de paraíso. Num painel de azulejo, pode ler-se Praça da Índia Portuguesa. Anacronismo e quietude a transportarem-nos para outras eras.
De súbito, duma moradia em obras, dá-se início a um martelar incessante. É melhor afastarmo-nos. Mas inesperadamente algo nos detém – junto dum contentor verde, em cima dum pequeno muro, vários livros, alguns deles dentro dum saco de supermercado. Livros de capa rígida… Vejamos: Contos da Cantuária – sim, o conto do Moleiro, da Freira… Parece-me um sonho! Quantas recordações me despertam! E que mais? Ah! Balzac, Fielding, Galland, Dostoievski, Tolstoi. Olha, estão novos, até parece que nunca foram folheados! Porque terão ido parar ali? 

sábado, 15 de novembro de 2014

SULCOS NA AREIA

Maria Celeste Salgueiro

Era alta, elegante, porte airoso. Quando a vi pela primeira vez meu coração disparou.
Era uma manhã de Verão luminosa e brilhante. À minha frente a praia estendia-se desnudada e as ondas agitavam suas crinas brancas em louca cavalgada, vindo deitar-se aos meus pés cansadas, na areia. As palmeiras balançavam as suas cabeleiras verdes doiradas pelo sol e flores de buganvília, transbordando de cor, vestiam os muros junto da praia e subiam ao encontro do sol. Nuvens brancas, quais flocos de algodão, flutuavam sobre a montanha longínqua onde as árvores quase tocavam o céu. Era uma manhã perfeita numa perfeita praia tropical. Nesse momento sentia-me feliz. Aspirei deliciado o cheiro a maresia e o aroma das flores que o vento trazia até mim.
Palavras para quê?
À minha frente eu via a sua silhueta recortada na luz. Caminhava lentamente, as pernas altas e elegantes em compasso de dança deixando sulcos na areia molhada. Seguia-a de longe sem que ela me visse. Senti despertar em mim a minha veia artística e não queria perder nenhum dos seus movimentos. De repente parou e olhou na minha direcção. Julguei que ia retroceder mas afinal continuou a andar no seu passo ritmado. Nesse momento tudo se diluiu no tempo e no espaço. Nada mais senão ela existia no meu campo de visão. Como um adolescente enamorado continuei a segui-la sem coragem para a abordar. Bastava-me olhá-la para me sentir feliz. Palavras para quê? Não queria chegar mais perto com medo de quebrar o encanto.
De repente, ao longe o céu tornou-se cinzento, incendiou-se numa onda de luz e ouviu-se depois o ribombar de um trovão. Foi o bastante para a assustar. Começou a correr e buscou abrigo numa gruta cavada na rocha. Mas eu não a segui. Retrocedi com medo da tempestade que se aproximava, pisando os sulcos deixados por ela na areia molhada.

Porém, dentro de mim o sol continuava a brilhar e a beleza daquela manhã perfeita continuava intacta, assim como a imagem daquela ave de pernas altas e elegantes: a minha bela Garça.

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Quando um homem se põe a pensar!

José Luís Vaz 

Uma das minhas rotinas diárias é dar o comer aos meus dois cães.
Um deles, está, para além de, velho, cego, surdo e, praticamente, mudo, dado que antigamente ladrava, por tudo e por nada, e agora quase não o ouço.
O meu cão está velho
Que aconteceria, que dia a dia teria este animal, se ao menos não tivesse um teto? Como ele, outros animais e pessoas sem teto, cada um à sua maneira, persistem em dar luta à solitária vida em que se transformou a sua existência. Uns e outros vadiam pelas ruas, aproveitam aquilo que os outros já não querem, e às vezes, deliciam-se com acepipes inesperados em dias de sorte. Percebem no rosto e no mexer dos lábios de muita gente a palavra “coitadinho”.
Não gostam mas como já nada têm a perder, põem uma boina no chão onde poderão cair uns centimosinhos, quase sempre pretos, lá depositados com toda a mestria de quem quer que se perceba o tilintar das moedas. Alguns têm como companhia um animal, muitas vezes um cão, um daqueles, que escapou à recolha sanitária, de animais abandonados efectuado pelas zelosas autarquias, que os armazenam em canis, que, normalmente, como as vítimas dos nazis acabam padecentes do “destino fatal”.
As pessoas abandonadas à sua sorte, sem que o estado em que vivem as proteja contra a falta dos mínimos necessários à existência de uma vida digna, passam a ser pesos incómodos à sociedade. De imediato, catalogados como escória de uma sociedade que dia após dia ganha mais adeptos para a repudiável inevitabilidade do fim de um Estado Social…

O meu Kiko, o meu cão, está velhinho, afasta-se quando sente que me aproximo — não me vê… —  quando o agarro e lhe faço umas festas, acalma e retribui-me com uma saudável lambedela. 


José Luís Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Roda Gigante

Albertina Vaz


Finalmente um dia de sol. Já quase me não lembrava de como é bom um dia de sol: o cheiro da terra húmida a soltar-se e a crescer enovelando-se no espaço; o ar quente a acariciar a pele e a saber bem; as flores, numa profusão de mil cores, a erguerem-se altivas procurando um raio de sol só para si; as aves a saírem das árvores numa dança de sedução procurando o companheiro especial; os animais saindo das tocas em busca do comer que tem escasseado durante o longo e penoso inverno.
E com o sol veio também aquele espreguiçar bom que aquece a mente e convida a
Um dia de sol
novidades: uma caminhada das que nos fazem sentir o chão que pisamos ou um dia longe da actividade soturna e diária. Afastei-me da melancolia sempre presente quando o inverno se prolonga e se instala: afinal hoje está um dia de sol.
Fui dar uma volta à feira. De manhã, quando o bulício é ainda pequeno e só os gonzos da roda gigante tomam conta do ambiente. Aqui e ali uma criança de olhos desmedidos e boca aberta saltita por entre os carrocéis que se erguem frente à praça. Percorri sem pressas o espaço onde os chamados divertimentos se alinham lado a lado numa zona pré-determinada e definida. Uma profusão de cores, de campainhas, de sons mais ou menos agudos, de música difundida a metro ou em rodas redondas. E de apitos – muitos apitos que, sem eles, nem a feira é feira.
Em passo cadenciado, dei por mim a pensar que a roda gigante é redonda e gira à volta
A roda gigante é redonda...
de si mesma regressando sempre ao ponto de partida. Se assim não fosse como sairiam os que entram e como entrariam os que estão de fora? E o carrossel dos animais, mesmo em ondas que sobem e descem, não é ele redondo também? Não anda à volta dum centro que começa a rodar quando o movimento se desencadeia? Até o carrossel dos barquinhos, onde só as crianças podem andar, gira à volta de um eixo movimentando atrás de si a água que essa mesma volteia em círculos concêntricos. E o labirinto ou a lagarta gigante não fazem anéis redondos regressando sempre ao ponto de partida que no fundo não deixa de ser o ponto de chegada? E até as diversões mais recentes que giram a uma velocidade vertiginosa o fazem rodando sobre si mesmas numa argola imensa e redonda que volta sempre ao mesmo lugar.
O sol continuava lá a fazer-se sentir como se ele também tivesse regressado dum outro lugar, por debaixo dos meus pés. E dei por mim a pensar que eu própria sou uma roda gigante que rodo numa terra que também, ela própria, gira sobre si mesma. E é nesta roda gigante que vou circulando ao redor da terra sabendo que a cada porta que abro descubro uma nova etapa que estou a percorrer.

domingo, 19 de outubro de 2014

As portas da vida

Fernanda Reigota

Tentava perceber o que se estava a passar. O leito paradisíaco que desde sempre conhecera, transformava-se. O amortecedor de líquido em que costumava saltitar nas horas de atividade esvaziara-se, mas a temperatura, a maciez e a sensação de satisfação continuavam. Apenas o aconchego ficara um pouco mais aconchegado. Pouco a pouco começou a sentir-se verdadeiramente apertado, sendo mesmo expulso do seu leito primordial.
Olhou para aquela porta que tinha sido obrigado a transpor, mas depressa novas
...a porta que tinha sido obrigado a transpor...
sensações prenderam a sua atenção: gritou e assustou-se com o seu próprio grito, respirou e espantou-se com aquele vento ligeiro que ia lá dentro refrescá-lo e depois saía quentinho, abriu os olhos e, por causa daquela luz forte, fechou-os imediatamente, quis sentir o seu corpo e a pele não era a mesma. Uma voz conhecida falava em roupinha. Era melhor descansar, dormir, logo compreenderia o que lhe tinha acontecido.
Tal como aquela criança, naquela maternidade já tinham nascido muitas outras naquele dia. Todas tinham passado por sensações idênticas, todas haviam transposto a porta da vida. Branca, com algumas marcas genéticas, esta porta fora a primeira de muitas outras que pautam todas as vidas.
À volta daquela criança projetava-se e movimentava-se em espiral um feixe de luz em contínuo movimento circulatório: este rasto de luz ia construindo a estrada do seu tempo e o tempo da sua estrada. Inexoravelmente a criança acompanhava esse traçado desde a porta de entrada para a vida.
Aquele feixe de luz encobria muito mais do que aquilo que mostrava. Se olhava para a esquerda perdia, para sempre, a oportunidade de conhecer o que o tempo tinha acabado de levar. Neste espaço de tudo e de nada, a criança não podia falhar a escolha ou a recusa da próxima porta que cruzasse o seu caminho. Recusou a porta da ignorância e
...a porta da curiosidade...
rapidamente teve de decidir: é que, mesmo pegada a ela, vinha a porta da curiosidade. Atravessou-a e, já do lado de dentro, reparou que estava decorada com as conquistas mais significativas que tinham nascido do sonho humano. Intuiu a importância do sonho e do conhecimento para a vivência da estrada do Tempo e do tempo da estrada, enquanto observava as sugestivas pinturas de belos monumentos, sinfonias reveladoras do som cósmico, teatro, dança, globalização, aventura, magia científica, tecnologia, velocidade... Então, sentiu-se a saborear o cheiro inebriante da felicidade possível. Foi assim que enxergou uma mancha que servia de base a toda aquela maravilha: era uma amálgama de poluição que arrastava a vida do planeta Terra para a não sustentabilidade.
Tinha companheiros, mas a maior parte do tempo a viagem era feita em silêncio, embora todos fossem falando, maravilhando-se com as suas próprias palavras. Apesar disso, conseguiu sintonizar-se com algumas outras crianças para brincarem. E um arco-íris de sonho e descobertas desenhava-se sobre as suas estradas.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

PORTUGAL

Silvia Paradela 


Sob o Sol e o azul do céu
E uma força divinal
– Como c’lorido rosal
Num canteiro que é só seu –
Plantado estás, Portugal!
Mas ventos vêm e varrem
Riqueza do teu matiz…
Sustém-te a tua raiz
Que não deixará que abalem
O viço do meu País!
"O viço do meu País!"

Terra bem-aventurada
Pátria minha singular,
Tua glória é celebrada
Em «Os Lusíadas» cantada
Para jamais olvidar!

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A dor de partir e o imperativo de chegar


Albertina Vaz

Vi-o caminhar, lenta e pesadamente, pelas ruas estreitas da cidade quase deserta. Olhava cada janela, cada vidraça empoeirada, cada vaso de flores pendendo através da madeira carcomida da varanda. Parecia querer agarrar o que lhe escapava, prender e que se desatava, apanhar o que lhe fugia. Nem sequer compreendia o que girava à sua volta. Só sabia que não encontrava nem o fim da estrada, nem a luz na calçada, nem o mar que se afundava por entre a areia dum deserto, ali, à beira da porta.
Quem te deu o direito de parar? – pensou. Quem te deu o direito de matar o pássaro que
...o pássaro que reclama voos...
reclama voos dentro de ti e exige cortar a sombra que teima em se instalar? Quem te permitiu carregar, nas tuas costas, o peso de um mundo que te despreza e te angustia?
Já não sirvo para nada, foi o que arremessaram: e, no entanto, continuo a ouvir o rasgar das giestas e o cantarolar dos patos que invadem o lago e semeiam gramados por entre as flores dos nenúfares no rio. Sinto cá dentro, uma dor que se instala e uma chuva miudinha que invade o meu peito e rebenta como uma estrela que explode em luzes de mil e uma cores.
Já não sei que fazer – esta hesitação é o que mais me dói – não sei se partir, se ficar; não sei se caminhar, se parar; não sei se gritar, se calar.
As ruas da calçada fogem sob o desejo de ficar – a filha que queria ver crescer, a mulher que se esgota nas casas dos outros por um prato de sopa, a mãe que não voltará a beijar. E quanto tempo vai decorrer, até que eu volte a pisar este caminho sem fim, em que me sinto e me remanso, em que nasci e cresci, em que lutei e perdi?
Perdi aquele pôr do sol ...
Perdi – o quê? Perdi tudo e perdi nada, perdi as giestas a cantarolar e o bater de asas dos patos no debruado da ria, perdi aquele por do sol de cores demasiado quentes e a neblina do fim de tarde que faz cantar as árvores e deslizar os ramos dos ninhos acabados de fazer; perdi aquele mar azul que se encapela e nos prende sem agarrar.
Perdi, ou vou perder? Aquelas janelas pequeninas com cortinas debruadas a renda feita à mão, aquele azul pintado no meio de um negro, escuro e cinzento, duma parede que se ergue entre o que se sente e o que se diz, entre o que se quer e o que se faz, entre o que se sonha e o que se realiza. Já nada resta – nem lenha para acender a fogueira, nem um pão na mesa, nem uma flor.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

VIVÊNCIAS DE ESCRITA

Fernanda Reigota

Quatro duplas vivências de escrita nas suas vertentes antagónicas: TEMPO, ESPAÇO, PERSONAGEM, AÇÃO. Foram estes os elementos que deram corpo ao psicodrama que em mim se desenrolou: o som da ave da imagem que fotografei muito impulsionou esse psicodrama.

PRIMEIRA
Tempo sem tempo

Corria aquele mês em que o tempo é lento.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
Mas os olhos sem tempo não colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo e ele aí estaria, o mês perfeito.
Mas os olhos queriam o Norte e o tempo deslizava para Sul.

Sem rumo, sem norte, que apareça a Estrela Polar.
A noite dos tempos envolveu os mares, a terra e a vida,
Mas o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

Tempo com tempo

Corria aquele mês em que o tempo é leve.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
E os olhos com tempo colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo! Eis o mês perfeito.
E os olhos deslizavam de Norte a Sul.

Com rumo e com norte apareceu a Estrela Polar.
A noite dos tempos desvendou os mares, a terra e a vida,
E o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

SEGUNDA


Espaço sem espaço

Curva de estrada
Nuvem parada
Janela fechada
Rosa muralhada

Barcos sem cais
Ilhas infernais
Casas transversais
Sentimentos superficiais.                                    

Afetos nevoentos
Abraços cinzentos
Seres pardacentos.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Outra visão da vida

João morava na capital. Filho único de uma família mediana, na impossibilidade de entrar na Universidade estatal por falta de média, frequentava o segundo ano de economia na Universidade Lusíada. Os pais faziam o sacrifício económico, porque até então João não tinha perdido um único ano. Conheceu a namorada, de seu nome Sofia, na escola secundária e desde então nunca mais se largaram.    
Gostava de se divertir com os amigos
Era um jovem igual a tantos outros, não lhe eram conhecidos vícios, mas gostava de se divertir com os amigos, namorar e ir aos bares do Cais da Rocha aos fins de semana. Aos domingos de manhã, em qualquer época do ano, ia surfar para o Guincho, outra das suas grandes paixões. Remar para uma onda, apanhá-la, envolver-se e acompanhá-la, navegar na crista e meter-se dentro do túnel deslizando ao sabor da mesma era como viver o sonho de sentir o oceano em toda a sua plenitude. O stress duma semana de trabalho estudantil e o caos citadino eram postos para trás das costas. O voo rasante das gaivotas e o barulho das ondas era a perfeita harmonia para uma liberdade total.    
Compreendendo o sacrifício que os pais estavam fazendo, tinha como objetivo principal não chumbar ano nenhum e, mesmo que deixasse alguma disciplina para trás, iria fazê-la no semestre seguinte.  

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Até onde pode ir a conversa…

Era quase noite e a tarde teimava em não se despedir. O sol, ou as réstias dele, lá ao longe, projectava uns raios indecisos entre o laranja e um vermelho tão forte que mais parecia sangue, raiando o vale verdejante subdividido em pequenas parcelas. A manta de
A manta de retalhos
retalhos, um verdadeiro jardim, lindo de ver, árduo de trabalhar, espelhava uma agricultura tipicamente minifundiária que teimava em persistir romanticamente à espera de que alguém, quem sabe, um D. Sebastião, fizesse o milagre com a terra como a Rainha fez com os pães. Este quadro deslumbrante, embora perspectivasse natureza morta, era a paisagem assombrosa avistada dum pequeno jardim, onde naquele fim de tarde, como noutros, um avô usufruía do seu maior gozo: ver brincar os netos e com eles partilhar um diálogo permanente nem sempre inspirador de liderança porque a ternura falava mais alto e o resultado era bem compensador.
— Noni…noni…noni…noni… foge avô, tu não ouves?
— Mas não ouço o quê? Afinal quem me persegue?
— É o carro dos bombeiros. Houve um fogo numa casa… foge, foge, avô…
Pronto e perante tal urgência, não havia outra atitude, obedecer e imediatamente. Retirava
Foge avô, tu não ouves?
mais umas folhas velhas de um canteiro e assobiando uma das suas modinhas preferidas preenchia um pouco mais de tempo, até que as crianças quisessem fugir do anoitecer. E à procura de luz entravam netos e avô em casa acabando com o sossego que àquelas horas alguns reclamavam depois de um dia de trabalho.
— Ouve lá Mafalda, tu queres ser bombeira?
— Sim, avô.
— Mas sabes que ser bombeira é uma profissão muito perigosa. Os bombeiros correm muitos perigos quando andam a apagar os incêndios e…
— Ó avô, mas eu não quero ser a bombeira que vai apagar os fogos. Eu o que quero ser é a chefe que manda os bombeiros trabalhar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O anjo da fome

               Uma em cada oito pessoas no planeta passa fome, destaca um relatório divulgado pela ONU em 2013.

    Um dia vi uma colega desmaiar na sala de aula. Sem aparato. Sem aviso prévio. Um busto de criança ruindo sobre o tampo da carteira, é isso que eu recordo. Depois, num quase sussurro, o diagnóstico a passar de boca em boca: fome. A menina padecia de fome.
    Finais da década de 1940. Um tempo de profundas desigualdades sociais. Em muitas aldeias do interior, a pobreza era endémica. Quando o trabalho e o pão faltavam, punha-se a esperança na caridade do próximo. Ou então, com alguma sorte, emigrava-se. Ou então, discretamente, como quem pede desculpa por incomodar, desmaiava-se de fome.
    Segundo Herta Müller, o anjo da fome, quando chega, chega em força. Apedreja os corpos por dentro, derrubando aos poucos o vigor e a dignidade.
    É inverno na minha memória sempre que recordo aquela coleguinha de escola tombando como punhado de neve sobre a carteira. Não há um único som colado à imagem. Porque a fome amordaça as vítimas. Porque a fome labora em silêncio.
Porque a fome labora em silêncio
    Foi nessa manhã, diferente de todas as outras manhãs, que pela primeira vez a minha infância de bem-estar chocou de frente com uma realidade tão próxima mas tão desconhecida. Sendo criança, arquitectei um plano de criança. Como nos contos de fadas, imaginava eu, uma maçã, um pão com marmelada, um chocolate, oferecidos no recreio, iriam magicamente revigorar aquele corpinho desnutrido. Oh, a alegria de ter para dar! Oh, o constrangimento de ser eu a dar, a vergonha de poder envergonhar quem das minhas mãos recebia!
    Cedo, porém, me apercebi de que qualquer semelhança entre a vida e um conto de fadas é mera coincidência. Vindos de várias regiões do planeta, diariamente nos chegavam relatos de conflitos políticos e civis, de gritantes injustiças na distribuição das riquezas, de trabalho forçado, de guerras. Ali estavam foto-reportagens enfatizando tais notícias. Ali estavam, em primeiro plano, corpos desvigorados onde a fome traçara a geometria da morte. 
    Esqueci há muito o nome da coleguinha que, esfaimada, desmaiou sobre o tampo da carteira, mas nunca conseguirei esquecer o gelo que nesse momento encheu a sala de aula, nem o arrepio tatuado na minha pele.
    São sempre anónimas as crianças que chamam a nossa atenção nas imagens ainda hoje captadas em zonas de extrema pobreza. Nos olhos de todas elas, o silêncio exangue da fome. Algumas seguram tigelas vazias. Outras, dobradas como bichos, a boca rente ao chão, tentam aproveitar as migalhas caídas. Outras, esqueletos cambaleantes, mal conseguem prender com o arame dos seus dedos o quase nada que, de tempos a tempos, lhes é caritativamente distribuído.

    O anjo da fome, quando chega, chega implacável. Lança-se em voo picado sobre os milhões de não-eleitos. Nunca são brancas as asas do anjo da fome.

Helena Maltez ©2014,Aveiro,Portugal
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