terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Por falar em violência…

A sala, nova e generosamente iluminada pela luz do sol, franqueada por duas janelas rasgadas, bem podia ter sido um local acolhedor. 
... um fogão a lenha
A um canto, um fogão a lenha, oferecia-se para nos mimar com um pouco de calor nos invernos demasiado rigorosos para os nossos agasalhos tão singelos. Mas tudo à nossa volta era frio e impessoal. Na frente, sobre o quadro preto, as fotografias emolduradas de Oliveira Salazar e Américo Thomaz impunham-se aos nossos olhos indefesos. A meio da parede, entre os dois - que mais pareciam o bom e o mau ladrão - um Cristo agonizante, na cruz.
Era neste cenário que pontificava a D. Cândida. Cândida? Que nome desajustado! Confirma bem o caráter arbitrário do signo linguístico! A residir e a lecionar na aldeia há duas gerações, era vulgarmente apelidada de “a senhora velha”. Sem qualquer sentido pejorativo, esta designação, a um tempo, ingénua e rude, servia para a distinguir dos professores e professoras dos rapazes, sempre mais jovens, que nunca por lá permaneciam por muito tempo. 
Ninguém discordava dos seus
métodos repressivos
Comparada com os seus colegas, a “senhora velha”, de acordo com os parâmetros do povo, ganhava-lhes invariavelmente aos pontos - pela assiduidade e pontualidade, pelos resultados dos alunos, mais visíveis nos exames, onde, segundo dizia, nunca sofrera uma reprovação e o desempenho variava entre o Bom e o Excelente. Era considerada uma professora modelar, com uma autoridade que ninguém ousaria contestar. Ninguém dava mostras de discordar dos seus métodos repressivos, o que aumentava ainda mais a nossa fragilidade e vulnerabilidade perante ela.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Mulher do Mar

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Manhã cedo vais para a praia

No silêncio da praia
Ao cair da noite
A mulher vareira
Contempla o mar!
Fixa os olhos nas ondas
Que reflectem o brilho do luar!

Tua vida castigada
Entre ser mãe e vareira!
Tanta luta, tanto amor
Uma vida de canseira.

Tuas noites mal dormidas
Envoltas em sonhos de aflição!
Manhã cedo, vais para a praia
Para vender teu pregão!

Oh, mar cruel!
Porque mataste quem amo?
Se me dás pão para a vida
Não sejas tão desumano!

Mulher que a força da vida
Fez dela um exemplo
De luta e dedicação!
Enxuga tuas doces lágrimas
O mar pedirá perdão!

Isabel Maria ©2014,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A PORTA DA LIBERDADE


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


No principiar de uma vida que tudo prometia, como mulher, sentia-me só tua.
Um aflorar de acontecimentos, a cada dia, desabrochava: era o nosso tempo primaveril.
Batias-me no meu coração de amor, e as tuas palavras afáveis enterneciam-me.
De repente, mudaste e tudo mudou – os meus olhos (cegos) pela paixão consumada não queriam enxergar a realidade nua e crua: deixaste de ser homem.
Usava, eu, uma venda invisível, e tu mostraste a capa que te protegia – e uma contracapa destrutível.
Deixei de te conseguir ler.
A tua voz serena, de outrora, perdeu-se.
Deixei de te conseguir ler
Mal abria a porta, a tua voz esbravejava, e perdia-se, a cada dia, a pessoa que tanto amava.
A tua voz atroava a minha alma perdida, por ti, para sempre esquecida.
Derruíste por dentro, humilhando-me como só tu gostavas de o fazer; afastaste-me dos meus amigos – e eu procuro, numa busca incessante e suplicante, em vão,   outros abrigos.
As nossas aventuras, outrora narradas, tornaram-se em dias inenarráveis: nada do que valha a pena ouvir.
Possuis um corpo infame: pesado e sem graça – tornaste-te na minha desgraça.
Livrar-me de ti tornou-se uma tarefa afanosa, diria, até mesmo, laboriosa.
Jamais me poderia prostrar perante uma pessoa que aguava por se vingar numa alma frágil e sensível.
A tua forma de ser (desabrida) levou-me a agir: um dia, fechei-te a porta na cara e LIBERTEI-
-ME.
Abri a porta: a da LIBERDADE.
Agora - sim, assumo a forma do que sou: MULHER DE VERDADE.
E o bater do meu coração sentiu um novo batimento: o da TRANSVERSALIDADE.


26-11-2013


Cristina Teixeira Pinto ©2014,Aveiro,Portugal

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Medo: e a dúvida abre em ferida

Tinham na face o olhar assustado de quem viu muito e não quis assistir a nada: eram meninos amedrontados que se escondiam para não serem notados. Partilhavam o mesmo quarto numa instituição que os acolhera como quem recebe uma encomenda: muitos abraços, muitos beijos e depois o silêncio. Um silêncio que faz doer em cada linha do corpo e que cala as esperanças e se esvai por entre as voltas das mãos e se espalha por entre os fios que sobram das meadas e se esgota numa gota de água que fluidifica a chuva miudinha que persiste em cair.
Trazem consigo uma história de vida que parece não ter princípio nem fim. Simplesmente está ali, aconteceu, como se não houvesse nada tão inevitável nem tão tangente.
Rosto sem expressão
A Joana era uma criança de apenas seis anitos: cara macilenta, olhos desmedidamente grandes quase a saltarem para o chão, rosto sem expressão – nem um esgar de dor nem de prazer. Impassível como se à sua volta nada estivesse a acontecer. Braços alongados ao lado do corpo, parados, numa imobilidade que não se adequa a uma criança nem se sentem nos intervalos do bem-querer. A Joana tinha sido a vítima de uma relação mal sucedida entre dois seres humanos – um homem, uma mulher – que, sem o quererem, deixaram de se gostar e não quiseram reinventar o amor. Um dia assistiu a uma discussão, no dia seguinte a zanga recomeçou, os berros, os gritos pareciam querer quebrar-lhe a cabeça e deu por si a fechar-se sozinha no quarto que já não era seu e onde se sentia refém de um amor desavindo entre aqueles que sempre tinham sido o seu suporte emocional.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Bizarros?!

Vamos retomar hoje o ciclo denominado “Violência sobre o ser humano”, após interrupção devida à época de Natal em que entendemos publicar textos com temáticas alusivas à época.

Voltamos a convidar todos os que queiram escrever sobre este tema e queremos dizer-vos que estão ainda a tempo de enviar os vossos trabalhos.

O dia seguinte seria igualmente quente – assim o fazia prever o calendário, assim o prometia o vermelho-alaranjado do poente. Através da janela, chegara-nos o apelo da beleza daquele semicírculo verdejante a quebrar a palidez monótona dos prédios em redor – sentir a frescura daquele retalho de natureza num fim de tarde cálida. E aí estávamos nós, neste cenário cheio de cor, numa conversa a meia-voz. Um taisez vous (Calem-se) disparado do alto dum quinto andar, impôs o silêncio.
Em frente, do outro lado da rua, o parque infantil – baloiços imobilizados, escorregas vazios, cavalinhos paralisados, portão encerrado… O que ainda há pouco transbordava de alegria e animação era agora vazio, inutilidade. Também os jovens plátanos, alinhados no passeio, pareciam invadidos por uma rigidez de pedra – nem o pipilar dum pássaro, nem o bulir dum ramo… Próximo do parque infantil, encimando uma coluna de mármore, um relógio moderno, de ponteiros esguios, rodando, num rodar lento mas constante, parecia sussurrar: Carpe diem! (Aproveita o dia!). Aquela quietude, feita de isolamento e ausência, fez-me sentir saudades da minha rua: branqueadas pelo tempo e pela distância, até as vozes boçais dos jogadores de cartas do café da esquina ressoavam na minha memória como acordes harmoniosos. E se fôssemos à Défense? Lojas luxuosas, pessoas que entram, que saem, que se apressam, que se detêm em frente às montras; parisienses, turistas, emigrantes, árabes, africanos, marcas dum império que se desfez… Alta costura francesa, saris, burcas, lenços, bonés, quipás … Não, nada de cosmopolitismo exacerbado, o silêncio começava a contagiar-nos. Ali bem perto, o mercado do Moulin de Chantecoq e as ruas circundantes afiguravam-se-nos como uma boa alternativa – desfrutar da calma do crepúsculo e contemplar, lá do alto, a elegância da Torre Eiffel; o orgulhoso Arco do Triunfo; mais além, a dominar a elevação de Montmartre, a religiosidade do Sacré Coeur; todo o encanto da cidade-luz nesse tempo misterioso em que o dia se despede e a noite avança docemente.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

À BORDA D’ÁGUA

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Retiro-me da cama para arrastar o corpo, ainda semiadormecido. A fresta da janela anuncia que ainda não há sol. A persiana confirma. No horizonte, esparsamente esbatido, é a cor  do cinzento que domina.
Mais um dia que amanheceu sem aviso, à mesma hora, com o ósculo da vida.
O pensamento drena-me a ácida repulsa pelo trabalho.
Afasto a hipótese da ida ao escritório.
A tua imagem aparece obsessiva, como uma necessidade sem alternativa.
Vou procurar encontrar-te, decido.
Vou procurar encontrar-te, decido.
Aguardo que não sejas esquiva!
Quero apanhar-te os passos para me induzir na força  com que me  grudei em ti.
Contigo,  de “carava,” iremos onde quiser a tua fantasia, com a promessa de não te martelar a paciência. Mas não abdico de perguntas.
Bem sabes que não costumo nem quero causar-te constrangimentos quando te acompanho.
Será um passeio repetido à procura de uma justificação, ou, antes, de uma confirmação.   Presumo que aguardas que confirme o que tu há muito pensas que sabes. E eu, é exactamente porque sei que pensas que  sabes o que posso dizer-te, sem nada te dizer,  que me contenho em não to dizer.
Mesmo assim, acompanho-te acometido da coragem para decantar  termos que preanunciem o reiterado interesse. Sabes que o modo como repetidamente me olhas quando te gingas nos teus passos me desperta a ousadia das palavras. Sabes que me vences com a magia do gesto com que acompanhas as frases curtas, doces, mastigadas e soletradas.

domingo, 12 de janeiro de 2014

NA MINHA TERRA HÁ UM LARGO… ou (A cidadania dos Velhos)

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Os bancos estavam deveras molhados e a chuva continuava a cair em tempo de Outono. Por isso os velhos não ousaram sair de casa e, assim, naquela tarde, o Largo do Bispo estava tristemente deserto.
...tristemente deserto
Só esta circunstância permitia que pardais, gentilmente, expugnassem, àquela hora, o empedrado do largo na sua luta pela sobrevivência, misturando-se com eles folhas caducas das tílias do jardim que se colavam no pavimento em decorações de tristeza. Ou que um cão vadio, andarilho da cidade, ali viesse alçar a perna contra uma floreira uma vez, e outra contra o pedestal da estátua do bispo, para logo se pôr a caminho em passo corrido com destino incerto.
O relógio da torre da igreja bateu as três da tarde e toda a cidade ouviu. Então, em uma qualquer casa, num qualquer beco, uma mulher estaria a dizer ao seu homem:
- Já são três horas e está a chover. Hoje não te governas porque não vai haver “Bispo” para ninguém!
Mas ele não desistia de espreitar pela nesga da janela na esperança de ver, no céu, uma réstia de azul.
...um vulto parado
Se o largo estava morto, o mesmo não se podia dizer da estrada e avenidas contíguas e também dos passeios que o ladeiam. Automóveis deslizavam velozes ou arrancavam ruidosamente à ordem de sinais verdes, incessantes, num sufoco de mau cheiro. E às portas das lojas envolventes fechavam-se e abriam-se guarda-chuvas que, em andamento pelos passeios, produziam uma movimentação ofegante e tristonha.
Misturado neste vaivém, um vulto parado tornava-se uma evidência. Era um homem velho, muito velho, de pé sobre o lancil do passeio no outro lado da estrada oposto ao largo, curvado sobre a bengala e os anos. Na outra mão o guarda-chuva aberto, ao invés de lhe pesar parecia querer suspendê-lo para que se endireitasse um pouco.
Via-se que não era ali que queria ficar por serem frequentes as tentativas de fixar no asfalto da estrada a ponta da bengala.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Se bem me lembro

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Quem nunca roubou rosas jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas. Cito Clarice Lispector. Li estas suas palavras (aliás, li toda a crónica Cem anos de perdão) com um sorriso nos lábios, sentindo-me conivente, desejosa de peregrinar pelos quatro cantos do passado e recuperar imagens, fazê-las ganhar voz, fazê-las dançar como marionetes na ponta dos meus dedos.
...jogar à macaca
     Se bem me lembro, também eu, em garota, roubei flores. Vivia então numa cidadezinha com sotaque bucólico, onde não faltavam palcos faz-de-conta para lúdicas actuações: saltar à corda, jogar às escondidas, à macaca, ao ringue, ao lencinho.
     Nas cercanias do liceu (que todos nós, aos dez, onze anos, já frequentávamos) ficava o Jardim do Campo. No Campo, havia espaço para os pés correrem, havia um coreto cúmplice das nossas brincadeiras, havia flores, árvores, bancos pintados de verde. Havia também um jardineiro que detestava a garotada. “Ah, seus malandros, se eu vos apanho!” O rosto do homem tinha acentuados traços de caricatura.
 E aquele bigodaço, céus! Aquele bigodaço (descomedidamente adubado, desprimorosamente podado) metia respeito. Como se isso não bastasse, o fulano costumava ilustrar as suas ameaças brandindo uma pá ou um ancinho. “Ah, seus malandros!”
     Nós éramos pré-adolescentes correctos, aprendendo aos poucos a conjugar certos verbos socialmente incorrectos: desafiar, transgredir. Isso incluía: alguma poluição sonora; alguns resíduos escolares à deriva no lago; uma ou outra pegada não ecológica sobre a relva. Pouco mais. A tesoura de poda acirrando o nosso engenho e a nossa ousadia.
...afinal a que sabe um amor-perfeito?
     Eu especializei-me no roubo do amor-perfeito. Um membro da família das Violaceae sem qualquer sentido de humor. Pescocinho curto, semblante pensativo de filósofo de jardim. Talvez por isso mesmo. Ou por haver tantos cerrando fileiras em defesa dos canteiros. Eles à defesa, eu ao ataque. Os joelhos como molas, a mão certeira. Mas só dava mesmo gozo quando o jardineiro presenciava. “Corre, corre, ele vem atrás!” E se eu corria! Arfante, vitoriosa. O amor-perfeito acabava espremidinho entre as folhas de um compêndio, a ganhar pouco a pouco aquela tez desbotada, desidratada, de quem nunca tira o nariz dos livros.
     Há vários meses que o jardineiro me trazia debaixo de olho. “Ai se eu te apanho!” Um dia apanhou mesmo. Portou-se como um inquisidor, disparando ordens por baixo do bigodaço: “Abre as mãos!” “Vira os bolsos do avesso!” “Levanta os braços!” “Sacode a saia!” O amor-perfeito a mordiscar-me a língua, a fazer-me cócegas no céu da boca, mortinho por furar a barreira dos meus dentes. Eu a rir por dentro, a rir por fora, receando deitar tudo a perder. Mas lá me aguentei.
     “A que sabe um amor-perfeito?” Se bem me lembro, muitas vezes me fizeram esta pergunta. Ou variações brejeiras desta pergunta. Todas as minhas respostas se diluíram no tempo. O mistério continua: afinal a que sabe um amor-perfeito?

Helena Maltez ©2014,Aveiro,Portugal

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

LINHAS DISPERSAS

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação






Ah, velho pescador,
de barba sem cor
Se tu me pudesses dizer
O que a vida me reserva…
Águas mansas, onduladas
Sem fim
Estais tão longe
E tão perto de mim!
Estais próximas
Mas tão inacessíveis às minhas mãos…
Sois como a felicidade
Que, estando sempre à nossa volta
É tão difícil alcançá-la!
Que linda gaivota
Graciosa  e esguia
Está à minha frente!
Activo vem até mim
o odor fresco da maresia.
E os iates balouçando docemente
Dir-se-iam berços  que o mar dolente
Embala e afaga…
Ah, pescador,
Se tu pudesses adivinhar
O meu destino
E acabar com este desatino!

15-3-1967

Graciete Manangão ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

(Des)encontro de amigos

Já o sol raiava longe, bastante longe, naquele pontinho em que o céu se liga à linha do horizonte e os filhos da terra que ali teimam em vir passar uns dias se regalam, aproveitando esta e outras dádivas que a natureza lhes oferece. A calma do local ajuda a retemperar forças perdidas no meio do rebuliço das cidades, onde, porque a vida lhes impõe, são dominados pelo stresse diário em que a corrida se tornou um hábito. Nada melhor do que visitar as origens confraternizando com familiares, amigos, que doutras paragens vêm, e redescobrir sempre com um novo olhar toda aquela natureza que ali tem cheiros, cores e aromas bem diferentes. A serra sempre altiva e deslumbrante transmite pelo barulho dos seus silêncios um relaxe só perturbado pelos pássaros cantantes e pelas pequenas sinetas das ovelhas e cabras que se saciam no pastoreio. Ali, as palavras trocadas em cumprimentos rotineiros têm som, harmonia, fazem sentido, substituindo com enorme vantagem o ruído dos eléctricos, dos automóveis ou as sirenes de polícias, bombeiros, ambulâncias… As palavras, essas, já nem
As palavras, essas, já nem se ouvem.
se ouvem.
Neste contexto se encontram os amigos, que o foram em crianças, mas que eternizam essa ligação por uma vida só porque ali se reencontram um, dois, três dias, quando muito, uma semana, praticamente todos os anos. Deixaram de se conhecer, de partilhar a vida no seu dia a dia, mas a memória acorrentou-os a uma amizade que se alimenta de pequenos nadas vividos em poucos mas longos dias. No Café Popular todos procuram a bica que lhes recorda tempos passados e anseiam sempre por encontrar mais alguém — do seu tempo — que entretanto tivesse chegado.
— Ó, há quanto tempo… Trocam-se beijos, abraços com a alegria de quem há muito se não vê. Vítor e Sara chegavam à sua mesa mais uma cadeira para que o Gonçalo se juntasse ao matar das saudades.
— Então, Gonçalo, estás bem queimadinho… Vens da praia?
— Não, Sara, nem sequer ainda tive férias. Por isso mesmo aproveitei alguns fins de semana para, nos fins da tarde, me saciar de sol e mar chegando a apanhar o autocarro para casa já de noite.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Enfrentar as marés

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Viver ao sabor dos ventos, deixar-se levar pela maré, não ter os pés assentes na terra, pensar com a cabeça dos outros são atitudes que podem trazer algumas surpresas e desencantos ao longo da vida. A este respeito, variadíssimos autores têm feito correr muita tinta sobre a importância de se ter objectivos. A experiência de cada um tem-se encarregado de comprovar estas máximas. Recordo, a propósito, Orson Welles que afirmava ser a falta de objectivos mais importante do que a consumação deles. Possivelmente, já todos experimentaram como é efémero o prazer da realização pessoal, e, em contrapartida, como é desafiador o tempo em que nos entregamos à realização dos projectos. Conheci um homem, muito simples por sinal, que, até aos oitenta e cinco anos, fez da sua vida um campo de novidades. De tal forma que as últimas palavras que lhe votaram quando ele partiu se traduziram na expressão mais encantadora que ouvi a seu respeito: deixou-nos o homem dos projectos e que nos fique a vontade de o seguirmos.
...lutando com as armas de que se dispõe...
Vem isto a propósito do desespero, da insegurança, do desencanto, da inépcia e da desesperança que tantas vezes nos assolam. E, convenhamos, por mais fortes e resistentes que sejamos, há alturas em que o chão nos foge, como vulgarmente se diz. O momento actual favorece estes estados de alma, sabemos. Não nos faltam estudos que apontam soluções para a crise, as crises, pois de várias se trata – económica, social, cultural e, sobretudo, de valores. Os debates mostram-se na comunicação social, as reflexões deixam pistas e orientações, mas o certo é que, para muitos, as portas já estão fechadas. Para outros, há apenas espaço para a entrada de um pé que, sozinho, se deixa vencer pelo pontapé que assoma à soleira. Todavia, os salões continuam cheios: de oportunistas que impam de ignorância, de imberbes infantes que crescem à sombra de vaidades, de detentores de bolsas que, de tão cheias, rebentam pelo atilho. À porta, desamparados, estão os que esperam as migalhas que caem da mesa dos senhores!

Deambular sem tino em caminhos sem saída? Entregar-se, rendido, ou lutar afincadamente até que a justiça social faça jus do seu mister? Não se deixar levar pela maré, lutando com as armas de que se dispõe, parece-me ser um caminho possível. No meu caso, e neste meio, fazer com as palavras a ressonância do meu sentir. 

15/09/2013

MariaCacilda Marado ©2014,Aveiro,Portugal
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