terça-feira, 28 de abril de 2015

Anda lá, Jaquim...



Maria José Pereira

Era eu ainda bastante pequeno e já a minha mãe dizia:
– Anda lá, Jaquim, que não é na cama que se arranja plim-plim!
Pouco fui à escola. Também não conseguia aprender grande coisa.
A minha mãe via mesmo mal. Usava uns óculos muito graduados. Era uma autêntica " caixa de óculos".
A minha mãe tinha mais filhos, os meus irmãos, mas ela não lhes dizia: "Anda lá Jaquim, que não é na cama que se arranja plim-plim!"
"Anda lá Jaquim..."
Eu acho que a minha mãe descobriu em mim este talento para arranjar plim-plim.
Quando já era mais crescidito, comecei a ir para a cidade, que era o sítio onde andavam mais pessoas nas ruas. Acho que a minha mãe percebeu isso.
A minha mãe andava sempre triste. Devia ser por causa do meu pai. Ele bebia uns copos a mais e quando chegava a casa era uma grande confusão!
 E lá ia o Jaquim, todos os dias, para a cidade, para arranjar plim-plim, para a mãe não ficar zangada. É que ela zangava-se, mesmo, se eu não aparecesse, em casa, com o plim-plim!
Depois de muitos anos a pedir esmola, comecei a observar os polícias de trânsito e pensei: Vou arranjar um apito e um livro de passar multas.
Assim fiz.
Fui para um sítio onde passavam muitos carros, apitava, fazia de conta que passava multas e o certo é que ia conseguindo algum plim-plim. Todos os dias entregava plim-plim à minha mãe.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Olhó Noticias, olhá Flama

Maria Helena Linhares

Habituara-me a ver a sua figura a deambular dentro da estação, não a lançar o pregão como os outros vendedores faziam: olha o Século, olhó Notícias, olhó Record. Mas a murmurar, (penso agora, talvez por falta de forças) o que desejava ser o mesmo pregão: Olhó Notícias, olhá Flama.
E lá se ia arrastando, com as costas muito dobradas, ajoujadas ao peso do enorme sacão onde transportava todas as notícias do mundo...
Não andava, arrastava os pés, calçados com enormes alpercatas feitas de restos de
"Senhora dos jornais!"
pneu, vestida com uma enorme bata azul que, nas costas, a amarelo, devia dizer Jornais, pois pouco mais se via que o J. O resto, escondido pela mercadoria, espreitava fora do saco. Na cabeça, um lenço escuro, colocado às três pancadas, com as pontas atadas sob o queixo, não com a pretensão de embelezar mas para esconder o cabelo maltratado.
Usava uns enormes óculos, com lentes de fundo de garrafa, e, pela sua pouca visão, arrastava os pés e o corpo pesado, vergado pela carga que, sem querer, arrastava também os que apressadamente se atravessavam no caminho pesado daquela vida sofrida.
Exalava um cheiro a álcool que tresandava e incomodava os demais. Crianças e adolescentes inconscientes às vezes empurravam-na para lhe provocarem os impropérios e pragas que saíam da sua boca enfurecida.
Eu não conseguia achar qualquer graça àquela espécie de brincadeira, para mim não tinham qualquer piada pois levava à letra o que a minha mãe recomendava – com vinho ninguém se meta – mas cobardemente não fazia frente aos outros.

domingo, 19 de abril de 2015

O OLHAR QUE NÃO ESQUECE

Clavel 


Os animais manifestam sentimentos, pelos movimentos do corpo e pelo olhar. Lembro a fidelidade do “Boris” um boxer que, na sua irrequieta aflição, chorava quando pressentia passos de saída da porta principal da casa. Ele lia os mínimos gestos, gestos que indiciavam a partida, em breve...
Bastava que o saco fosse deixado nas proximidades da entrada na casa para ele saracotear os seus nervos. Ziguezaguiar a elasticidade dos quadris. Adensar a sombra lânguida do olhar.
Cada pessoa é o seu olhar.
Como nas sentinelas que fazem parte do quartel guardado, os olhos são instrumentais e integradoras da alma. Neles se reflete a essência e virtualidades da alma. Olhar é manifestação explícita da vida. Com a extinção  da vida fecha-se para sempre  a cortina que comanda o olhar.
Cada pessoa é o seu olhar. Além de ver dá que ver. Penetrar no olhar de alguém é aceder à raiz mais profunda do seu ser.
Pelo olhar se chega ao labirinto do cardume de pensamentos que nomadizam na mente.
Pelo olhar se transmite a mais convincente nostalgia, a saudade, a tristeza, a alegria, a inquietação, a esperança, o cansaço, o prazer, a dor, a raiva, a ameaça, o ódio, a ternura, o amor, a paixão, a compaixão, o desespero, a esperança e por aí adiante.
O olhar quando terno é doce, envolve e adoça quem o contempla e o sabe entender.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Português, sexagenário, europeu.

José Luís Vaz

A manhã preparava-se para se despedir e o sol de inverno trazia o conforto e bem-estar que a noite gélida tinha usurpado. Naquela esplanada, recatada, abrigada de ventos fortes e com uma privilegiada exposição solar, permaneciam amantes da acalmia alimentada pelas leituras e pela soberba vista de tanto mar.
Um homem de barba branca e farta com cabelo ralo da mesma cor, passava ali imenso tempo observando a imensidão daquele mar, aparentando, talvez, um olhar vazio, como se esquivando do mundo naquele oásis com pensamento vago. Como um vento fraco mas incomodativo, o cérebro exibia-lhe lembranças em que a esperança e a ambição de tempos idos se debatiam agora com o desconsolo e a decepção de uma Europa decadente.
Jovem adolescente, obrigado a viver os ditames da ditadura, sonhou com ela, ali tão perto, continente da liberdade!

                                               Hoje:
Nem sei que diga...
Nem sei que diga
Nem sei que conte
Que sou, afinal, eu?
Neste fado europeu

Em tempos de servidão vinham notícias escondidas e camufladas que alimentavam aquela esperança de que tudo poderia ser diferente. Atravessavam Espanha, com pés de veludo, espalhando o apetite para a viragem da ditadura que também por ali desrespeitava os mais elementares princípios de cidadãos com dignidade.

domingo, 12 de abril de 2015

O Pai Guilherme

 Maria Cacilda Marado 


Chamava-se Guilherme; um nome pouco vulgar para mim, na época em que eu era ainda menina. Um nome que eu pronunciei poucas vezes, apenas quando me perguntavam o nome do meu pai - Guilherme Carneiro Marado -, dizia eu à espera dos sorrisos enviesados que às vezes deixavam entrever os inquiridores. Eu sorria para dentro e pensava comigo: tomaras tu ter um pai Guilherme como o meu, um pai doce que me dá mimos, beijos, abraços. Um pai que me protege da minha mãe que não me perdoa uma. Na verdade, embora ela me amasse muito também, cabia-lhe o menos bom: mandar-me estudar, não me deixar brincar o dia todo, mandar-me ir para a cama cedo, etc., etc.

... o seu jeito doce de lidar comigo, o seu modo de me amar.
Mas voltemos ao meu pai, pois é dele que vou continuar a falar, sobretudo daquele seu jeito doce de lidar comigo, do seu modo de me amar. Enquanto pequena, os seus braços eram os mais acolhedores do mundo e os seus beijos os que estavam sempre cheios de promessas.Com que alegria o recebia quando ele chegava a casa, à noite! Rita Joana, perguntava-me, como correu o dia? Portaste-te bem? Obedeceste à mãe? Eu atirava-me a ele e os meus olhos diziam tudo…Depois, vinha a recompensa ou a desilusão. E como eu sofria quando o via triste comigo! E dizia de lágrimas nos olhos: amanhã vou ser mais obediente, pai. E isto era o suficiente para o ver de novo feliz e sentir os seus afagos.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

VIDA SULCADA

Fernanda Reigota


Eu sei que vou!
Minha vida sulcada tem a aurora na lembrança.
Eu sei que fico!
A teia da minha vida foi urdida com fios de esperança.
Eu sei que quero
Em cada esquina uma alvorada futura!
Eu sei que tenho
Dos meus príncipes o quente abraço da ternura!
Nesta vida, em que não há longe nem perto, 
Como quem colhe flores
Alenta-me minha incerteza.
Nesta vida, que é sol encoberto,
As aves riscam o céu azul
E estou tranquilamente inquieta, sem tristeza.
Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 7 de abril de 2015

Assim pensou assim fez.

Maria José Pereira


Meteu-se no carro e rumou por aí...
A pressa  de chegar era mais  que muita, mas não  queria transgredir. Tinha de ficar calmo e não carregar  demais  no  acelerador. 
Deliciou-se a contemplar o campo, que  começava a ficar salpicado  de flores minúsculas, roxas,  amarelas, vermelhas, lembrando uma pintura de Monet.
O ambiente era quase silencioso
O ambiente era quase silencioso, não  fosse o chilrear  da passarada. 
E, quão apaziguador era aquele espaço  a não perder de vista...
Mais uns quilómetros e, finalmente, chegou à  pequena localidade, junto  à praia. 
As casas, poucas, baixinhas, pintadas de branco. 
Numa ruela estreita, numa casa branca como a neve, os amigos esperavam-no.
Foi só tempo de pousar a mala. O mar sereno esperava-os.
As pequenas ondas espreguiçavam-se na praia, como a querer revolver a areia dourada. 
Os raios de sol, já, bastante, fraquinhos, iluminavam o mar.
Depois de tão longa viagem, chegou a altura de descansar. - pensou. E assim pensou, assim fez.


Maria José Pereira ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 3 de abril de 2015

INCITAMENTO

Clavel

Não percas tempo à procura da verdade

É excessiva a poalha da informação
que por abusiva e prolixa
cria notável confusão.
Ninguém vê claro as estradas do amanhã
Ninguém sabe se mora ou não
uma gorda lagarta
no coração rosado duma maçã.

Não percas tempo à procura da verdade
porque nem ela sem máscara
entra nas portas da cidade.
Não te guies pelas barreiras do medo
que te inibem do caminho certo;
usa a intuição
onde podes adivinhar os limites do horizonte
e saber de que fogo nasce o vento.

É bom conhecer o fogo de que o vento nasce
que nunca perde, e jamais se perde.
Segue o vento sem medo,
não evites as mãos do vento que lavam a face
da bandeira da  liberdade
e continua a proclamar vitória.

Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Se bem pensei melhor o fiz

Maria Jorge


Hoje acordei, sentei-me na cama e de repente senti uma vontade desmedida de transgredir, de não fazer nada que tinha planeado no dia anterior.
Esta é a altura do ano em que normalmente faço uma vistoria à minha casa, e, entre outras coisas, revolvo gavetas para depois as deixar um pouco mais desocupadas, dando outro destino às peças que considero mais inúteis para mim e talvez mais úteis para alguém.
Desperdiçar este dia?
Mas… o dia hoje amanheceu radiante com o sol a espreitar pela janela do meu quarto.
Desperdiçar este dia? Nada disso, este trabalho podia esperar. Há coisas muito mais interessantes para fazer, pensei.
Se bem pensei, melhor o fiz. Peguei as chaves do meu carro e desafiei a minha companhia habitual.
Contemplando aquela extensão de mar, fechei os olhos e deixei-me levar pelo silêncio da praia deserta, interrompido de vez em quando apenas por alguma gaivota mais atrevida ou pelo sussurro daquelas pequenas ondas que teimavam em quererem molhar-me os pés.
Regressei a casa ao fim da manhã. Afinal valeu a pena não arrumar gavetas. 

Maria Jorge ©2015,Aveiro,Portugal
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