quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Prece ao Novo Ano


Maria Celeste Seabra




Mais um ano que acaba de ruir
Qual folha que o Outono derrubou;
Mais um ano que acaba de partir,
Mágoa que foi, Saudade que ficou!

Mais um ano que vem, prece a sorrir,
Pela estrada que o outro já pisou;
Mistério a despontar, a ressurgir,
Entre as sombras do ano que passou!

Ano que vens nas brumas da incerteza,
Benvindo sejas tu pela grandeza
Dum sonho que tão alto me conduz!

Veja ou não satisfeito o meu desejo,
Benvindo pela esp´rança que em ti vejo,
Esp´rança a abrir em pétalas de luz!...


Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

sábado, 27 de dezembro de 2014

Quando chegará o tempo de ouvir as crianças?!

José Luís Vaz

O verão de S. Martinho já lá vai e os dias vão diminuindo, dia após dia, criando espaço às frias e longas noites de inverno. Quase de seguida, o Dia Internacional da Generosidade, fazendo pairar no ar um tempo que faz adivinhar a proximidade de época natalícia. 

Uns começam a idealizar, outros a programar, outros fazendo cálculos e mais cálculos
Um tempo de exuberância para uns....
para melhor gerirem os seus pecúlios e, como sempre, tantos a vê-los passar… Um tempo de exuberância para uns, de desamparo para outros, mas, fundamentalmente, de uma verdadeira euforia à volta do consumo. O mundo inteiro entrega-se às tradições natalícias e sob esse auspício, em cada latitude, vive-se um tempo repleto de slogans, sempre recheados de paz, muita paz, fraternidade, caridade para uns, solidariedade para outros, Menino Jesus, Pai Natal, amizade, amor… Um verdadeiro romantismo vivido todos os anos com um, demasiado curto, prazo de validade. 

Mas... É agora tempo de Natal!
Os anos, uns a seguir aos outros, todos, ou quase todos, com trezentos e sessenta e cinco dias, são vividos, em função de rotinas obrigatórias, repressoras de excessos ou então na abundância a que o dinheiro permite chegar. Neste mundo globalizado, as desigualdades, que já o eram, são agora mais transparentes tornando mais difícil o alheamento e o desprezo pelo que se passa debaixo do mesmo céu azul, mais claro para uns e muito escuro ou mesmo praticamente negro para outros.


Mas… É agora tempo de Natal! O frenesim espalha-se, como as sementes que o lavrador lança para o solo, espevitando as vontades a um tempo de generosidade e harmonia, que até parece criar dias diferentes, como se os paradigmas da sociedade, num estalar de dedos, se tivessem alterado. Os sem abrigo, habituados aos Natais à volta da habitual fogueira gelada, agradecem agora o velho cobertor que a generosidade natalícia acaba por lhes proporcionar. Pedintes sentem nesta altura melhores compensações pelo apelo repetitivo que vão fazendo a quem passa. Desempregados, precários e escravos do ordenado mínimo, sobejamente habituados ao rigor do pouco, aventuram-se em pequenos, grandes arrojos, que mais tarde lhes sabe a amargo. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sonho

Maria Helena Linhares

Éramos um grupo de crianças, saltitante e garrido. Pertencíamos ao antigo ensino primário – da 1ª à 4ª classe.
Rapazes e raparigas, as meninas mais vistosas, mais enfeitadas, algumas com laçarotes na cabeça.
Eles, mais estouvados, empurrando-se uns aos outros, cavaqueando, ou atrás da bola que iam chutando pelo caminho...
Eram tempos felizes... mas para mim não o eram tanto. Dentro de mim havia como que um vazio, um desconforto, por um desejo tão contrariado que me provocava uma tristeza profunda, um desalento imenso!
Íamos andando rumo à escola e ia mirando disfarçadamente algumas colegas, pensando com os meus botões que elas é que tinham razões para serem felizes e rirem às gargalhadas por tudo e por nada.
Ah, se eu fosse uma delas como seria
plenamente feliz!
Mas eu era orgulhosa e não revelava a nenhuma amiga o meu sentir, a razão da minha tristeza.
Ah, se eu fosse uma delas como seria plenamente feliz!
Iria rir tanto, tanto, de boca escancarada, e adeus tristezas: — correria contra o vento, ainda mais
do que ele, andaria às voltas, de mãos ora na cabeça, ora postas nas saias para que elas não esvoaçassem... ai como eu iria ser tão feliz! Mas não, a minha mãe explicava, desdobrava-se em fazer-me compreender o incompreensível, mas qual quê? Quanto mais o fazia, menos eu compreendia. Porque não podia ser como a Celina, a minha vizinha? Seria fácil, tão fácil, eu prometia portar-me muito bem, estudar mais, mais isto mais aquilo...
Não! Não sejas teimosa e cala-te! O assunto morreu aqui! Não há mais conversa!

sábado, 13 de dezembro de 2014

O meu brinquedo

Maria Jorge

Era uma noite de outono e o frio já começava a ameaçar que tinha vindo para ficar. Era urgente ir chamar a ti Quitéria, porque a Emília já tinha começado com as dores de parto. Para ela já não era novidade: a terceira criança queria nascer e não havia tempo a perder. Começaram os preparativos. Uma panela de água ao lume no borralho, as toalhas em cima da cama e as primeiras roupinhas para o bebé. Seria menina ou menino?
Ao fim de algum tempo e com mais ou menos dificuldade nasceu uma menina, um pouco franzina mas de pulmões bem afinados. Como tinha sido previamente combinado, chamar-se-ia Maria em homenagem a uma tia entretanto falecida.
O meu brinquedo
Maria foi crescendo e como qualquer criança gostava de brincar. Mas à medida que os anos vão passando, um brinquedo faz parte integrante da sua vida, nascendo, crescendo e vivendo com ela. Apesar de não poderem estar um sem o outro, gostam muito de pregar partidas e sustos entre si e a vida tem sido um desafio constante, uma luta minuto a minuto.
Por vezes o brinquedo, já cansado, quer desaparecer da vida de Maria, mas ela agarra-o com toda a força, pede ajuda a quem sabe e pode porque a hora da despedida ainda não chegou. Quando se quer muito a um brinquedo só a presença dele é deveras importante e imprescindível. Sabermos que está ali, junto a nós conforta e faz-nos viver. Não é necessário mais nada. 
Porque no dia em que o meu coração deixar de bater, já nada mais me resta.

Nascemos e morremos sós. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado.

Maria Jorge ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 7 de dezembro de 2014

De são e de louco...

Albertina Vaz

Acho que foi na última 5.ª feira. Ia eu, já atrasada, a tentar correr até ao carro, quando me deparo com um homem, meio grisalho, alto, de pasta na mão, fato e gravata a condizer, passos cadenciados e vagarosos, de olhar esgazeado e colérico, gesticulando raivosamente, como se estivesse a falar com alguém que, ali, muito perto, talvez até junto dele, o escutasse.
Olhei para um e outro lado e não vi ninguém. Até olhei para trás, talvez a pensar que teria feito alguma coisa que lhe desagradasse. Mas não. Tudo estava dentro da normalidade. Aquela normalidade a que convencionámos chamar paz.
Esmurrava o inimigo...
E ele continuava, gesticulando, dando pontapés na parede, resmungando palavras ininteligíveis, em passadas largas, cada vez mais possuídas pela raiva que o avassalava, e vociferando, colérico, contra alguém, invisível, que teria provocado algo ou alguma coisa que, quem por ali estava, não entendia. Esmurrava o inimigo que só ele podia ver e ria desmedidamente quando um soco o atirava ao chão.
Ainda tentei entabular conversa mas fui imediatamente dissuadida por uma moradora que, sorrindo, me alertou:
- Não ligue, não está bom da cabeça, passa horas a falar sozinho. Ninguém o entende nem percebe o que ele quer. Dá-lhe para isto, agora.
O meu tempo estava a ficar sem tempo. Eu tinha alguém à minha espera, com quem me comprometera e tive de me desligar daquela representação que decorria ao meu lado. Mas a imagem dolorosa de alguém, que deixei para trás, foi-me acompanhando durante toda a viagem. E dei por mim a perguntar-me:
- O que terá acontecido àquele homem para o colocar naquele estado? O aspecto cuidado, a pasta na mão, as folhas que retirava de dentro da pasta, rasgando-as com violência, eram sinónimos de quê? Os pontapés que atirava descontroladamente contra as paredes, contra as floreiras do parque e até mesmo contra os carros estacionados, demonstravam um mau estar potenciado por quê? O descontrolo em que se encontrava poderiam gerar maior violência ou ela seria apenas uma forma de extravasar uma raiva incontida?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Um grito

Maria Helena Linhares

Não era cedo nem tarde... antevia-se que o sol ainda iria demorar a desaparecer na linha alaranjada e cintilante do horizonte.
Fazia ainda bastante calor, antevendo um novo dia estival, reforçando o sentimento de calmaria, motivado pelo cansaço das correrias e brincadeiras na praia.
- Aí o  meu menino!
De repente um grito, seguido de exclamações aflitivas.
 – Ai o meu menino! Ai que se afoga! – clamava a jovem mulher, tentando em vão agarrar o corpinho minúsculo da criança que se ia afastando das mãos estendidas da mãe, entre os baldões de água e areia.
Mas já outras mãos acorriam e pressurosas entravam na água e corajosa e firmemente agarravam o menino que gritava e estrebuchava buscando a progenitora...
Esta, ajoelhada no meio da água, soluçava agora já agarrada ao filho recuperado.

E o sol continuava a brilhar, e a tarde retomou a calma. Mas no ar perdurou o som daquele grito. O grito que causou espanto. O grito que salvou.

Maria Helena Linhares ©2014,Aveiro,Portugal
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