segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Roda Gigante

Albertina Vaz


Finalmente um dia de sol. Já quase me não lembrava de como é bom um dia de sol: o cheiro da terra húmida a soltar-se e a crescer enovelando-se no espaço; o ar quente a acariciar a pele e a saber bem; as flores, numa profusão de mil cores, a erguerem-se altivas procurando um raio de sol só para si; as aves a saírem das árvores numa dança de sedução procurando o companheiro especial; os animais saindo das tocas em busca do comer que tem escasseado durante o longo e penoso inverno.
E com o sol veio também aquele espreguiçar bom que aquece a mente e convida a
Um dia de sol
novidades: uma caminhada das que nos fazem sentir o chão que pisamos ou um dia longe da actividade soturna e diária. Afastei-me da melancolia sempre presente quando o inverno se prolonga e se instala: afinal hoje está um dia de sol.
Fui dar uma volta à feira. De manhã, quando o bulício é ainda pequeno e só os gonzos da roda gigante tomam conta do ambiente. Aqui e ali uma criança de olhos desmedidos e boca aberta saltita por entre os carrocéis que se erguem frente à praça. Percorri sem pressas o espaço onde os chamados divertimentos se alinham lado a lado numa zona pré-determinada e definida. Uma profusão de cores, de campainhas, de sons mais ou menos agudos, de música difundida a metro ou em rodas redondas. E de apitos – muitos apitos que, sem eles, nem a feira é feira.
Em passo cadenciado, dei por mim a pensar que a roda gigante é redonda e gira à volta
A roda gigante é redonda...
de si mesma regressando sempre ao ponto de partida. Se assim não fosse como sairiam os que entram e como entrariam os que estão de fora? E o carrossel dos animais, mesmo em ondas que sobem e descem, não é ele redondo também? Não anda à volta dum centro que começa a rodar quando o movimento se desencadeia? Até o carrossel dos barquinhos, onde só as crianças podem andar, gira à volta de um eixo movimentando atrás de si a água que essa mesma volteia em círculos concêntricos. E o labirinto ou a lagarta gigante não fazem anéis redondos regressando sempre ao ponto de partida que no fundo não deixa de ser o ponto de chegada? E até as diversões mais recentes que giram a uma velocidade vertiginosa o fazem rodando sobre si mesmas numa argola imensa e redonda que volta sempre ao mesmo lugar.
O sol continuava lá a fazer-se sentir como se ele também tivesse regressado dum outro lugar, por debaixo dos meus pés. E dei por mim a pensar que eu própria sou uma roda gigante que rodo numa terra que também, ela própria, gira sobre si mesma. E é nesta roda gigante que vou circulando ao redor da terra sabendo que a cada porta que abro descubro uma nova etapa que estou a percorrer.

domingo, 19 de outubro de 2014

As portas da vida

Fernanda Reigota

Tentava perceber o que se estava a passar. O leito paradisíaco que desde sempre conhecera, transformava-se. O amortecedor de líquido em que costumava saltitar nas horas de atividade esvaziara-se, mas a temperatura, a maciez e a sensação de satisfação continuavam. Apenas o aconchego ficara um pouco mais aconchegado. Pouco a pouco começou a sentir-se verdadeiramente apertado, sendo mesmo expulso do seu leito primordial.
Olhou para aquela porta que tinha sido obrigado a transpor, mas depressa novas
...a porta que tinha sido obrigado a transpor...
sensações prenderam a sua atenção: gritou e assustou-se com o seu próprio grito, respirou e espantou-se com aquele vento ligeiro que ia lá dentro refrescá-lo e depois saía quentinho, abriu os olhos e, por causa daquela luz forte, fechou-os imediatamente, quis sentir o seu corpo e a pele não era a mesma. Uma voz conhecida falava em roupinha. Era melhor descansar, dormir, logo compreenderia o que lhe tinha acontecido.
Tal como aquela criança, naquela maternidade já tinham nascido muitas outras naquele dia. Todas tinham passado por sensações idênticas, todas haviam transposto a porta da vida. Branca, com algumas marcas genéticas, esta porta fora a primeira de muitas outras que pautam todas as vidas.
À volta daquela criança projetava-se e movimentava-se em espiral um feixe de luz em contínuo movimento circulatório: este rasto de luz ia construindo a estrada do seu tempo e o tempo da sua estrada. Inexoravelmente a criança acompanhava esse traçado desde a porta de entrada para a vida.
Aquele feixe de luz encobria muito mais do que aquilo que mostrava. Se olhava para a esquerda perdia, para sempre, a oportunidade de conhecer o que o tempo tinha acabado de levar. Neste espaço de tudo e de nada, a criança não podia falhar a escolha ou a recusa da próxima porta que cruzasse o seu caminho. Recusou a porta da ignorância e
...a porta da curiosidade...
rapidamente teve de decidir: é que, mesmo pegada a ela, vinha a porta da curiosidade. Atravessou-a e, já do lado de dentro, reparou que estava decorada com as conquistas mais significativas que tinham nascido do sonho humano. Intuiu a importância do sonho e do conhecimento para a vivência da estrada do Tempo e do tempo da estrada, enquanto observava as sugestivas pinturas de belos monumentos, sinfonias reveladoras do som cósmico, teatro, dança, globalização, aventura, magia científica, tecnologia, velocidade... Então, sentiu-se a saborear o cheiro inebriante da felicidade possível. Foi assim que enxergou uma mancha que servia de base a toda aquela maravilha: era uma amálgama de poluição que arrastava a vida do planeta Terra para a não sustentabilidade.
Tinha companheiros, mas a maior parte do tempo a viagem era feita em silêncio, embora todos fossem falando, maravilhando-se com as suas próprias palavras. Apesar disso, conseguiu sintonizar-se com algumas outras crianças para brincarem. E um arco-íris de sonho e descobertas desenhava-se sobre as suas estradas.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

PORTUGAL

Silvia Paradela 


Sob o Sol e o azul do céu
E uma força divinal
– Como c’lorido rosal
Num canteiro que é só seu –
Plantado estás, Portugal!
Mas ventos vêm e varrem
Riqueza do teu matiz…
Sustém-te a tua raiz
Que não deixará que abalem
O viço do meu País!
"O viço do meu País!"

Terra bem-aventurada
Pátria minha singular,
Tua glória é celebrada
Em «Os Lusíadas» cantada
Para jamais olvidar!

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A dor de partir e o imperativo de chegar


Albertina Vaz

Vi-o caminhar, lenta e pesadamente, pelas ruas estreitas da cidade quase deserta. Olhava cada janela, cada vidraça empoeirada, cada vaso de flores pendendo através da madeira carcomida da varanda. Parecia querer agarrar o que lhe escapava, prender e que se desatava, apanhar o que lhe fugia. Nem sequer compreendia o que girava à sua volta. Só sabia que não encontrava nem o fim da estrada, nem a luz na calçada, nem o mar que se afundava por entre a areia dum deserto, ali, à beira da porta.
Quem te deu o direito de parar? – pensou. Quem te deu o direito de matar o pássaro que
...o pássaro que reclama voos...
reclama voos dentro de ti e exige cortar a sombra que teima em se instalar? Quem te permitiu carregar, nas tuas costas, o peso de um mundo que te despreza e te angustia?
Já não sirvo para nada, foi o que arremessaram: e, no entanto, continuo a ouvir o rasgar das giestas e o cantarolar dos patos que invadem o lago e semeiam gramados por entre as flores dos nenúfares no rio. Sinto cá dentro, uma dor que se instala e uma chuva miudinha que invade o meu peito e rebenta como uma estrela que explode em luzes de mil e uma cores.
Já não sei que fazer – esta hesitação é o que mais me dói – não sei se partir, se ficar; não sei se caminhar, se parar; não sei se gritar, se calar.
As ruas da calçada fogem sob o desejo de ficar – a filha que queria ver crescer, a mulher que se esgota nas casas dos outros por um prato de sopa, a mãe que não voltará a beijar. E quanto tempo vai decorrer, até que eu volte a pisar este caminho sem fim, em que me sinto e me remanso, em que nasci e cresci, em que lutei e perdi?
Perdi aquele pôr do sol ...
Perdi – o quê? Perdi tudo e perdi nada, perdi as giestas a cantarolar e o bater de asas dos patos no debruado da ria, perdi aquele por do sol de cores demasiado quentes e a neblina do fim de tarde que faz cantar as árvores e deslizar os ramos dos ninhos acabados de fazer; perdi aquele mar azul que se encapela e nos prende sem agarrar.
Perdi, ou vou perder? Aquelas janelas pequeninas com cortinas debruadas a renda feita à mão, aquele azul pintado no meio de um negro, escuro e cinzento, duma parede que se ergue entre o que se sente e o que se diz, entre o que se quer e o que se faz, entre o que se sonha e o que se realiza. Já nada resta – nem lenha para acender a fogueira, nem um pão na mesa, nem uma flor.
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