Poemas e Livros

Saudade




Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

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Há mulheres que trazem o mar nos olhos



 Há mulheres que trazem o mar nos olhos
 Não pela cor
 Mas pela vastidão da alma
 E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
 Ficam para além do tempo
 Como se a maré nunca as levasse
 Da praia onde foram felizes
 Há mulheres que trazem o mar nos olhos
 pela grandeza da imensidão da ALMA
 pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
 Há mulheres que são maré em noites de tardes
 e calma.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in OBRA POÉTICA


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Palavras para a minha mãe

Mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
Pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
Às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
Lê isto: mãe, amo-te.
Eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

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Poema do mais triste Maio


Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.

Acabou-se a idade das rosas!
Das rosas, dos lírios, dos nardos
E outras espécies olorosas:
É chegado o tempo dos cardos.

E passada a sazão das rosas,
Tudo é vil, tudo é sáfio, árduo.
Nas longas horas dolorosas
Pungem fundo as puas do cardo.

As saudades não me consolam,
Antes ferem-me como dardos.
As companhias me desolam,
E os versos que me vêm, vêm tardos.

Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.


(in Manuel Bandeira, Antologia, Relógio d'Água)



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40 ANOS DE 25 DE ABRIL



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Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

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Vinicius de Morais



Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude

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Para reviver o passado, próximo ou mais afastado

“Memórias a Mil Vozes” é um livro com recordações de sete pessoas (Albertina Vaz, Conceição Cação, Dores Picado Topete, Fernanda Reigota, José Luís Vaz, Júlia Sardo e Maria Jorge) que delegaram em Ana e Miguel, as personagens à volta das quais as estórias se revelam, «como se de um filme se tratasse», a arte de os representar. 
Este trabalho, que nasceu como projeto de um grupo assente na Escrita Criativa, guia os leitores, com poesia e muito sabor, numa caminhada que reflete «os últimos sessenta anos de um povo que atravessou o longo túnel de todos os esquecimentos e surge renovado e repleto duma esperança que quer preservar», como se lê na contracapa.
As estórias em boa hora registadas neste livro de 396 páginas, editado por Chiado Editora, conduzem os leitores a vivências comuns a muita gente de várias gerações e estratos sociais, sendo certo que predomina, no essencial, o povo da nossa terra e região, com alegrias e tristezas, lutas e desafios, sonhos concretizados ou adiados, projetos de um mundo melhor, ideal permanentemente de portas abertas a quem não se conforma com a dormência em que alguns vegetam por comodismo ou conformismo. 

Os autores, da esquerda para a direita: Júlia Sardo, Dores Topete,
Conceição Cação, José Luís Vaz,Maria Jorge, Albertina Vaz
e Fernanda Rendeiro

Da leitura que fizemos, meditada serenamente, queremos realçar que nos sentimos conduzidos aos tempos de férias da infância nas praias e em terras onde nunca fomos, e que nos sentámos à mesa e ao borralho da cozinha da avó onde não faltavam os petiscos que ainda perduram nas nossas memórias. Também gostámos de reviver o namorar e o casar de outras gerações, enquanto confirmámos que «os avós [ontem como hoje] desempenham um papel insubstituível na educação dos mais novos». Ainda percebemos a importância de conviver, «sempre fascinante», e reconhecemos como é bom chegar a casa, onde nos familiarizámos «com os passarinhos a espreitar no quintal». 
No Prefácio, Hélia Santos frisa que, «Ao cristalizar as suas recordações individuais e familiares, organizando-as neste “arquivo” literário de memórias, os autores contribuem para a memória coletiva e cultural de um tempo». E diz mais: «As estórias da Ana e do Miguel transportam-nos numa experiência que muitos leitores irão reconhecer como sua, e que os próprios autores partilham “a mil vozes”. A alegria entusiástica e a voracidade com que cada capítulo é contado, comprovam que “a memória é uma criança que se deixa contagiar pela alegria de recordar”.»
Em Nota de Abertura, o leitor fica a saber que o grupo se constituiu há um ano, referindo-se que «Quase ninguém se conhecia». Contudo, barreiras foram vencidas e o gosto pela escrita dos sete autores, nos quais se inclui a animadora, Fernanda Reigota, levou-os «à partilha da palavra que era de cada um, mas se dava a todos, em textos que surpreendiam pela revelação do outro». 
Como sugestão, podemos adiantar que a importância deste livro não está só nas memórias partilhadas pelo grupo de Escrita Criativa, mas ainda nas recordações que decerto ressurgirão em cada leitor. Sentimos, pois, que, a cada estória nele contada, outras hão de brotar na nossa memória, levando-nos, indubitavelmente, a reviver o passado, próximo ou mais afastado. 
O sentido de solidariedade está bem patente na declaração inscrita na contracapa, onde se diz que os direitos de autor revertem para a Cáritas Portuguesa.

Fernando Martins in http://www.pela-positiva.blogspot.pt/2014/02/memorias-mil-vozes.html

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MEMÓRIAS A MIL VOZES


Ana e Miguel são as personagens
à volta dos quais esta história revela, como se de um filme se tratasse,
os últimos sessenta anos de um povo
que atravessou o longo túnel de todos os esquecimentos
e surge renovado e repleto duma esperança que quer preservar.
E, caminhando a seu lado, um cortejo de amigos,
de longe e de perto, de ontem e de hoje,
testemunha a evolução de quase um século da nossa História,
a nível da saúde, da educação, da tecnologia…
da emigração - uma quase obrigação-vocação do povo português.

É neste caminho que cada leitor se revisitará.

A magia das brincadeiras e das vivências da infância derrama-se na relação com os filhos e projeta-se no futuro com os netos: estes são tão filhos como os filhos, mas Ana e Miguel tiveram de aprender a serem avós.
Sentem a vida como um desafio que os obriga a entrelaçarem pacientemente laços de afetividade, constantes aprendizagens e permanente sentido de observação.
O presente é vivido pelo casal tão intensamente como a recordação do passado. E, já avós, mas com um filho ainda a estudar, Ana e Miguel, protagonistas de décadas de muitas e profundas mudanças, continuam a refletir sobre a urgência de outras revoluções, interrogando-se sobre um futuro que se adivinha nebuloso…

Albertina Vaz, Conceição Cação, Dores Picado Topete, Fernanda Reigota, José Luís Vaz, Júlia Sardo, Maria Jorge ©

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Os bonzinhos e os malvados




Dum lado os bonzinhos
com o seu ar sisudo
andando aos passinhos
dentro do veludo.


Do outro os malvados
cabelos ao vento
de fatos coçados
por bom e mau tempo.


Dum lado os bonzinhos
gordinhos, gulosos
comendo pratinhos
muito apetitosos.


Do outro os malvados
a ferrar o dente
em grandes bocados
de chouriço ardente.


Dum lado os bonzinhos
com muito cuidado
a dar beijinhos
com dia aprazado.


Do outro os malvados
a fazer amor
sem dias marcados
com frio ou calor.


Dum lado os bonzinhos
muito estudiosos
dizendo versinhos
em salões ranhosos.


Do outro os malvados
gritando na rua
que os braços estão dados
que a esperança está nua.


Dum lado os bonzinhos
metidos na cama
tomando chazinhos
molhando o pijama.


Do outro os malvados
os que dormem nus
sonhando acordados
com feixes de luz.


Dum lado os bonzinhos
batendo nos tectos
sempre que os vizinhos
são mais incorrectos.


Do outro os malvados
que fazem barulho
despreocupados
ao som do vasculho.



Teremos por certo
os gostos trocados
detesto os bonzinhos
adoro os malvados.


José Carlos Pereira Ary dos Santos

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Receita de Ano Novo



Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.



Texto extraído do "Jornal do Brasil", Dezembro/1997.




                                            Carlos Drumond de Andrade

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NATAL 

Chove. É dia de Natal. 
Lá para o Norte é melhor: 
Há a neve que faz mal. 
E o frio que ainda é pior. 

E toda a gente é contente 
Porque é dia de o ficar. 
Chove no Natal presente 
Antes isso que nevar. 

Pois apesar de ser esse 
O Natal da convenção, 
Quando o corpo me arrefece 
Tenho frio e Natal não. 

Deixo sentir a quem quadra 
E o Natal a quem o fez, 
Pois se escrevo ainda outra quadra 
Fico gelado dos pés. 



Fernando Pessoa


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 Um dia a maioria de nós irá se separar…

Vinicius de Moraes faria hoje 100 anos
Recordar a sua obra mantém viva a memória da sua poesia
Um dia a maioria de nós irá se separar. Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, as descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que compartilhamos... 

Saudades até dos momentos de lágrima, da angústia, das vésperas de finais de semana, de finais de ano, enfim... do companheirismo vivido... Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre... 

Hoje não tenho mais tanta certeza disso. Em breve cada um vai pra seu lado, seja pelo destino, ou por algum desentendimento, segue a sua vida, talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nos e-mails trocados... 


Podemos nos telefonar... conversar algumas bobagens. Aí os dias vão passar... meses... anos... até este contato tornar-se cada vez mais raro. Vamos nos perder no tempo... 


Um dia nossos filhos verão aquelas fotografias e perguntarão: Quem são aquelas pessoas? Diremos que eram nossos amigos. E... isso vai doer tanto!!! Foram meus amigos, foi com eles que vivi os melhores anos de minha vida! 


A saudade vai apertar bem dentro do peito. Vai dar uma vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente... Quando o nosso grupo estiver incompleto... nos reuniremos para um último adeus de um amigo. E entre lágrima nos abraçaremos... 


Faremos promessas de nos encontrar mais vezes daquele dia em diante. Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vidinha isolada do passado... E nos perderemos no tempo... 


Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades... 


Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores... mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!!!


Vinicius de Moraes  

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POEMAS DE TODA A VIDA





Destino

I

Trago na fonte
e estrela do fogo
da minha revolta
Nunca aceitaria qualquer tirania
nem a do dinheiro
nem a do mais justo ditador
nem a própria vida eu aceito...
tal como ela é
com todas as promessas
do amor e da juventude
e a parda doença
de envelhecer
a morte em cada dia
antecipada

II

Na mais lebrega alfurja
ou na cama de folhas macias
da floresta
onde a chuva te adormeceu
há sempre um diamante de sol
cujos raios te penetram de
ventura
ao sonhares a palavra
liberdade

III

Quando a terra poluída
tiver sorvido
toda a água dos lagos e das
fontes
hei-de levar o meu fantasma
até ao porto sonoro
onde a esperança cai a pique
sobre o mar dos desejos sem limite


Urbano Tavares Rodrigues, in "Horas de Vidro"


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Queria que os portugueses





Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro. 


Agostinho da Silva, in Poemas


(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 14 de Julho de 2013


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Antes que seja tarde




 Amigo,
 tu que choras uma angústia qualquer
 e falas de coisas mansas como o luar
 e paradas
 como as águas de um lago adormecido,
 acorda!
 Deixa de vez
 as margens do regato solitário
 onde te miras
 como se fosses a tua namorada.
 Abandona o jardim sem flores
 desse país inventado
 onde tu és o único habitante.
 Deixa os desejos sem rumo
 de barco ao deus-dará
 e esse ar de renúncia
 às coisas do mundo.
 Acorda amigo,
 liberta-te dessa paz podre de milagre
 que existe
 apenas na tua imaginação.
 Abre os olhos e olha
 abre os braços e luta!
 Amigo,
 antes da morte vir
 nasce de vez para a vida.


 Manuel da Fonseca, in Poemas Completos,Editora Forja

(Remetido para publicação por Fernanda Rendeiro)
Publicado por Evoluir em 6 de Julho de 2013

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Mãos Dadas



Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade - Antologia Poética

(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 3 de Julho de 2013

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Sou Lúcido
Coitado do Álvaro de Campos!

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
Aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

(Remetido para publicação por José Luís Vaz)
Publicado por Evoluir em 18 de Junho de 2013


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Camões


Miguel Torga

Nem tenho versos, cedro desmedido,
Da pequena floresta portuguesa!
Nem tenho versos, de tão comovido
Que fico a olhar de longe tal grandeza.

Quem te pode cantar, depois do Canto
Que deste à pátria que to não merece?
O sol da inspiração, que acendo e que levanto,
Chega aos teus pés e como que arrefece.

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.
Chamar-te herói é dar-te um só poder.
Poeta dum império que era louco,
Foste louco a cantar e louco a combater.

Sirva, pois, de poema este respeito
Que te devo e confesso,
Única nau do sonho insatisfeito
Que não teve regresso.

Miguel Torga, Poemas Ibéricos

(Remetido para publicação por Conceição Cação)
Publicado por Evoluir em 10 de Junho de 2013

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O POETA E A ROSA
(E COM DIREITO A PASSARINHO)

Que linda!

Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza…!
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca
(Diga-se isso a bem da rosa…),
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

− Que foi? Balbucia o poeta
E a rosa: − Calhorda que és!
Para de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

São milhões! - a rosa berra
E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

− São milhões! – a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome…!



E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
− É aqui que a rosa respira…
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.

Vinicius de Morais, Poesia Completa e Prosa
(Remetido para publicação por Conceição Cação)
Publicado por Evoluir em 4 de Junho de 2013

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Congresso Internacional do Medo



Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas
.


Carlos Drummond de Andrade
(Poema publicado em Antologia Poética – 12a edição - Rio de Janeiro)



(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 12 de Maio de 2013
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POEMA À MÃE


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -                                              

E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu  vou com as aves
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves. 




Eugénio de Andrade
in Os Amantes Sem Dinheiro

(Remetido para publicação por José Luis Vaz)
Publicado por Evoluir em 5 de Maio de 2013

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O FUTURO






  Isto vai meus amigos isto vai
  um passo atrás são sempre dois em frente
  e um povo verdadeiro não se trai
  não quer gente mais gente que outra gente.


  Isto vai meus amigos isto vai
  o que é preciso é ter sempre presente
  que o presente é um tempo que se vai
  e o futuro é o tempo resistente.

  Depois da tempestade há a bonança
  que é verde como a cor que tem a esperança
  quando a água de Abril sobre nós cai.

  O que é preciso é termos confiança
  se fizermos de Maio a nossa lança
  isto vai meus amigos isto vai


José Carlos Ary dos Santos, Tríptico do Trabalho

(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 1 de Maio de 2013

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Entre o Sono e Sonho

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim. 
                                                       

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 25 de Abril de 2013

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Pelas sete da tarde

Pelas sete da tarde
é que o sonho começa:
a tua mão na minha
e a minha cabeça
encostada ao teu ombro.
Depois é o assombro                                      

A tua mão na minha
do amor reencontrado
a sós no nosso canto.
O silêncio e o espanto
a paixão o segredo
a recusa do medo
o meu falar alegre
o teu livro tão sério
a música tão leve
o instante tão breve
o sono e o mistério.



Às sete da manhã

é que o sonho termina.
E afrontamos o dia

a tua mão na minha

um trejeito na alma

um tremido na boca

até que a multidão

me leva e me sufoca

e nos desprende e solta 

os meus de
dos dos teus.




P'ra te dizer adeus
Há um barco que chega

um comboio que chora.

Num mar de gente à deriva

eu náufraga da hora

ergo um braço no ar

p'ra te dizer adeus.






Rosa Lobato de Faria, Poemas Escolhidos e Dispersos, Roma Ed.




(Remetido para publicação por Fernanda Rendeiro)

Publicado por Evoluir em 6 de Abril de 2013
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TRIGNOMETRIA AMOROSA


Às folhas tantas do livro de matemática,
um quociente apaixonou-se um dia doidamente por uma incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável e viu-a, do ápice à base.
Uma figura ímpar olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo ortogonal, seios esferóides. Fez da sua uma vida paralela a dela até que se encontraram no infinito.
"Quem és tu?" - indagou ele com ânsia radical.
"Eu sou a soma dos quadrados dos catetos,
mas pode me chamar de hipotenusa".
E de falarem descobriram que eram o que, em aritmética,
corresponde a almas irmãs, primos entre-si.
E assim se amaram ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação traçando ao sabor do momento e da paixão retas,
curvas, círculos e linhas senoidais.
Nos jardins da quarta dimensão,
escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
e os exegetas do universo finito.
Romperam convenções Newtonianas e Pitagóricas e, enfim,
resolveram se casar, constituir um lar mais que um lar,
uma perpendicular.
Convidaram os padrinhos:
o poliedro e a bissetriz, e fizeram os planos, equações e diagramas para o futuro,
sonhando com uma felicidade integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones muito engraçadinhos
e foram felizes até aquele dia em que tudo, afinal, vira monotonia.
Foi então que surgiu o máximo divisor comum,
frequentador de círculos concêntricos viciosos,
ofereceu-lhe,
a ela, uma grandeza absoluta e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, quociente percebeu que com ela não formava mais um todo, uma unidade.
Era o triângulo tanto chamado amoroso desse problema,
ele era a fração mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser moralidade,
como, aliás, em qualquer Sociedade ...


Millôr Fernandes

(Remetido para publicação por Albertina Vaz)
Publicado por Evoluir em 4 de Abril de 2013

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NÃO, NÃO QUEREMOS CANTAR

(Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos
Preferimos andar aos gritos
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos…
Aos gritos, sim, aos gritos.
E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas…

… Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.

José Gomes Ferreira, Poesia I, Portugália

(Remetido para publicação por Fernanda Rendeiro)
Publicado por Evoluir em 31 de Março de 2013


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Testemunho de leitura
Ouvi Nuno Júdice numa entrevista de apresentação deste seu novo livro – a primeira edição é de fevereiro de 2013 – e logo o acrescentei às minhas prioridades de leitura.
Esta novela de 118 páginas e com um percurso narrativo singular, que deixo totalmente para o leitor desvendar, assumo-a como um ensaio político e sociológico excecional.
Dá consistência à revolta que muitos portugueses sentem neste país à beira de um precipício adivinhado, mas silenciado, nesta Europa onde o massacre dos povos já não é feito com baionetas.
Nuno Júdice, escritor-poeta, revisita o passado para apreender o presente e oferece-nos esta obra que sintetiza a consciência inquieta do nosso sentir coletivo.
Assim que me apercebi de a teia narrativa estar pontuada de frases lapidares1, tradutoras da minha inquietação face ao futuro do país, continuei a ler de lápis em punho. Escrevi cada uma dessas frases. No fim da leitura, o rosto do ditador do século XXI estava muito mais nítido
É uma obra de leitura obrigatória!
1Com a devida vénia, transcrevo um exemplo da página 60: “Agora, a trincheira de cada um é o sítio em que ele trabalha e só está à espera que apareça um fiscal do governo, a baioneta dele é a folha de despedimento, e está morto, pode não estar morto na realidade, mas foi riscado do mundo dos que contam, irá para a valeta, e isso representa uns milésimos de centavo a menos no défice, nas contas públicas, na folha que a pátria vai ter de apresentar aos credores para mostrar que se porta bem, que não anda na noite, a gastar o que não é dela.
(Remetido para publicação por Fernanda Rendeiro)
Publicado por Evoluir em 29 de Março de 2013
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Vi as águas os cabos vi as ilhas



Só do Preste João não vi sinais

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som das suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações, Caminho
(Remetido para publicação por Fernanda Rendeiro)
Publicado por Evoluir em 27 de Março de 2013
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EVOLUIR agradece este texto para publicação


Maria Cacilda Marado



A Instalação do Medo, de Rui Zink

A Instalação do Medo de Rui Zink é uma eloquente sátira aos comportamentos dos poderes instituídos. Bem assim, às manigâncias de que estes poderes se servem para, paulatinamente, estenderem os seus tentáculos, à luz do panóptico de Jeremy Benthan.
O medo, a palavra-chave do texto, o seu itinerário e a sua disseminação, pela vida dos cidadãos, constituem o miolo deste texto bem marcante. E tudo numa linguagem irónica, cativante, fluente, verrinosa, pejada de neologismos, como que a comprovar que são os falantes que fazem a língua, neste caso, os que a grafam. Mas, sobretudo, a mensagem de que o poder, que pensam ter os que o detêm, ou para isso são mandatados, pode ser destronado, Afinal o que aconteceu no final do texto: os instaladores do medo e as suas estratégias de o instalar depararam-se com a técnica ainda mais violenta de um outro agente! Na verdade, o poder circula, não é pertença apenas de um grupo ou de alguém.
Em suma: um texto que prende o leitor desde o inicio, pois, para além dos aspectos referidos, está absolutamente enquadrado nos dias em que vivemos.

3 comentários:

  1. É um enorme previlégio podermos, a partir de hoje, contar com a colaboração de Maria Cacilda Marado que nos brindou com um convite á leitura e apreciação dum livro tão actual nos tempos que vivemos. EVOLUIR inicia hoje uma nova página que fica à espera de todos os que connosco queiram partilhar um poema, uma critica, um evento, enfim tudo o que interesse aos seus leitores.

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  2. Considero muito interessante e útil esta nova página. Vai facilitar-me a seleção e aprofundamento das minhas leituras, começando por este livro. Obrigada, Cacilda. É muito estimulante termos-te como colaboradora.

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