quinta-feira, 30 de março de 2017

Tão perto e tão longe


© José Teixeira

A chuva caía suavemente, libertando-se de uma teimosa névoa, que pairava em forma de véu compacto sobre a copa das árvores da avenida, nesta manhã de outono, em que o sol se perdeu entre as nuvens e o vento não se fazia sentir.

Embrulhado na minha capa, caminhava eu pela calçada, no passeio matinal com que inicio o meu dia. Adiante de mim seguia uma jovem mãe, em passo acelerado. Um corpo esbelto protegido por um vestido esverdeado, talvez um pouco gasto, mas gracioso na forma como fazia sobressair a beleza da jovem. 
Nunca o Homem, estando tão perto,
esteve tão longe do Homem
Com uma mão arrastava uma criança com cerca de três anos e na outra segurava um telemóvel bem encostado ao ouvido. A conversa não lhe estaria a agradar, pois da sua boca choviam raios e coriscos. A chuva continuava a cair, o telemóvel não se molhava e a criança choramingava, mas a mãe não a ouvia. Os automóveis passavam velozmente perturbando o ambiente com o estrépito dos motores. Não conseguiam escutar o que a jovem dizia, mas eu que seguia mesmo ali, atrás daquela mãe com a criança pela mão, numa manhã de chuva miudinha, ouvia-a muito bem. E, sobressaíam o toc, toc dos sapatos de tacão alto e as palavras azedas dirigidas ao pai da criança que a escutava algures.

segunda-feira, 20 de março de 2017

SER POETA

© Maria Celeste Salgueiro




Ser poeta é de todos ser dif´rente,
Ver para além das coisas a beleza;
Sentir o coração da natureza
Pulsar dentro de si intensamente! 

É sem poder voar ir sempre em frente,
Nas mais pequenas coisas ver grandeza;
É cantar, versejar como quem reza,
Querer atingir na vida o transcendente!

É amar sem limites, sem ter freio,
Sentir que nada acalma o seu anseio,
Dentro de si mil sonhos a florir!

É ver em cada estrela o infinito,
Lançar pela amplidão imenso grito
Para que todo o mundo o possa ouvir!...  




Maria Celeste Salgueiro ©2017,Aveiro,Portugal        

domingo, 5 de março de 2017

De lágrima na mão

 © Albertina Vaz

Encontrei uma lágrima e toldei-me de espanto. Uma lágrima ali, perdida, no meio do nada e atulhada de tanto. Olhei-a a medo e tremi por dentro. Nem sei a que sabia – se era salgada, se era fria, se era amarga ou se devia prová-la e desfazê-la na boca, lenta e devagarinho.

Encontrei uma lágrima e quis afagá-la na minha mão mas, ao tocar-lhe, quase se desfez, em gotículas tão pequeninas que rolaram para o chão: eram gotas de dor, de amargura, de sofrimento, de tortura, de tormento. Eram só gotas mas sabiam a tanto.

E vi que havia mais lágrimas que se espalhavam pela calçada e inundavam o chão. Nem sei donde vinham nem para onde iam mas rolavam, sem destino, na calçada lamacenta que cheirava a calor e se alongava como quem rola, em círculos desfeitos, num mar de pranto.

Mas eram também gotas de receio, de inquietação, de medo, de susto, de alvoroço e de revolta, que se desenvolvem e se diluem, numa paragem de vida, onde tudo parece que começa e nada decide avançar.

E eram também sonhos de sonhos que deixam de ser sonhos e aparecem como realizações de realidades concretas que se corporizam num gesto, numa caricia, num afago, num mimo, num sorriso que se intensifica e se dilui quando, no horizonte, o sol nasce e as aves o circundam, em voo aglutinado, manchando de sombra a luz imensa que dele se evola.

E fiquei para ali a pensar nos milhões de lágrimas que volteiam como pássaros alados, rodopiando em voos de ida que voltam sempre ao local de partida e forçam o ramo da árvore, onde um ninho recorda o último verão e as canções de embalar sempre anunciadas.

Subi a ladeira, devagarinho, dobrada sob aquele peso daquela lágrima que recolhera na minha mão. E encontrei, sentada na beira da estrada, uma rapariga, de olhar vazio, enfrentando o nada. Em silêncio. Na sua face, apenas o silêncio, mudo e petrificado, de quem nada tem ou nada já quer ter.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...