segunda-feira, 30 de março de 2015

Vou ver o mar

Manuel Matias


Nesta fase mais avançada da vida, tenho oportunidade de viver momentos felizes, que não custam dinheiro e criam em mim um espírito sereno, de confiança e esperança no futuro. O benefício de tudo isto ajuda-me a melhor conviver com todos aqueles com quem me relaciono e sobretudo os que me estão mais próximo.
Quando chega a primavera, vou ver o mar.
Quando chega a primavera, vou ver o mar que, quando está calmo me enche de ânimo e transmite serenidade.
Esta viagem à praia é apaziguadora em momentos de algum stress. Neste período fico contente e gosto muito de passar pelos campos agrícolas e ver que os agricultores, sem cometerem qualquer transgressão, com os seus tractores revolvem a terra para as próximas culturas.

No inverno, aprecio o silêncio de minha casa e contemplo alguns recantos mais significativos que me transmitem boas e antigas recordações.

Manuel Matias ©2015,Aveiro,Portugal

sábado, 28 de março de 2015

Observo em Silêncio


Lourdes Lameiro


Sou muito admirada e contemplada, por vezes por longos minutos. Algumas pessoas não resistem e entram, mesmo que não comprem nada! Outros não desgrudam do vidro, fazem contas à vida.
Quando lhes encho as medidas, com a moda e os preços, divirto-me com os comentários. As vozes para mim são poesia.
Sou montra de loja, só me vestem do
que há de melhor na casa.
Uns comentam, está muito bonita, outros dizem é muito caro, volto quando chegar a época dos saldos. É uma animação.
Dou alegria e dinamismo às cidades, com as minhas luzes de várias cores. Pelo Natal sou a alegria dos miúdos e graúdos.
Quando colam no meu vidro papéis, a anunciar, por exemplo, formas de pagamento, eventos que se passam na cidade, as pessoas não resistem, mudam de passeio para ler e satisfazer a sua curiosidade. Ficam mais informadas, aproveitam para me ver melhor e eu fico feliz.
Todas as semanas me vestem com coisas novas, sempre diferentes!...Sou muito mimada, sempre muito limpa e brilhante.Sou montra de loja, só me vestem do que há de melhor na casa.


Lourdes Lameiro ©2015,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 26 de março de 2015

Transgredi

José Luís Vaz 

Num campo apaziguador transgredi e decidi construir uma casa. A ideia não surgiu ao deus-dará: dali era soberba a vista para o mar. Revolvi terra e mais terra empedernida com calhaus e, com calma, depois do campo limpo, iniciei a construção.
... implantei uma hortinha
Local muito silencioso fazia as delícias de quem ali relaxava, desfrutando aquela imensidão de mar. A contemplar em tal silêncio era vulgar o descambar para uma serena sesta, fazendo parecer a quem passava, tratar-se de um pelintra. Era de facto um local apaziguador parecendo ter fugido ao mundo real que cada vez mais insiste em transgredir a uma vida com qualidade.

Mas, não se pode ter tudo e, daí, era necessário ter proventos para subsidiar as mais valias consumidas com este novo prazer. Na parte de trás da casa, mais uma vez, transgredi, e no meu terreno e em mais dois metritos que subtraí, sem querer, é claro, ao vizinho, implantei uma hortinha.

José Luís Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 24 de março de 2015

Mulher serena e viva

Elsa Borges

Olhava, fascinada, o mar a revolver a areia que bordejava a costa.
O fragor das ondas contrastava com o calmo e silencioso lugar onde a sua casa, simples, muito branca e airosa, rodeada de cambiantes verdes, pontilhados por múltiplas cores, punha uma nota de frescura e vivacidade.
Mulher serena e viva
Contemplar as duas paisagens, que se abriam à frente dos seus olhos, exercia sobre ela um efeito apaziguador.
O campo, mais contido, dava-lhe uma serenidade, sempre renovada, pela sequência cromática e harmoniosa que as diferentes estações do ano imprimiam à natureza.
O mar, revolto, sempre a transgredir, desafiando constantemente o areal, ora ameaçando tantas vezes aqueles que no seu seio buscam o pão, ora oferecendo-se, manso e belo, na exuberância dos seus azuis, incutia-lhe energia e desafiava-a a ousadias e aventuras.
Os efeitos de ambos faziam de si o que era: serena e viva, interrogadora e contemplativa. Enfim, uma mulher rica de espírito e impregnada de uma beleza imortal, obra da natureza.   

Elsa Borges ©2015,Aveiro,Portugal

domingo, 22 de março de 2015

Utilizando palavras

Albertina Vaz


Era aquela a casa. Não havia dúvida nenhuma. Recortava-se, silenciosa, no horizonte.
...revolvendo páginas e acontecendo
contos 
Há anos que ali não vinha, mas ela lá continuava – mais degradada mas sempre apaziguadora.
Olhei em frente e vi o mar – em tons vermelho acinzentados, assemelhava-se a um vulcão em plena ebulição.
À minha memória regressaram vontades antigas de transgredir – virar as costas e embrenhar-me espuma adentro, sem rumo e sem horas. Do outro lado um campo imenso de papoilas gigantes emergia tingindo de vermelho as ondas salpicadas de sal.

Deixei-me teimosamente ficar ali, revolvendo páginas e acontecendo contos. Estava a escrever de novo e contemplava aquela folha em branco que se enchia de sons e símbolos. Na bruma da tarde a calma instalava-se serenamente.

Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 19 de março de 2015

MEU PAI

Maria Celeste Salgueiro





Levavas-me contigo a passear,
Em volta , a Primavera toda em flor;
Ensinavas-me a ver, a decifrar
A alma do jardim a arder em cor!

Descias ao meu nivel p´ra brincar
Como duas crianças sem temor;
Tinhas sempre uma história de encantar
Que eu gostava de ouvir em pormenor!

Partiste mas ainda estás presente;
Ensinaste-me o bem e a verdade,
A nunca desistir, ir sempre em frente

Teu exemplo de vida ecoa forte,
Teu amor está comigo na  Saudade,
Serás sempre o meu guia e o meu norte!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 13 de março de 2015

A MINHA MÁGOA

“Passamos a vida desperdiçando vidas” – Mia Couto


Maria Celeste Salgueiro


Sinto mágoa daquilo que não sei!
Mágoa de ter vivido sem viver,
De me lembrar de tudo o que olvidei,
De ter sofrido sem saber sofrer!

Mágoa das alegrias que gozei
E não soube gozar nem fiz render;
Mágoa de toda a luta que encontrei
E não tive coragem p´ra vencer!

Mágoa de ter mentido sem mentir,
E ter ditto a verdade sem saber
Que era verdade o que dizia a rir!

Mágoa de ter chorado sem chorar,
De acreditar e, afinal, não crer,
De ter amado sem saber amar!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 10 de março de 2015

PALAVRAS QUE EU GOSTO

Clavel


Gosto de palavras alegres, com raiz dirigida à seiva
que rejuvenesce o chão;
palavras de húmus e luz, que sejam na leiva
prova da sementeira e canção,
palavras que abram sorrisos e meiguice,
que drenem o sonho, a aventura
e, com fartura, imponderada dose de patetice.
Gosto dos verbos semear, nascer, crescer, florir, frutificar
que evocam o trilho da máquina a perfurar.
Gosto dos substantivos: libido, beijo, seio, mamilo, peito,
que dão conteúdo e saúde ao verbo namorar
por acaso ou com respeito, consoante a moda.
Gosto do engenho e do vocábulo moinho
em que pedra sobre pedra roda                            
Gosto de ter sede...
e mói e remói sem rodar contrafeito
sem perguntar ao grão se magoa muito
ou se goza poucochinho.
Gosto do perfume do rosmaninho
sem ofensa de outras flores e da rosa
ao sopro da brisa que ameniza o calor.
Gosto de ter sede e beber água e vinho
com euforia e a prosa
de um convincente sedutor.
Gosto de subir, subir bem alto, ao cume,
ficar na harmonia da liturgia da poesia
em sintonia com rimas de filosofia
viver o encantamento, a folia e a fúria do mar
e a mansidão da ria, alongada, a meditar.
Gosto de cumprir a promessa na romaria
com sumo de melancia e doce de aletria.
E, na vez de problemas de geometria,
que obrigam muito a matutar,
gosto do melro na folhagem do azevinho,
a refazer o ninho
com o jeito e o direito herdados da mãe.
Gosto das palavras alegres.
Porquê? Não aposto. Não sei de quem.
São palavras que eu gosto.




Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de março de 2015

“A obediência está escrita na curva das suas costas” – Mia Couto

Albertina Vaz

Passou a vida no corredor. À espera.
Menina de olhos tristes e ar sereno. Intranquila. Senhora da sua vontade e dona da sua
Menina de olhos tristes e
olhar sereno
vida. Ao lado dos outros meninos era pequenina e saltitante, como uma bola de sabão a deslisar ao sabor do vento. Teve, em tempos, um irmão que lhe pregava rasteiras e a fazia estatelar-se no chão. Um irmão mais velho, mais forte e homem.
Naturalmente tomava a dianteira, como todos os homens lá em casa. Quando saía ele acompanhava o pai, ela, obedientemente, caminhava atrás, com a mãe e as outras mulheres da casa. A obediência nunca fora a dominante da sua personalidade. Mas ia, ou tinha de ir. Aproveitava para pontapear uma pedra ou saltar um charco onde a luz se espalhava. E ouvia sempre alguém chamar-lhe rebelde. Por vezes excedia-se e sujava tudo à volta.
E, de castigo, ficava de pé, no corredor. Até que a ira lhe passasse, até pedir desculpas.
O pai preocupava-se - criança rebelde que não faz o que lhe mandam, tem de ser dobrada!
obedientemente, continuava à
espera, no corredor...
A vida ensinou-a a crescer e a rodopiar por entre as curvas do sol, enganando os pingos de chuva que se mesclavam com a vontade de ter vontade própria. A juventude abriu-lhe horizontes e mostrou-lhe caminhos diversos - aprendeu nos livros que havia gentes que pensavam e que sabiam o que queriam. Ela sabia o que queria também, mas, obedientemente, continuava à espera, no corredor, que a sua vez chegasse.
Um dia deixou de ser menina e achou-se mulher. Puseram-lhe um véu na cabeça, vestiram-na de branco e achou-se bonita. E veio um homem, um outro homem que lhe falou de sonhos e de desempacotar a vida. Pegou-lhe na mão. Fez-lhe promessas, criou-lhe desejos e jurou-lhe uma submissão diferente. Ainda tentou resistir mas voltou a deixar-se ir, a obedecer, a subir a escada depois do homem que lhe falava da cor e da esperança. Na sua cabeça martelava a voz do pai: a mulher tem se submeter à vontade do marido, aceitando e suportando tudo em nome da família.

terça-feira, 3 de março de 2015

Na amplidão do meu ser

Fernanda Reigota

Regresso ao mar: simplesmente o mar!
Na amplidão do meu ser,
ser eu por inteiro,
ver-me acontecer!
No mar e na sua vastidão
o meu reflexo
transgride-me
revolve-se
insurge-se
despedaça-se
não conhece submissão.
Já exausta
uma onda calma banha meus ímpetos:
e a maré cheia de silêncio apazígua-me.
Bendigo
cada partícula de ar que respiro,
cada sorriso que recebo,
cada abraço que desejo,
cada flor prometida,
cada canto de pássaro,
cada tom quente da alvorada,
cada salpico de sal que me atinge…

Olho para além do meu reflexo
e fixo a casa do meu ser no campo de mim:
vida com balizas, vida demarcada, vida com estações,
vida com opções, simplesmente a vida.
Regresso ao mar: simplesmente o mar!

Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

domingo, 1 de março de 2015

“Abre os armários, arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela.” - Mia Couto

Conceição Cação

A decisão estava tomada, nada nem ninguém poderia alterá-la. Acabava ali a luta sem tréguas travada anos a fio. Estava exausta, mas sentia-se finalmente apaziguada, liberta. Na mente iluminada por uma lucidez que há muito não experimentava o plano começou a desenhar-se.
Os caixotes guardados na arrecadação, após a mudança ainda tão recente para aquela casa, foram descendo para a sala e ali ficaram perfilados como servos fiéis, aguardando com expectativa o seu novo destino.
Lenta, mas regularmente, como um autómato, foi depositando neles as roupas elegantes, os livros, as louças, fotografias, recordações de viagens… Enfim, todos os objetos que a tinham rodeado, mas que já não sentia como seus. Foi sem emoção que
Foi sem emoção que reviu a coleira
colocou num cantinho uma coleira da Golden Retriever de pelo de seda e olhar doce, agora numa casa a que ainda não se habituara, recordando com saudade os passeios com a dona, o Espera um pouco que a mamã já vem quando tinha de esperar à entrada duma loja Foi com a mesma indiferença que  depositou num pequeno cofre os vários diplomas e com eles todo o sucesso académico e profissional, os documentos, as recordações mais íntimas, os laços de ternura sempre tão  fácil e bruscamente desatados…
          O dia acordou radioso, o sol da manhã inundou-lhe a casa. Que importava? – o coração carregava o outono mais sombrio, toda a melancolia daquele novembro que estava prestes a despedir-se …  Iria fazer o que tinha de ser feito. Mas não era ainda o momento: demasiada luz, muito bulício… O ritual requeria recolhimento, confiar-se-ia às sombras da noite.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...