terça-feira, 30 de abril de 2013

Já não há cravos vermelhos

Albertina Vaz

Será que não estou enganada?
Estamos no dia 30 de Abril de 2013! Será que não estou enganada? Será que a minha memória me não está a atraiçoar? Não sei. Não consigo perceber muito bem o que se está a passar.
Naqueles tempos falávamos de liberdade de expressão, de capacidade de escolha, de livre arbítrio, de liberdade… E hoje já não falamos? Já nem sequer falamos? Já nem sequer podemos falar? Já nem sequer podemos pensar?
E oiço lá ao longe uma canção que dizia: “Não há machado que corte…” O quê? Não haverá mesmo? Será que nenhum de nós ainda sentiu o fiozinho cortante daquela lâmina que tenta escalpelizar aquilo que sinto, que vejo, que canto, que faço, que digo?
Estranho país este em que voltar atrás é sempre calar a voz de quem, se calhar, já nem sequer sabe o que quer. Estranho pedacinho de terra em que voltejamos em círculos fechados, em que o ser deu lugar ao parecer ser e em que o parecer é o mais importante da vida de cada um de nós!
Onde estão os sonhos?
Olho em redor e fico parada no tempo! Não é verdade. Eu não passei uma vida inteira à procura de um país novo em que o diferente não é mesmo o igual e em que o ontem não será sempre o amanhã. Não, eu lutei por qualquer coisa de diferente, mas a verdade é que não consegui encontrar nada em meu redor. A verdade é que continuo a precisar daquele abraço que dei aos desconhecidos que encontrei na manhã do dia 25 de Abril de 1974. Onde estão esses abraços? Onde estão os risos que gritámos, as lágrimas duma alegria incontida, os sonhos?
Somos uma geração que passou a vida a sonhar… Só sonhámos porque nunca conseguimos realizar nenhum sonho. Só sonhámos porque vivemos em tempos de cólera, de guerra, de fome, de ignorância. E sabíamos o que tudo isso significava.
Queríamos melhor para os nossos filhos e para as gerações futuras. E andámos todo este tempo embalados por um desejo de futuro que julgámos ter conquistado.
Afinal apenas virámos uma folha do calendário!
Afinal o que foi o dia a seguir? O que veio depois?
É verdade que corremos à procura de mais e melhores escolas para os filhos de todos. Não, não era só para os nossos. Era para todos. Era uma educação acessível a todos como a nossa geração não teve.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

A PETA DO COMANDANTE

José Luís Vaz

Uma família normal
Cidadão português, vinte e três anos, casado, pai de uma pequenina de quase nove mesitos, dava o seu contributo patriótico ao serviço das forças armadas, no Regimento de cavalaria 7, separado por uma ténue parede do Palácio de Belém, residência do presidente da república. Estávamos a 25 de abril de 1974. De acordo, com os regulamentos, só tinha que dormir no quartel, quando a escala o obrigava a permanecer 24 horas de serviço. Dava-se ao luxo de poder fazer uma vida, dita normal, entrando às oito ou nove da manhã e quando eram 17, 17.30, lá ia ele para casa dos sogros, uma verdadeira pousada, e aí, tinha o privilégio de desfrutar da vivência com a sua mulher e filha. Eram 4 da manhã e o telefone não parava de tocar. Acordado pela mulher, levantou-se, a cambalear de sono, desceu a escada e lá foi atender.
— Estou?
— É da casa do furriel miliciano Vaz?
— Sim, ó pá, o que é que aconteceu, para me estarem a telefonar a uma hora destas?
Quase a gaguejar, o soldado, que estava incumbido de avisar todos, e eram muitos, os que dormiam fora da unidade, dizia que, urgentemente, se tinha de apresentar no quartel. Em simultâneo era a campainha da porta de casa que não parava. Agora, já bem acordado, foi direito à janela, que de imediato abriu, olhou para o passeio rente à porta de entrada do prédio e vê um furriel miliciano, companheiro das lides militares, a quem perguntou:
— Mas o que é isto, Nunes, está tudo maluco, então não percebes que com esta barulheira toda, me acordas as pessoas?
— Ó pá é urgente, vem depressa, estamos à tua espera.
Nesta altura, começa a achar tudo muito estranho, porque, um pouco mais à frente do furriel estava estacionado um jipe militar com dois soldados de espingarda metralhadora, com um ar de poucos amigos e o dito Nunes, igualmente armado com uma pistola – metralhadora, não parava de insistir que era urgente, que era urgente e ia olhando para a um e outro lado da rua.
— Ouve lá Nunes, mas afinal, o que é que se passa, tu não sabes que eu me desloco no meu carro? Está tudo maluco, então alguma vez me vieram buscar de jipe?
O 1º de maio começava mais cedo
— Ó pá, mas vais no teu carro? Se vais, pronto, vai depressa, que nós vamos buscar outros. Em datas consideradas pelo regime como perigosas, era certo e sabido que o Regimento de Cavalaria 7 entrava de prevenção, querendo isto dizer que ninguém se podia ausentar da unidade e, por conseguinte, era isso que se passava, aproximava-se o primeiro de maio e pronto, desta vez, era com a antecedência de uma semana, o que, de facto, nunca tinha acontecido. Não havia nada a fazer, o Zé Luís subiu a escada, já a bufar, e disse à mulher que, para aquela cambada, este ano o primeiro de maio, começava cedo e, rapidamente, meteu num saco de viagem, que utilizava nestas ocasiões, a roupa que iria necessitar porque ia entrar em clausura. Entretanto, ficou a pairar no ar daquele quarto algo, que a dois era notado, de que qualquer coisa não estaria bem. Nunca ninguém lá tinha vindo a casa aquando das outras prevenções, telefonavam, normalmente a horas, bem diferentes, e desta vez vinham de jipe, com todo o pessoal armado até aos dentes?

domingo, 28 de abril de 2013

Incoerências

A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! 
Obrigada. O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

Texto IV

Conceição Cação

Cancro era uma palavra medonha
Às duas meninas, as mais ligadas ao avô Albano, ambas no estrangeiro, chegou-lhes, em roupagens eufemísticas, o nome da doença: diabetes. Cancro era uma palavra medonha, um tabu. Dizer-lhes que o avô estava nos cuidados paliativos iria preocupá-las muito. E para que serviria? Uma tia, a quem telefonaram, considerou mais justo revelar-lhes a verdade; ofereceu-se até para as ajudar, caso pretendessem fazer-lhe a última visita. Demasiado tarde! A decisão teria de ser muito rápida. Os filhos, emigrantes, estiveram com ele no início do internamento no hospital, mas depois regressaram aos seus trabalhos. O filho, o Vítor, ainda quis voltar novamente. Que podia vir – opinou alguém  – mas não vinha cá fazer nada.
Íamos visitar o senhor Albano
Naquela tarde, a caminho da aldeia, fizemos um pequeno desvio: íamos visitar o senhor Albano. Um painel colocado na fachada facilitou-nos a identificação – Barco Azul. O edifício, térreo, semelhante às restantes casas da aldeia, levou-me a imaginar um ambiente familiar, acolhedor. Por cima do muro, baixo, lancei um olhar avaliador: interrompendo, de onde em onde, a monotonia cinzenta do betão, pequenos canteiros, onde as sardinheiras salpicavam de vermelho o verde, pouco convicto, da relva a suplicar mais assistência. Paredes-meias com o lar de idosos, um infantário. Menos mal! Talvez as brincadeiras dos pequenos, os seus risos, o alarido da brincadeira pudessem atenuar a melancolia dos idosos.  
Tanto ruído e silêncio
Pura ilusão! Entrámos. Do hall, em semiobscuridade, passámos a um corredor e depois a outro – paredes nuas, sem cor. Cruzámo-nos com alguns idosos, que, ignorando a nossa saudação, se arrastavam, de cabeça baixa, capitulando ao peso da degradação, do abandono, da solidão. Arrancados ao seu cantinho, despojados de família, amigos, ambientes, sentiam que tinham deixado para trás a sua dignidade, a sua própria identidade. O acaso ou qualquer poder acima da sua compreensão tinha-os juntado, na última etapa da jornada, todos no mesmo barco. Tudo ali lhes era estranho: o barco, a tripulação, os companheiros… Neste barco, sempre de velas enfunadas, lá iam fazendo a travessia. Uma viagem sem regresso. Já se tinham despedido do mundo, do seu mundo; faltava apenas o último adeus. Tudo o que desejavam era alcançar a outra margem, envolta em densa neblina, mas o desconhecido já não os perturbava, parecia até atraí-los. Iriam, assim esperavam, deixar para trás o sofrimento.    

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A Revolução de Abril


Conceição Cação

A agitação era crescente
A agitação era crescente. Em frente à Faculdade de Letras, juntavam-se grupos de estudantes. Reunião ou, simplesmente, provocação? Solidarizando-nos com eles, sentávamo-nos na escadaria. Por pouco tempo! Vinda do nada, a polícia perseguia os manifestantes pelas escadas Monumentais e pelo Quebra-Costas. A nós, que fingíamos pacatamente apanhar sol,  ordenavam-nos que entrássemos para a faculdade. Na cantina da Associação Académica, passou a estar sempre a polícia: primeiro só um agente e depois uns cinco ou seis. As vozes que ousavam levantar-se no meio do refeitório eram rapidamente neutralizadas. Quando o número era mais elevado ou os estudantes mais rebeldes vinha a polícia de intervenção. Ai de quem tentasse insistir na provocação!
Era abril. Pairava no ar um cheiro a mistério; dizia-se, à boca pequena, que alguma coisa estava para acontecer. E chegou o dia 25. Enquanto me preparava para sair, apercebi-me de que a rádio só transmitia música clássica. Que estranho! Saí. Ao passar junto da redação do Diário de Coimbra, vi um comunicado: “Uma junta militar…” Bem, era ainda pouca informação, mas dava para perceber que a mudança estava em marcha. Nos espaços adjacentes às faculdades, iam-se concentrando centenas de estudantes, com indisfarçável expectativa e ansiedade.
Começava-se a festejar
Aos poucos, foram chegando notícias do êxito da revolução. Começava-se a festejar. Como se previa não haver aulas no dia seguinte, fui para casa. A minha mãe, a cuidar da minha avó, doente em fase terminal, precisava de todo o apoio que lhe pudesse dispensar. À noite, o comunicado do MFA:  Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas… numa voz teatral, de comando, punha toda a gente em sentido e a mim a tremer de emoção.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

25 de Abril


Maria Jorge


Acordei, como habitualmente, às sete da manhã. Podia ficar mais um pouco na cama, mas a minha perna e os meus pés inchados não me deixavam ter a agilidade de há uns meses atrás. A minha barriga crescia a olhos vistos e tudo tinha de ser feito com calma, nada de stresse, tinha-me recomendado o médico. Tudo era programado e pensado: sentar-me um pouco na cama, como que a mentalizar-me das tarefas seguintes. Abrir as persianas e a janela do meu quarto para respirar um pouco, ir à casa de banho, ligar a telefonia e preparar o meu pequeno-almoço. A última tarefa matinal seria tomar banho, vestir-me e ir apanhar os transportes para ir trabalhar. Hoje a refeição seria só para mim, o meu marido tinha ficado de prevenção no quartel. Pelo sol a querer espreitar pelas janelas adivinhava-se uma manhã primaveril.
Entretida a fazer a minha torrada, ouvi um pedido à população. Que seria aquilo? Pus o som mais alto. Para não sairmos de casa? Porquê? Que se estava a passar? Estaria a ouvir bem? E como ia trabalhar? Os apelos eram incessantes para não sairmos de casa… Apesar de morar pertíssimo dos meus sogros não os queria acordar com o que estava ouvindo… E a minha vizinha do esquerdo? Mas ainda era tão cedo… Oh meus Deus o que ia fazer? Não podia entrar em contacto com o meu marido…
As horas iam passando...
As horas foram passando e eu com um dilema para decifrar. Por um lado, devia ir trabalhar, por outro avisavam-nos para não sairmos de casa, para estarmos calmos. Absorta nestes pensamentos, batem-me à porta. Era a minha vizinha do esquerdo que, tal como eu, também estava a ouvir as mesmas notícias, aconselhando-me a não sair de casa “naquele estado”.
Decidi ficar em casa. Liguei a televisão. Programas de entretenimento não havia, filmes também não, notícias tão pouco, apenas com intervalos curtos, o mesmo comunicado à população.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Memória de Zeca Afonso – do mito à liberdade

Albertina Vaz


Revitalizar a memória dos que não viveram a repressão

Grândola Vila Morena



Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade                                       
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade


terça-feira, 23 de abril de 2013

Alcança quem não cansa


 Revisitar os Provérbios e, com eles, desnudar o Presente

Fernanda Reigota

Voluntário!
Pedro trabalhava como voluntário numa instituição de solidariedade social. Após trinta e oito anos de serviço como enfermeiro no hospital da sua cidade, deitou contas à vida e percebeu que a reforma com que ia ficar era suficiente para si e para a neta acabar o curso de medicina. Ela frequentava, então, o primeiro ano. A remodelação de que a sua casa precisava ficaria para depois de a neta acabar o curso e ganhar a sua autonomia financeira. Era toda a família que lhe restava.
Apesar de todos os desgostos que a vida lhe trouxera, apesar de muitos sonhos se terem desmoronado, como o algodão doce que uma criança deixa cair numa poça que reflete o arco-íris, não perdera o ânimo, nem ficara apático. Doía-lhe o desalento com que via os novos enfermeiros, acabado o estágio, partirem para a parede negra do desemprego, sem perspetivas de trabalho. Apesar de ainda sentir uma profunda realização profissional, quando pensou que a sua reforma poderia dar trabalho a um jovem, não hesitou em se retirar. Pedro poderia continuar a ser útil, como enfermeiro voluntário.
O sol quando nasce é para todos!
 Em conversa com a neta, concluiu que queria fazer voluntariado, integrado numa instituição que lhe sinalizasse crianças e jovens com doenças impeditivas de saírem de casa por períodos longos ou definitivamente. A sua ideia era ser solidário com os pais e cuidadores, quase sempre anulados como indivíduos, e dar oportunidade às crianças e jovens de conviverem com outras pessoas. O sol quando nasce é para todos!
Foi um longo percurso. Visitou amigos, demorou-se em conversas para ter a certeza de que compreendiam o que queria implementar, foi ouvindo muitos problemas que justificavam, para os amigos, a quase não saída de casa… Eram reformados como ele, ativos e válidos, mas iam entregar-se àquilo que pensavam merecer depois de uma vida de trabalho: a solidão ou a atividade ociosa do café como fonte e espelho de ecos e de vaidades do passado. A vaidade é o espelho dos ociosos.

Obrigado


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Filipe Tavares

Obrigado!

Fantástico maravilhoso e....
Fantástico - Inextinguível - Louvável - Inteligente 
- Ponderante - Estimulante
ficou muito giro...
tenho um texto para ti
mas só entrego depois de o rever...
é original
mesmo que todas as letras sejam usadas e escritas com o meu teclado
reflexivo
mesmo que tenha sido feito num instante de dedos saltitantes...
é meu... mesmo que não o seja verdadeiramente
pois de facto, ele é...  teu, nosso...
coisa pequena...
coisa que quase que nem se dá pelo nome de texto...
é coisa que cabe num abraço
ou até mesmo simples beijo
sim tem sempre que ser revisto porque...
tu, isto é,
o tu é sempre o sujeito dele
e como vai variando
...conforme o tu que está a meu lado
tenho que o rever, aconchegar, oferecer
e para que tudo fique belo mas singelo
cheio de esperança e garra
o texto que tenho para ti é
somente este...
 "Obrigado"

domingo, 21 de abril de 2013

UTOPIA, POR QUE NÃO?


A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! Obrigada.
O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

                                                                                                          José Luís Vaz
Texto III

O vento assobiava
O vento assobiava e, desvairado, projectava com uma violência indescritível a água que caía, como se nunca mais acabasse. Pelo ar, papéis, cartões, pedaços de madeira e lixo voavam, acabando por ser projectados contra tudo o que lhe tentasse fazer frente. A água corria em riachos desordenados, que se subdividiam, parecendo um rio ao contrário, em que os afluentes, em vez de se juntarem, deslizavam por onde a natureza fazia, naquele dia, questão, de que se desirmanassem, inundando aqueles pavimentos térreos que separavam as inúmeras barracas, umas melhor calafetadas que outras… Os ruídos, alguns esporádicos, outros permanentes, eram o reflexo daquele vento vadio que decidira implicar com os improvisados e débeis materiais que, na sua função, deveriam proteger alguém que, à falta de melhor, se enganava com tamanho conforto. Faltava ainda o granizo que agora também decidira fazer uma visita ao bairro, provocando um barulho ensurdecedor ao embater, sem dó, nem piedade, naqueles pedaços de chapas trazidas, sabe-se lá de onde, para garantirem um isolamento de maior qualidade. Tinham passado cerca de vinte minutos. 
Era um bairro de lata
Francisca deslocara-se a um bar, localizado nos arredores da cidade, e foi de lá, no alto de um morro, numa espécie de esplanada fechada com acrílico dos lados e de frente, que em vez de saborear um café que, normalmente, lhe era muito agradável, teve um pesadelo horrível, que não sonhou, que não imaginou, mas antes viu, sentiu, e, pior que tudo, gravou. Era um bairro de lata, como tantos outros, que ela se habituou a ver e que lhe transmitia a miséria, que ela rejeitava, mas embora a deprimisse, tinha a capacidade para racionalizar os factos e perceber a amarga conclusão de que não era só ela que podia mudar o mundo. Naquele dia, vinte minutos, ou à volta disso, provocaram naquela pessoa, bem formada, de princípios sólidos e solidários, de um humanismo, às vezes, ingénuo, de tão puro, uma convulsão de sentimentos que a transportou para um verdadeiro estado de inquietação. Já em sua casa, sentada no sofá, não conseguia concentrar-se em nada, a não ser no que lhe havia ficado gravado, quem sabe, se para sempre. 
Não deixava de se lembrar daquela mãe que, completamente ao tempo, obcecadamente, tentava com uns bocados de plástico, remendar aquilo que a mal fadada tempestade roubava àquela barraca, como se dali fosse sítio para se roubar alguma coisa. O menino, de idade de escola, armado em homem, descalço, com uma camisita a escorrer que tentava secar ao vento, labutava joelhado, e fazendo das suas mãos pás, empurrava terra, à volta de toda a barraca, contra as tábuas, que de parede faziam. Aquele velhote, corcunda, com uma careca rodeada de cabelos brancos, que, na rua, procurava uma pequena cadela, a sua cadelinha, que no regaço levou para casa, como se debaixo de telha ficasse. 

sábado, 20 de abril de 2013

Num comboio regional, à hora de ponta


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Helena Maltez


O sujeito tinha um corpo anguloso, sem ordenamento territorial. Tudo à balda, das feições ao trajar. Como único adereço, um embrulho de suspeitáveis contornos. Parou um momento junto da porta, topografando o interior da carruagem, e só depois tomou de assalto o lugar mesmo à minha frente. Remexi-me no banco num desassossego de maus agouros. Inquietava-me aquela coisa embrulhada em papel de jornal que o fulano empunhava com aprumo militar. Um facalhão de magarefe? Uma catana? Fosse o que fosse bulia com os arquivos da minha memória, obrigando-me a rever lúgubres imagens televisivas: ataques à mão armada… bombistas embuçados…reféns…explosões. Céus! E se…

Isto é um assalto!
Pus-me a fantasiar um assalto em versão soft, uma espécie de desenrascanço à portuguesa: comboio regional quase lotado… homem sem emprego a chafurdar na crise…arma branca…Estava a minha efabulação prestes a atingir o seu clímax dramático, quando no enredo se veio enredar um segundo suspeito, um tipo grandalhão, com excedentes adiposos e voz de parada militar.
No banco da frente, viajavam agora, traseiro a traseiro, dois alegados terroristas. Arrepiei-me toda.
Que podia eu fazer? Mentalmente tentei rascunhar uma estratégia de defesa: olho atento, ouvido à escuta. Não que a conversa a decorrer fosse minimamente reveladora. Um circuito fechado de fruta, pomares e podas.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Casa dos meus Avós Paternos


Maria Jorge


Agora que as noites são mais longas e a idade vai avançando, sentada à lareira, olhando o crepitar da madeira que me vai aquecendo a casa e o espírito, dou por mim, recuando no tempo, a recordar a minha meninice e o quanto fui feliz em casa dos meus avós, apesar das parcas condições de habitabilidade que a mesma tinha comparada com os tempos de agora, onde, por exemplo, a eletricidade, o saneamento ou a canalização da água eram ainda uma miragem.
Era uma casa pequena
Era uma casa pequena, toda feita em adobe e caiada, mesmo à beira do caminho com uma porta ao meio e duas janelas com portadas interiores. Essa porta só era aberta em dias muito especiais. As janelas correspondiam a duas divisões sendo uma da sala do senhor que era composta por uma mesa que tinha como ornamentação um crucifixo, uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, o anjo da guarda, e outras imagens de santos da devoção dos meus avós e ainda por uma lamparina com uma vela que era acesa de vez em quando; duas cadeiras completavam a decoração da sala. A outra janela correspondia ao quarto principal, cuja decoração era composta por uma cama não muito grande, um guarda-fatos, duas mesinhas de cabeceira, uma cómoda e ainda um lavatório em esmalte, que era composto por uma bacia um jarro colocado dentro da bacia e um balde para aparar a água quando era; paralelamente à bacia, um varão onde se colocava uma toalha, que tinha de estar sempre impecavelmente lavada, já que tinha como finalidade ser usada por alguém de referência, como por exemplo, o médico ou o senhor prior.                                                                                            
Este quarto só era usado quando alguém estivesse seriamente doente e precisasse da visita do médico ou ainda onde era depositado alguém que morria enquanto não era levado para o cemitério. Esta divisão comunicava com a sala do senhor que, por sua vez, dava para o interior da casa, onde era o quarto dos meus avós e uma sala grande, com janela para o pátio, que comunicava com a cozinha principal, através duma cortina que servia de porta. No quarto, que não tinha janela, havia apenas uma cama encostada a uma das paredes, uma mesa pequena e baixa que servia de mesa-de-cabeceira onde estava o candeeiro de petróleo, uma arca onde era colocada a roupa de cama e ainda uma cadeira; na sala existia uma mesa grande, servida de bancos corridos de igual tamanho da mesa, um aparador que era ornamentado por papel colorido que era cortado minuciosamente com uma tesoura e que dava efeitos muito bonitos. 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Mais uma página em BRANCO



EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Jorge Santos


Bolas, mais uma página em BRANCO, e agora? É do caraças. Toca a inventar uma personagem - branca, como a página. Mas também poderia ser negra, azul ou às pintinhas. No dia em que o milímetro de epiderme definir a pessoa pelo seu todo, as galinhas terão dentes, e pelo mesmo motivo: o da estupidez, pura e dura. Mas adiante. 
A minha personagem chamar-se-à Pedro
A minha personagem chamar-se-à Pedro. Tem um pequeno escritório de contabilidade, vive sozinho num apartamento normalíssimo. Aliás, toda a sua vida é absolutamente normal, tão normal que ele tem a impressão de não ter vida. Talvez seja essa a razão dele não conseguir ter um relacionamento mais estável: a sua insustentável normalidade de pessoa normal, heterossexual assumido, algo quadrado nas atitudes. Gosta de música dos anos 70 e 80, abomina o que é tocado nas discotecas e bares. Por essa e por outras, Pedro sente-se sozinho e tem tendências para a depressão. Até brinca com isso: “Mais deprimido do que eu, só mesmo a situação económica do país”, matuta ele, enquanto termina mais um modelo 22. Mas ainda mais adiante: Pedro está apaixonado. Descobriu há pouco tempo, e mudou completamente o seu mundo cinzento. A culpada chama-se Céu Vermelho. Não, não é brincadeira. 
Céu Vermelho
Ele está apaixonado por um perfil anónimo que habita no seu Facebook. Nunca viu sequer uma fotografia dela, mas todas as conversas que tiveram deu-lhe essa certeza, a certeza de ter conhecido a sua alma gémea. Não se trata apenas da concordância de gostos, mas também a concordância nos maus gostos, ainda mais importantes. Os dois gostavam das mesmas coisas, coisas essas que as outras pessoas pensavam não ter valor absolutamente nenhum. Foi com espanto, por exemplo, que Pedro descobriu que Céu Vermelho tinha, como ele próprio, um fascínio pelos filmes pornográficos do início dos anos 80. Nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse daquilo, mas Céu Vermelho gostava, e isso tinha feito o clique: Pedro passou o seu estado civil para SOLTEIRO, MAS APAIXONADO. 

Enfim, só!

Maria Conceição Cação
Ainda de olhos fechados, tacteio o lugar ao meu lado. Vazio. Desperto. A esta hora, ele já se encontra a longa distância. E onde estão as vozes chilreadas dos pequenos, que, mais madrugadoras que o sol, inundavam a casa de alegria? Longe, bem longe. À minha volta, silêncio, apenas. Sinto-me a sufocar. Depressa, desço a escada e tento algum conforto no televisor. Não, já não é o Canal Panda. Experimento uma sensação agridoce. A partir de hoje, vou ver os meus programas preferidos, sem o zapping dele e as birras dos miúdos. Ah! E as minhas músicas esperam-me nos CDs trancados no armário. Reencontro-me comigo à mesa do pequeno-almoço. Regresso à minha dieta, nada de bolos, nas próximas duas semanas.
De divisão em divisão, vou avaliando os estragos: prateleiras sem livros, almofadas sem capas, impressora sem papel, portas sem chaves, … chão com muita areia, móveis cobertos de pó, muito pó. Lixo por toda a parte. Abandono e desconforto.

É preciso lavar, arrumar, aspirar, limpar, coser, consertar…
Mas hei-de também ler
Mas hei de também ler, ler muito, voltar aos meus livros durante longas horas. Enquanto devolvo os livros infantis à estante, vou passando os olhos pelos títulos que me espreitam, empoleirados nas outras prateleiras. Uma cascata de recordações começa a jorrar na minha memória. Esta casa, agora tão vazia, já conheceu dias muito animados, quando as visitas se sucediam, quase sem interrupção. Acho que já nem me consigo lembrar de Todos os Nomes. Um dos familiares mais assíduos era O Primo Basílio.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Onde eu gosto de ir


Júlia Sardo

Dou comigo muitas vezes parada junto ao rio, vendo os barquitos de pesca artesanal, andando de um lado para o outro, à procura do melhor lugar para pescar.
Fico absorvida nos meus pensamentos e aí começo a recordar; será recordação ou sonho?
Quando os dias estão calmos
Quando os dias estão calmos de vento e com um sol quentinho, lá vamos, com um lanche bem abastado, um termo cheio de café, passar um dia na pesca. Já no barco, começam-se a preparar as canas, pondo os estropos com os anzóis. Chegados à pescaria, pomos a isca no anzol e aí vai ele, para a água.
Então, começa o tempo de espera, para que o peixe pique. De repente, sente-se um ligeiro tremor na linha e com reflexos, rápidos, dá-se um puxãozinho, para que se for peixe, fique preso pela beiça. Puxa-se a linha, fazendo rodar o carreto, até que ela chegue ao nosso alcance. O peixe, ao sair da água, é tão prateado que parece envolto numa luz. Tira-se o peixe com cuidado, de preferência com um pano na mão, para não haver a surpresa, de uma espetadela. É posto num balde com água da ria, para que se conserve vivo.Tem de se pôr mais isca no anzol para que volte à água.
Ao sair da água todo o peixe é bonito, mas os ruivos são uma delícia. Saem com as barbatanas abertas, parecendo as asas dum pássaro em pleno voo.
E que lindas são as cores das barbatanas! Parecem um arco-íris.
O barco vai ao sabor da maré
Percorremos vários sítios da ria, à procura de mais peixe. Faz-se um arrolado; passo a explicar o que são arrolados, para quem não sabe. O barco, sempre com o motor a trabalhar, mas desengatado, vai ao sabor da maré. A linha, com o anzol deslizando na água vai mexendo devido à marola que faz a água; o peixe, guloso, ao ver algo a mexer-se, toca de se atirar.
É bonita a pesca, porque há silêncio, paz de espírito e sente-se uma serenidade, inigualável.
            Entretanto, ouço a buzina de um barco, que vai a entrar na Barra e desperto dos meus pensamentos? Ou de um sonho?
            Fico triste por não ter estes momentos felizes, mas ao mesmo tempo recordo com saudade tudo o que vivi e o que aprendi.

A UM DOMINGO DE RAMOS

Susana Ramos
"Jesus de Nazaré
Pobre carpinteiro judeu
Tornou-se rei entre os homens
E o maior que já viveu.

De olhos escuros talvez
De bela figura o semblante
De cor de canela a tez
O cabelo negro brilhante.



Uma santa terra sem paz


Em terra santa nascido
Uma santa terra sem paz
Continua ainda a sofrer
Pela guerra que o Homem faz.

P'los seus feitos se distinguiu
Está registado na História
Deixou mandamentos novo
Que ficariam na memória.

E se houve quem lhe chamasse
Naquele tempo louco e fanfarrão
Cuidado com os loucos de hoje
Não se sabe o que serão.

Cristo ou Emanuel
Ou leão da tribo de Judá
Se teve mulher ou não
Que importa? Quem saberá?

Este filho de Davi,
Não há quem dele se não lembre
'Toda a honra, toda a glória
Agora e para sempre'. "

Díli, 23 de Março de 2013







domingo, 14 de abril de 2013

O caminho sem retorno


A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.

Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! Obrigada.

O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com  ou para qualquer outro dos autores do blogue.

TEXTO II   
Albertina Vaz
                                                                                                                                                                     
Vi-a cambaleando de um lado ao outro da rua. Claro que era uma rua muito estreita mas o seu andar prendeu-me: quis estender-lhe uma mão, quis alongar-me na sua direcção, quis encolher a distância entre nós. Mas não, fiquei a olhá-la: imóvel, sem capacidade para agir, sem habilidade para avançar, sem engenho para captar a sua atenção

Mas nem tempestade se presentia
Caminhava sem conseguir controlar os seus passos, tropeçando nos seus próprios pés, vacilando ora para a direita ora para a esquerda, ficando estática no meio da rua, embalando o corpo para trás e para a frente como uma pena de um pássaro volátil que se desfaz no turbilhão de uma tempestade.

Mas nem tempestade se pressentia por ali: tudo estava calmo, como se já nada fosse possível alterar, como se tivesse chegado ao fim da rua e, do outro lado, apenas existisse um precipício enorme que a poderia conduzir ao vazio eterno e ao descanso dum deserto desabitado
E foi assim que a vi curvar os joelhos, estender os braços ao longo do corpo e deixar-se cair como um peso quase morto, largado da vida e desprendido da arte e do saber. Ficou ali, no meio da rua, como um monte de areia, enrolado sobre si mesma, sem se diferenciar a cabeça do tronco e o corpo dos pés. Parecia querer ter parado de uma vez por todas, cansada talvez das caminhadas sem destino, dos companheiros de jornada e de tudo e de nada e dos túneis sem fundo e das cavernas sem luz.

... como um monte de areia
Passaram por ela olhando-a sem a verem, olharam-na como alguém que tinha chegado ao fim da estrada ou a uma estrada sem rumo onde tudo escurece e alguma coisa não acontece porque já nada mais resta. Nem o sol parece voltar porque a chuva miudinha e macilenta se instalou definitivamente naquela vida sem rumo.
Houve até quem lhe tocasse com um pé, quem se agastasse com aquele monte de ser vivo que incomodava a passagem e dificultava a visão de quem não queria ver ou ouvir o ruido que se instalava.
Era uma rua estreita por onde apenas uma nesga de claridade se divisava no fim do fim de quase tudo. Ali ela podia cair à vontade e ficar com firmeza junto ao chão não sendo capaz de se reerguer ou simplesmente de se levantar.
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