Teresa Morais e Albertina Vaz ©2015,Portugal
Os olhos fitavam os olhos, sem
reação. Gostava de ter o poder de ver através deles. Em que estaria a pensar?
Oxalá o verbalizasse, que raio. Alegre por o rever? A odiá-lo? A porta
continuava entreaberta, mas o braço em riste impedia a passagem.
O frio doía nos ossos. A noite
acabara de se instalar. Era véspera de Natal. Um Natal que
ansiava celebrar em paz, sem um permanente estado de alerta, sem o medo a
roer-lhe as entranhas, sem ouvir tiros e detonações constantes, sem se
defrontar, constantemente, com torturas, mortes e destruição, e a poder assumir,
abertamente, a sua fé cristã sem receio de represálias.
O
braço em riste continuava a barrar-lhe a passagem. Amal sorriu, tristemente.
Tornara-se um estranho para o seu amigo Samir, porventura um intruso ou um
ladrão, a seus olhos. E não teriam sido os meses, longos como o arrastar
daquela absurda guerra, sem notícias um do outro e vividos em dois países
diferentes e distantes, que seguravam o braço de Samir – Amal percebeu que
estava irreconhecível: a extrema magreza, a longa barba a cobrir-lhe o rosto
emaciado, os olhos cansados e tristes, os ombros descaídos, vergados ao peso da
sua história recente e dolorosa, na sua amada e distante Síria. O frio doía-lhe
nos ossos, a frieza do olhar de Samir doía-lhe no coração.
Correram-lhe
lágrimas pelo rosto – a dor do reencontro, que sonhara diferente, misturava-se
com a exaustão que atingira pela longa e penosa viagem até àquele país de uma
Europa quase insuspeitada, o seu destino de recomeço, de esperança, de
fraternidade, de paz.
Pela
mente, passavam-lhe, numa sucessão vertiginosa de imagens, as distâncias que
percorrera até os pés lhe sangrarem, a fome e o cansaço que sentira, a
desconfiança, e até ódio, que lera em muitos olhares, finalmente a ajuda
humanitária a assegurar-lhe o essencial.
Saíra
da sua outrora bela, mas agora destruída cidade natal de Alepo, em Agosto, pela
calada da noite, com o temor por bagagem, e transpusera as montanhas até à
Turquia. Atravessara o Egeu, sem lhe ver o azul das águas, num frágil bote, apinhado
de vontades e de esperança, e chegara à Grécia. De comboio, autocarro e a pé
passara por países com nomes estranhos e impronunciáveis – Macedónia, Sérvia, Croácia,
Hungria, Áustria, e em Paris se cruzara, por mero acaso, com um conterrâneo que
lhe dera a morada de Samir.