Albertina Vaz
Encontrei-o há dias,
escondido. Por detrás de outros bem mais corpulentos. Cheguei a pensar que o
tinha perdido. Quem sabe se não o teria emprestado a alguém que por ele se
apaixonara, como acontecera comigo. Quem sabe se não estaria misturado com os
das crianças que tanto gostam dele. Dei por mim a afagá-lo muito de mansinho. E,
sem quase querer, recordei a primeira vez que o vi: tinha mais ou menos cinco
anos e fascinaram-me as cores, as formas. Não sabia muito bem o que lá estava
dentro mas gostava que me falassem dele. Todas as noites adormecia a pensar por
onde andaria ele e se já teria encontrado algum amigo. Invariavelmente,
apanhava uma ou outra flor que guardava para, um dia, lhe dar. E, quando podia,
fazia desenhos para, quando o encontrasse, alegrar o seu sorriso triste.
Procurei-o por toda a parte mas não queria encontrá-lo. |
Acho que me acompanhou por
muito tempo. Até que um dia alguém me disse que aquilo era só para crianças,
miúdos pequenos, que descobrem o fantástico numa esquina ou tropeçam num
imaginário de fadas e duendes. Nessa época eu já não queria ser criança e
guardei-o no fundo duma gaveta.
Às vezes encontrava-o nas
mãos de outras pessoas e escapava-me um sorriso – eu bem queria retomar aquela
amizade mas os meus sonhos de adolescente queimavam-me os dedos e arriscavam-me
a um corte definitivo naquela relação.
Algum tempo depois, voltei a
ter necessidade dele. Lembrei-me, vagamente, de que o ouvira falar de
felicidade e de “preparar o coração” numa espera sem hora marcada, saboreando o
momento antes, o durante e o depois. E pensei que, se calhar, aquilo não seria
só de criança, se calhar havia ali uma sabedoria de gente grande num corpo
franzino. E de repente deu-me uma vontade louca de voltar a vê-lo, e abraçá-lo,
e devorá-lo com raivas e sonhos que via desfeitos e voltava a reconstruir.
Procurei-o por toda a parte
mas não queria encontrá-lo. Lembrava-me vagamente de o ter escondido bem no
fundo de qualquer coisa mas não desejava recordar-me onde. E, sem desistir,
desisti.
Só que ele não parava de me
perseguir: ouvia as palavras que me queria dizer e as outras que eu não queria
escutar, sabia que se estava a tornar mais difícil fazer-lhe frente e recusava
aproximar-me.
Um dia quis ter um amigo e
voltei a lembrar-me dele: de como procurava ser importante para alguém ou
alguma coisa, de como sabia dedicar-se. E recordei-me de que me dizia que
ninguém é nada para alguém se não for “cativado” e se tornar indispensável.
Então o tempo adquire outro sentido: pensamos no outro antes de ele chegar e
passamos a ter necessidade de estar com ele até acharmos que não podemos mais
viver sem ele: aí encontrámos o nosso amigo.
E de repente, dei com caras
com ele, nas mãos de uma menina. Não me atrevi a fugir-lhe de novo. Estava
cheia de saudades e não queria resistir-lhe mais. Estava mais velho, mais amarelecido,
mais rugoso. Só não tinha perdido aquela magia dos dias de sol e da chuva miudinha
que sabe bem sentir. Apanhei com ele o chapéu, que afinal não era um chapéu mas
uma jibóia a digerir um elefante, e fomos os dois, de mão dada, a um tempo e um lugar secreto onde os sonhos se apoderam da realidade e a transformam em beleza
– tinha voltado a encontrar o meu “Pequeno Príncipe” e nunca mais o deixei fugir
da minha mesa de cabeceira.
Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal
O Principezinho "cativa" a infância, sofre a rejeição (pouco convicta) do preconceito e indefinição da adolescência e emerge ainda mais "cativante" na idade adulta. Uma narrativa poética a que não falta o mistério subtil que só se desvenda completamente no final. Se gostei? Claro que sim, Albertina!
ResponderEliminarObrigada São pelas suas palavras sempre encorajadoras. Fico muito contente por tê-la de volta por estas paragens.
EliminarSoube logo que era um desses amigos. Só não sabia qual. Temos tantos! Gostei muito do modo como o apresentou. Felicito-a. Bjs.
EliminarAida
Recebemos por email um comentário de Carlos Reis que queremos partilhar no blogue.
ResponderEliminarLá fora o tempo é gélido sedento de encontrar mãos vazias, mãos de alguém que lhe dê guarida. Os sem-abrigo choram clamando o cobertor que o aqueça. Indiferente a tudo e a todos os passos correm para os espaços vazios, quem sabe à procura desse esquecimento que a vida madrasta, ávida roubou. Há na madrugada o encontro, e nesse reencontro surge a luz que tudo ilumina. É tempo de usar a paz, tempo para sermos nós, tempo para rever os esquecimentos que estão vivos dentro de nós. Foi seu excelente texto que me fez recordar que ainda há quem olhe com carinho para os amigos esquecidos que se foram varrendo da nossa vida, que não da nossa memória, um simples e bonito escrito que me deixou
pensativo mas sedento de ir ao baú do tempo rever o esquecimento . Obrigado e continue a dar-nos o que de bom há em si. Parabéns
Carlos Reis
Já nos habituaste a excelentes textos e ser-me-ia muito difícil destacar um. E claro, uma vez mais, este é uma maravilha.
ResponderEliminarAdorei o que acabei de ler. Obrigada.
A Idalinda Pereira enviou-nos pelo facebook este comentário que agradecemos e queremos publicar aqui.
ResponderEliminar"O coração não é apenas um músculo. Mas sim um orgão onde se entranham todas as emoções. Muito lindo!.. Continua a escrever."
Camada a camada, vamo-nos revestindo com tudo o que nos vai cativando...
ResponderEliminarAssim, vai acontecendo a vida, a nossa vida!
"onde os sonhos se apoderam da realidade e a transformam em beleza"
ResponderEliminarÉ este o alimento da persistência que imprimes em tudo em que te empenhas. A utopia é bela, sobretudo quando lutamos por ela!
Da Fátima Nunes recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Não gostei...adorei !desde o início sentia que era de um livro que se falava,no fim...fui procurá-lo para o reler e o repensar!"