segunda-feira, 30 de novembro de 2015

NOTA FINAL


Recordamos hoje o dia em que, sete autores lançaram o livro MEMÓRIAS A MIL VOZES, dando início a um processo de divulgação dos seus trabalhos que se corporizaram no blogue EVOLUIR. Este será sempre uma janela aberta a todos os que se revêem, em poesia ou em prosa, na arte de juntar as palavras e legá-las ao leitor.

Hoje iniciamos um novo ciclo e queremos contar com todos os que pretendem divulgar o que escrevem. Seremos sempre um espaço aberto, onde todos os autores podem livremente expressar-se e deixar as palavras que não querem ficar esquecidas, em folhas amarrotadas de gavetas sem história.

Publicamos de seguida um pequeno texto do livro que juntou um grupo de autores que teve um sonho e o concretizou.


NOTA FINAL

Esta sensação de termos chegado ao fim acarreta um sabor meio doce meio amargo. Mas chegámos: acalentámos esperanças, derrotas, alegrias, sucessos, desilusões, êxitos e fracassos.

Por mais estranho que pareça, carregámo-los juntos – umas vezes com um ar feliz, outras com um certo desalento, quase uma vontade de desistir. Mas demo-nos os braços e seguimos em frente, tendo em conta que em todos nós cabiam vivências únicas e singulares que só cada um saberia relatar. Pouco a pouco fomos crescendo – tal como a paixão pela escrita – e desenvolvemos ligações, elos que se entrecruzaram e nos foram completando.

Este grupo nasceu de uma reunião fortuita, num local onde nos encontrámos, por acaso, e aonde tínhamos chegado apenas para descobrir formas novas de continuar a EVOLUIR. Estávamos longe de prever que este encontro daria lugar a uma união e que desta união resultaria uma colectânea de memórias.

Recusamos o imobilismo, a inacção, o ócio, a indolência ou a preguiça. Continuamos a gostar de um café saboreado ao pôr-do-sol numa esplanada, de uma conversa gostosa em que nada se diz e de uma caminhada pelas areias douradas da nossa ria. Mas não nos permitimos passar os dias sem viver cada segundo, intensamente, com a sua especificidade própria de um tempo que é único porque nunca se repete.

Este livro não faz dos autores escritores. Mas leva os leitores a participar nas mudanças, nos caminhos, nas alterações da vida de todos ao longo de quase um século. E, queiramos ou não, envolve-nos num percurso conjunto repleto de curiosidades, recantos, privacidades e alegorias. É por isso que não necessitamos de convidar ninguém a participar desta leitura: todos nós fazemos parte integrante dum percurso da história em que vivemos e nos revivemos.

Hoje acabámos as nossas Memorias a Mil Vozes. Amanhã estaremos de certeza noutro projeto. É que não queremos assistir a um pôr-do-sol que não volte a repetir-se no dia seguinte.


in "Memórias a Mil Vozes",Albertina Vaz, et all,©Chiado Editora,2013

domingo, 22 de novembro de 2015

O teu poema

Palmira Alvor Figueiredo 
... um poema por escrever ...

As palavras já não bastam!
Perderam o perfume
nesse exercício vão,
de descrição,
que o poeta
tentou fazer, do amor.
Restam letras estilizadas,
imagens belas,
frases caladas (ocas),
vazadas de sentimento,
des(emocionadas),
roubadas à aliteração
sem comoção, foragidas,
odiadas, rasgadas, perdidas!

Quero escrever-te o mais belo poema (de amor),
mas a fuga das palavras (que fenecem),
apaga a cor,
restando, apenas
esta folha imaculada,
abandonada,
de um poema por escrever.

domingo, 15 de novembro de 2015

A JUSTIFICAÇÃO

José Carreto Lages

Depois da vã procura de estacionamento, isento de taxa, conduziu o carro até ao parque. Entrou num lugar disponível entre duas viaturas. Não viu ninguém em redor. Suspirou ao tempo que atirava o saco na bagageira. Afastou-se para ir dar a aula na Escola onde ouviu o toque da campainha quando, em passo estugado, estava a atravessar o átrio. No parque, dobrado atrás de um carro, saiu um embuçado que, servindo-se dum afeiçoado gancho, abriu a porta e entrou na bagageira do carro. Lá encontrou o triângulo exigido pela norma rodoviária e o saco. No saco só estava um telemóvel e uma carteira de pele com os cartões bancários. Não havia dinheiro, o que ele procurava para a cocaína.
O embuçado
Em menos de uma hora ela reentrou no carro e saindo do parque, tomou a estrada habitual da sua residência.
A circular fora da cidade, o embuçado dobrou o assento traseiro e saiu da bagageira com a navalha espanhola empunhada para o corte.
- Dá-me duzentos euros. Duzentos euros ou corto-te – foi a ordem recomendada pelo fio da navalha encostada ao pescoço.
- Eh…
- Duzentos euros ou corto-te.
- Não tenho esse dinheiro – conseguiu ela dizer.
- Vais direitinha à Caixa Multibanco, invertes a marcha e é como eu mandar, okay? Como eu mandar. Nada de sinais de luzes ou corto-te o “garganil”…
 Sob a pressão de uma mão na cabeça e o fio da navalha acatou a ordem.
- Viras à esquerda, que aí, à frente, há um Multibanco. Vais devagar e paras ao lado do Banco ou vais magoar-te. Aí, aí, para… Vais ao Multibanco e trazes o dinheiro.
Ela sai do carro, como um robot. Não vê ninguém a quem se socorrer. No Multibanco faz o código devagar, e retira 100 euros. Ouve um carro a aproximar-se. Corre, colocando-se na trajectória do carro, sujeita a ser atropelada. Os travões cedem à pressão do pé, e com grande ruído o carro agacha-se e evita o embate. Dele saem, ar aziago, dois homens robustos.
- Mas o que é isto? - a senhora quer matar-se?
Ela agarra-se a um dos homens.
- Ajudem-me… ele mata-me. Ali…- apontando

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"OS VENTOS DE NOVEMBRO ANTECIPAM O CALOR DO NATAL"

 Palmira Alvor Figueiredo 

Deu a centésima escovadela à pelagem. Mirou, com um trejeito altaneiro e prazenteiro, a imagem que o espelho das águas calmas e cristalinas lhe devolvia. Sorriu, plenamente satisfeita de si mesma. Um toque discreto de batom e um nico de pó de arroz completavam as sombras das invejas que lhe rasgavam os olhos. Era belíssima: curvas acentuadas no perfeito limiar de uma figura esbelta e estilizada e um pescoço longo com ausência dos papos que a gravidade baixava à idade. O padrão axadrezado da esplendorosa roupagem que a vestia acentuava-lhe o andar bamboleante que, a par com a sua juventude pressurosa, enlouquecia os machos deixando-os de água no bico.

Avançou, confiante, rumo ao terreiro onde a população se ia reunir nessa noite. Sim, a sua presença iria, muito seguramente, ser notada. Provocaria ainda mais falatórios e invejas, bem o sabia, mas esse incidir de toda a atenção sobre a sua pessoa servia-lhe de lenitivo – uma vingança que se saboreia devagar, degustando-lhe bem o sabor saltitante sobre as papilas, acendendo-lhe o fogo no olhar – acalmava-lhe as chagas que as ressabiadas da aldeia lhe deixavam no seu peito farto e firme. Até a sua própria mãe se lhes juntava nas críticas:

- Não te emboneques tanto que vais acabar mal!

Já nem a ouvia. Pensava ela que queria viver a sua vida pacata, cheia de narizes ranhosos sempre a puxar-lhe a bainha da saia, sem nada mais a que aspirar que não a comezinha vida familiar, aquele vegetar de existência sem aventura nem expectativa? Não! Ela estava guardada para voos mais altos. E bem exercitava as asas, diariamente, tentando ganhar força para dar vida a essa fuga. Queria o céu cintilante de um luar estrelado de um voo livre, não esse esgravatar de terra, esse castrante catar de segurança e amparo. Não! O seu corpinho bem cuidado não seria destruído nessa social maternidade de apatias, nessa feitoria de sossegos. Bastaria quando morresse. Até lá tinha todo um mundo para descobrir para além dos limites que o populacho conhecia. Por isso se cuidava, por isso apenas debicava de uma alimentação saudável que lhe brilhava e amaciava a pele.
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