quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ONDE É QUE ESTAVA A POESIA

Maria Celeste Salgueiro

Era o dia nacional da POESIA. Acordei feliz, disposta a tirar o melhor partido da data e tentar encontrar a POESIA nas mais pequenas coisas.
O dia estava lindo, o sol brilhava radioso num céu sem nuvens e tudo parecia perfeito. Deixei os meus problemas fechados numa gaveta, e, de cabeça liberta, lancei-me para a rua, caneta e lápis na mão para poder anotar tudo o que me chamasse a atenção.
Comecei a procurar. A cidade estava um caos, as ruas em confusão, só buracos, pedras soltas, só poeira à minha frente. Onde é que estava a POESIA? Devia estar escondida ou mesmo até soterrada com tanta obra pendente. Fui ao jardim onde o verde transbordava em profusão. Porém só desolação havia naquele espaço com as flores a definhar e o lago escuro e baço. Onde é que estava a POESIA que não a podia achar?
Meti-me no turbilhão de ruas a abarrotar de gente muito apressada e carros sempre a
...nos olhos de uma criança
encontrei-a nesse dia!
apitar. Então vi uma criança de boné e de sacola que regressava da escola muito contente a cantar. Pegou-me logo na mão e seguimos devagar, lado a lado a conversar.
Vês estas folhas no chão? Fazem música ao calcar. Olha o sol a rebrilhar no lago do meu castelo e os cavaleiros em volta. Já viste um quadro mais belo? Olhei para o chão pasmada. O lago era água parada, baça, escura, sem ter nada. O castelo era uma pedra e os cavaleiros formigas! Reparei no seu olhar: era azul , todo candura. Vi dentro o céu e o mar e o sol nele a sorrir.

E eu que perdera a esperança de descobrir a POESIA, nos olhos duma criança encontrei-a nesse dia!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Atravessando os séculos!

José Luís Vaz


Sempre elegantes, desde as altas às mais baixotas, coabitam com facilidade em espaços variados. Quando sós, deslumbram os seus admiradores pela conformação sui generis que proporciona a cada um especular sobre as suas formas.

Já lá vai o tempo em que a natureza determinava o seu livre desenvolvimento proporcionando, quantas vezes, uma arquitectura exótica e diferenciada. Hoje, é abruptamente “fabricada”, de acordo, única e simplesmente, com critérios economicistas que tudo determinam violentando as formas livres da mãe natureza.

Existe uma grande variedade distinguindo-se, entre si, pelo desenho, pela idade, pelo
Fonte inesgotável de vida
porte, pela raridade ou mesmo pelo seu interesse histórico. Podem atingir cerca de vinte metros de altura, o que justifica forte capacidade na procura dos nutrientes necessários. Neste ciclo de luta pela subsistência e desenvolvimento acaba por, com a sua acção, tantas vezes, evitar que fortes enxurradas arrastem catastroficamente os solos, destruindo uma estrutura em que existem os elementos necessários à vida.

Necessitando muito tempo para crescer, pode viver centenas de anos. Há mesmo exemplares referenciados com cerca de dois mil anos, sendo considerada a mais antiga do mundo, uma que existe perto de Tavira.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Manuel Sortudo - uma história quase verídica...

Graciete Manangão


O Manel era um jovem e dinâmico agricultor. Lavrava e cultivava quase todas as terras disponíveis, na sua aldeia, quer fossem suas ou não. Tinha investido em modernas máquinas agrícolas. Era muito requisitado para fazer todo o tipo de trabalhos de lavoura por quem o não podia fazer. Além disso, tinha uma ordenha mecânica que lhe dava um
um "empresário agrícola"
rendimento mensal razoável. Constava-se até que recebia subsídios do Estado para manter toda a sua actividade agrícola. Era o que se poderia dizer um “empresário agrícola”.
Estava casado, desde os 22 anos, com Bina, uma bonita e vivaça feirante. Sempre bem disposta e incansável, “fazia” mensalmente, durante todo o ano, fizesse chuva, sol ou vento, as feiras dos 7, dos 10, dos 12, dos 13, dos 21, dos 28, dos 29 e dos 30. Levantava-se de madrugada, em dias de feira, para preparar a carrinha fechada com todo o arsenal da tenda, incluindo os sacos de plástico enormes, carregados de mercadorias diversas.
Com toda esta azáfama diária, e porque ainda estavam no princípio da luta pela vida, Bina e o Manel resolveram adiar a chegada de um filho.
Sobrava muito pouco tempo para distrações ou passeios. Bina, aos domingos à tarde, desde que não fosse dia de feira, gostava de ir ver o mar, fazer algumas compras para casa e lanchar na pastelaria da dona Mariazinha.
O Manel, sempre que podia, ia ao “Café do Zé” beber uma cerveja ou um café e bagaço, com os seus amigos ou vizinhos. Às vezes, também jogava às cartas.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

IN MEMORIAM

José Carreto Lages


E se queres saber se doeu
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.
Não te deram  tempo nem ocasião
para a despedida que tu merecias.
A eternidade, talvez, para cumprir profecias
te levou. Mas tão formal, sem uma razão?                     
Sem  dos teus amigos um adeus
que os conformasse de arrelias
e evitasse fazer aos céus
justificada reclamação?
Se me perguntarem se a eternidade
foi justa contigo. Eu direi que não.
Que é da liberdade
de cada um viver e ter o que é seu?
Se partiste por tua vontade
E se queres saber se doeu,
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.


José Carreto Lages ©2015,Aveiro,Portugal

O Moinho

Esmeralda Dinis Assunção 


Fim de tarde. Uma pausa para uns minutos de leitura. Na capa da revista que tenho nas mãos há um moinho, em primeiro plano. Logo me veio à memória um outro moinho que conheci na infância, beirão de gema, bem perto da casa da avó Rita.
No alto do pequeno monte, sozinho, o moinho era um rei. À sua volta havia verde até perder de vista. De braços sempre abertos ao vento, corpo robusto, dominava todo o espaço que o cercava e, como um verdadeiro senhor, parecia ser ao mesmo tempo o protector daquelas terras. O caminho para chegar até ele não era fácil porque era íngreme e tinha muitas pedras.
O moinho ainda lá está no cimo do morro
O moleiro montado no seu burrico, o Moisés, lá ia sempre morro acima, levar-lhe o grão, em jeito de homenagem. Quando descia, já com os sacos cheios de farinha, vinha a assobiar de contente. É que aquele rei não tinha coroa mas tinha dentro de si o poder enorme de lhe dar o sustento, o ganha-pão. Aquele moinho representava para o moleiro a própria sobrevivência.
O moinho ainda lá está no cimo do morro. Dos braços abertos restam os paus que seguravam as velas. A porta e a janela são apenas uns buracos. Do corpo robusto do rei antigo restam as pedras resistentes. Agora já não tem poder, nem sequer é o sustento de alguém mas ele lá está como símbolo duma tradição perdida.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Por cá e por além-mar em Africa

                                                                                                             Maria Cacilda Marado

Já não é muito nova, quarenta e um anos ninguém lhos tira, mas mantém-se de pé e com firmeza sempre que a requisitam para cumprir a sua missão. Tenho visto companheiras suas mais jovens desengonçarem-se todas ao mais pequeno desajeitar das mãos de quem as usa. Realmente, o utensílio de que vos estou a falar tem uma história notável. Com apenas seis anos de idade, transpôs o oceano Atlântico com garbo e valentia.
Uma vez deu-me cabo de um pé...
Arrumadinha num contentor, nunca deu sinal de si até que, quase um mês depois, a pus novamente ao serviço da família. Sim, ela esteve em terras de África, onde, durante dois anos e meio, desempenhou bem a missão para que foi criada. E permitiu muitas descargas de adrenalina enquanto se deixava usar para o fim a que se destina. Foi utilizada por mim e por outros sempre que era necessário mimar quem se queria alindar. Uma vez, deu-me cabo de um pé quando fui desajeitada ao pô-la sobre as suas duas firmes sustentações. No entanto, eu tenho por ela uma estima tão grande que, dois anos e meio depois de ela ter ido para Angola comigo, quando regressei, não quis deixá-la numa terra de desassossego, no pós-25 de Abril, época bem conturbada pelos movimentos de independência.

E lá a trouxe de novo, no fundo de um outro contentor que mais tarde se transformou numa bela estante. Mas, voltando ao meu utensílio de estimação, hoje, tanto tempo já passado, ainda me alivia as tensões quando corro em cima dela com o meu bólide de corridas, quando aprimoro os tecidos, quando liberto as tensões, quando faço conjecturas e elaboro projectos. Para a guardar, escolho sempre um cantinho para não me perturbar as correrias de última hora. Mas não sou só eu que lhe quero bem; a minha filha tem por ela uma estima especial, pois liberta-a de algumas tarefas que teria de fazer na casa dela.

Maria Cacilda Marado ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O sótão da avó

Lindonor Silveirinha

Todos os anos faço uma arrumação a este sótão, mas está sempre cheio de tudo e mais alguma coisa. É como a minha cabeça e as lembranças do passado. Algumas procuro deitar fora, porque me incomodam, mas também há outras que gosto de recordar.
"Espelho meu, espelho meu, que é feito da outra
que você já conheceu?"
Quando viemos para esta casa achei fantástico ter um espaço amplo para guardar o que não estava a uso, mas agora estou cansada e não me apetece remexer no passado. Contudo, neste preciso momento, tenho que ir ver se encontro alguns brinquedos para dar a uma obra que ajuda crianças. Tenho alguns carrinhos do meu filho e bonecas e mobílias das minhas filhas. Talvez alguma coisa ainda esteja boa para dar.
Vamos lá! Coragem!
Olha, aqui está uma mobília de quarto das bonecas: a cama, o toilette e uma cadeira. Ainda estão em bom estado. Como me lembro bem das brincadeiras das minhas filhas! A P. gostava de olhar para o espelho e perguntar: “ Espelho meu, espelho meu, achas que há alguém mais bonita do que eu?”
Mas que horror! O que eu vejo agora neste espelhinho é uma velha, enrugada e triste e apetece-me perguntar: “ Espelho meu, espelho meu, que é feito da outra que você já conheceu?
Então ouço atrás de mim a voz da minha neta: “Avó! Que engraçado rever tudo isto! A avó podia escrever uma história chamada: O meu sótão…”

Lindonor Silveirinha ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Sentia-se ferida de luz por dentro.

Fernanda Reigota


A hora de abandonar o local de trabalho provocava sempre em Alexandra um estado de lassidão. A sua mente aproveitava-o para processar e armazenar tudo o que era importante. Sabia que rapidamente mergulharia noutro estado de vigília em que era necessário coordenar os horários e os apoios logísticos que as atividades pessoais dos filhos exigiam.
...um precioso minuto de encontro
consigo própria
Na alternância do estado de tensão e atenção ao trabalho para o estado de vigília que as atividades dos filhos requeriam ao de fim do dia, Alexandra guardava para si um precioso minuto de encontro consigo própria. Conseguiria uns minutos para prosseguir a leitura que a estava a entusiasmar? Precisava de falar com o filho mais velho para compreender a súbita mudança de atitude em relação aos estudos. Há muitos dias que não tinham uns momentos em que o único objetivo fosse estar em família e viver. Viver como quem se deixa aquecer por um raio de sol de outono. Viver como quem se extasia com o abraço que o Céu e a Terra dão no início da primavera e depois se encanta com a pujante criação que vai surgindo cheia de cores e de cheiros. Viver como quem se deixa refrescar por uma chuva miudinha de verão. Viver como quem saboreia o som do crepitar do lume no inverno.
Neste minuto de encontro consigo própria, e enquanto os filhos encestavam umas bolas antes de abalarem todos, Alexandra ia adiantando pequenas tarefas rotineiras. Quando chegasse definitivamente a casa outras tarefas ocupariam a família.
Sem explicação explícita, Alexandra  entalou um dedo. Os gritos  espontâneos  que deu 
Não sei para que aprendemos
estas coisas na escola.
atraíram os filhos. Apesar das dores intensas, conseguiu fixar a perplexidade, a ansiedade e a surpresa com que os filhos a fixavam. O mais novo, o João, tomou o comando das operações e mandou o irmão, o Pedro, ligar para o 112. Mãe, ligo? Não é preciso, meus queridos. Liga! Não, não é preciso! Não sei para que aprendemos estas coisas na escola.
Passados os grandes minutos de dores mais intensas, Alexandra falou com os filhos. Era natural que o João quisesse aplicar o que tinha aprendido há tão poucos dias, mas precisava de saber avaliar as situações e ele ainda era muito novo. O Pedro intuiu que a mãe estava plenamente capaz de decidir. Explicou aos dois, mas principalmente ao João, que a dor tinha sido muito forte, mas tinha estado sempre consciente, não tinha sangrado, respirava bem… Assim, não era necessário chamar o 112.
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