Albertina Vaz
Passou
a vida no corredor. À espera.
Menina
de olhos tristes e ar sereno. Intranquila. Senhora da sua vontade e dona da sua
vida. Ao lado dos outros meninos era pequenina e saltitante, como uma bola de
sabão a deslisar ao sabor do vento. Teve, em tempos, um irmão que lhe pregava
rasteiras e a fazia estatelar-se no chão. Um irmão mais velho, mais forte e
homem.
Menina de olhos tristes e olhar sereno |
Naturalmente
tomava a dianteira, como todos os homens lá em casa. Quando saía ele acompanhava
o pai, ela, obedientemente, caminhava atrás, com a mãe e as outras mulheres da
casa. A obediência nunca fora a dominante da sua personalidade. Mas ia, ou
tinha de ir. Aproveitava para pontapear uma pedra ou saltar um charco onde a
luz se espalhava. E ouvia sempre alguém chamar-lhe rebelde. Por vezes
excedia-se e sujava tudo à volta.
E,
de castigo, ficava de pé, no corredor. Até que a ira lhe passasse, até pedir
desculpas.
O
pai preocupava-se -
criança rebelde que não faz o que lhe mandam, tem de ser dobrada!
obedientemente, continuava à espera, no corredor... |
A
vida ensinou-a a crescer e a rodopiar por entre as curvas do sol, enganando os
pingos de chuva que se mesclavam com a vontade de ter vontade própria. A
juventude abriu-lhe horizontes e mostrou-lhe caminhos diversos - aprendeu nos livros que
havia gentes que pensavam e que sabiam o que queriam. Ela sabia o que queria
também, mas, obedientemente, continuava à espera, no corredor, que a sua vez
chegasse.
Um
dia deixou de ser menina e achou-se mulher. Puseram-lhe um véu na cabeça,
vestiram-na de branco e achou-se bonita. E veio um homem, um outro homem que lhe
falou de sonhos e de desempacotar a vida. Pegou-lhe na mão. Fez-lhe promessas,
criou-lhe desejos e jurou-lhe uma submissão diferente. Ainda tentou resistir
mas voltou a deixar-se ir, a obedecer, a subir a escada depois do homem que lhe
falava da cor e da esperança. Na sua cabeça martelava a voz do pai: a mulher
tem se submeter à vontade do marido, aceitando e suportando tudo em nome da
família.
E
fez-se a passagem, de obediência em obediência: no corredor continuava à
espera. As costas começaram a vergar-se e o peso amontoava-se nos vãos das
escadas. A felicidade de ser mãe deu-lhe um novo sorriso e a esperança de
encontrar o rumo doutra página que queria distinta. E as crianças cresceram
inundando a casa dum calor que quis diverso. Construiu um caminho de paz e de
intimidade procurando compreender e respeitar, procurando o sonho dos filhos e
cavando cada vez mais fundo o seu desaparecimento.
Deu por si, uma vez mais, no corredor |
Quase
sempre voltava ao corredor, à espera de poder entrar no espaço que era de cada um e não lhe pertencia. E, pacientemente, obedecia. Obedecia, já nem sabia a
quem. Os dias tornaram-se um sufoco e o corredor passou a crescer como um
túnel, longo e comprido, sem fim. Sem luz, sem porta de chegada, sem destino,
sem direcção.
Voltou
ao corredor. Deu por si a arranjar desculpas, a sugerir-se datas, a inventar um
tempo, um dia e um espaço em que o tempo fosse seu e a liberdade deixasse de
ser uma palavra sem sentido e sem sabor.
Mas
os filhos cresceram e vieram os netos e a alegria de voltar a nascer de novo. E
soltaram-se os impulsos, a necessidade de agradar, o imperativo de cativar. Voltou
a saborear a alegria de um choro de criança, as noites mal dormidas, o brilho
do sol num olhar frágil, os passeios pela praia, as corridas na areia. E aquela
cumplicidade feita de sorrisos e de risos trocados e de segredos escondidos e
de dádivas partilhadas num mundo imaginário.
Um dia soltou-se ... endireitou a curvatura das costas e quebrou o corredor |
E os
filhos que tanto amava também começaram a exigir-se-lhe. Eram tarefas,
horários, imposições crescentes, imperativos necessários. Sentiu-se prisioneira
dentro de si e ve sem asas, dentro de uma gaiola.
Deu
por si, uma vez mais, no corredor. De novo a obedecer. As suas costas vergavam-se
sob o peso de muitos anos de muita obediência. Era o tempo de terminar, de
parar de inventar desculpas, de deixar para mais tarde, para depois. Era o
tempo de agarrar nas mãos a sua própria vida e construir um tempo seu, mesmo
que, à sua volta, tudo pudesse ter-se inflamado ou destruído.
Um
dia soltou-se e aprendeu que a mudança estava ali, ao seu alcance. Bastava só
estender a mão, abrir a porta, caminhar em frente, endireitar a curvatura das
costas e quebrar o corredor.
Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal
Uma profunda reflexão sobre a condição da Mulher. Um texto magnífico. Destaco a imagem do "corredor". Tal como a Mulher do texto, a Mulher subjugada, por vezes, só tardiamente descobre a porta de saída da situação que a oprime e a de entrada num espaço que lhe permita participar plenamente num projeto coletivo onde a igualdade de género não seja apenas uma teoria. Parabéns, Albertina! Feliz dia da Mulher!
ResponderEliminarMorreram e morrem tantas mulheres neste país!
ResponderEliminarFraca justiça a que permite que agressores continuem a viver junto das agredidas.
Fraca democracia em que a prepotência dos mais fortes sobre outros, começa logo na casa de cada um.
Fraca postura de muitas "dóceis" mulheres que se esquecem que o são.
Ter este texto, escrito por uma MULHER ao alcance da mão, pode dar o impulso para o "abrir a porta, caminhar em frente, endireitar a curvatura das costas e quebrar o corredor.
UM DIA: ainda para tão poucas...
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