domingo, 28 de fevereiro de 2016

O Actor


Vitor Sousa



Vistam-se os feitiços
Com adereços do esmero
Encimados de cúpula e chapéu.
Pisa o teu palco.
Avance o cenário das miragens
Com muita cor, lua e água limpa.
Tragam escritos de viagens.
Declamem-se etéreas, as paisagens
Açudes negros e profundos.
Medos e ódios imundos.
Amores rosa e violeta
Em clareiras de água benta.
Não te quede o coração
Perante o correr do tempo
Por cansaço ou ilusão
Desgaste ou humilhação.
Perde o teu ar moribundo
E ousa mudar o mundo!
Troca o fio ao sentimento.
Ao racional e ao vento.
Remexe na tradição.
Eleva o teu pensamento
Na procura do encanto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

COMO TUDO COMEÇOU!!!

Idalinda Dinis Pereira


Há muitos anos atrás, eram muitos os óvulos que viviam nos seus ovários, mas, um deles amadureceu e rebentou transformando-se em corpo amarelo. Vivia triste coitado, num mundo incompreendido.
Uma vez por mês, assomava à janela, pois queria companhia… Mas, impossível!.. Estava condenado a viver um curto período de tempo. E, tristemente, recolhia-se à sua humilde casinha, mergulhado numa imensa solidão!.. Tal era a sua dor, que derramava lágrimas de sangue, mas só uma vez por mês.
O milagre da vida
Todos os meses isto se repetia, e lá estava o corpinho amarelo na esperança de encontrar alguém que o compreendesse e lhe fizesse companhia… Até que, um dia, fez-se luz! E no céu apareceram milhões e milhões de visitantes em constante correria e alta concorrência para ver qual deles conquistaria o corpinho amarelo, pois só um podia ser o vencedor.
Corpinho achou aquelas figuras muito estranhas… Com uma cabeça oval e uma cauda tão comprida e disforme que, aos seus olhos, não servia para sua companhia nem tão pouco para tirá-lo daquela solidão! E assim, mais uma vez, teria que voltar à sua casa e derramar aquelas lágrimas sanguíneas, provocando-lhe uma dor incomportável.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

LOUVY


Conceição Cação 


Aquele frango a rodar, douradinho, ali mesmo à frente dos olhos. Sentava-se a contemplar o petisco, não arredava pé, ali ficava quietinho, só os olhos acompanhando o movimento rotativo do espeto. Tão perto e tão longe! O cheiro apetitoso enchia a cozinha e invadia-lhe as narinas, mas a robustez daquele vidro tornava o forno uma fortaleza inexpugnável. Uma provocação! Eles comiam do bom e do melhor e para ele sempre aquela ração. Que era a recomendada pelo veterinário, que tinha os nutrientes certos para se manter saudável e patati patatá. Pois sim, estava farto dessa conversa. Nas suas longas horas de lazer, a ampla cabeça repousando na almofada do Mickey surripiada do quarto das miúdas,  começou a congeminar uma ideia… E tomou uma decisão. Naquele dia, após o passeio matinal, recusou-se a tomar o pequeno almoço – a imagem daquela carninha suculenta povoava-lhe o cérebro, absorvia-lhe por completo o pensamento, só de olhar para aquela mistela pardacenta ficava com o estômago em rebuliço.
...ficava com o estômago em rebuliço
– Que se passa, Louvy? Estás sem apetite?
– Ão, ão, ão…
Tentou uma entoação de protesto, mas sem sucesso. Vendo bem, melhor assim – não levantaria suspeitas. Fingindo dormitar, ficou à espera duma oportunidade. E ali estava ela: depois de temperar uns bifinhos de vitela bem tenrinhos, a Belita foi à porta. Era uma vizinha. O cheiro inundava o corredor… Não havia que hesitar, não podia recusar essa dádiva do destino. Hum! Que aspeto delicioso! Mesmo crus, aposto que não são menos saborosos que o frango. E comeu, comeu, saboreando cada bocadinho como se fosse a satisfação dum último desejo dum condenado.
Ao regressar, a dona encontrou-o a tremer, a tremer descontroladamente.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

NA LUZ DO TEU OLHAR

Maria Celeste Salgueiro



Com a janela aberta
Eu estava suspensa
Em silêncios de espera...
Era uma noite calma,
Noite de Primavera
Que fazia sonhar...
O ar estava parado,
Não se ouvia um ruido.
A lua derramava a sua luz
Nas pedras da calçada.
Não havia ninguém
Na sombra rente ao muro
Lembrando uma serpente.
Mas eis que, de repente,
O vulto que eu esp´rava apareceu.
Um som surdo de passos
Encheu a minha rua
Até que tu surgiste
Em frente da janela
Aberta par em par.
Meu coração bateu
Num ritmo apressado
Para depois parar.
E nessa noite calma,
Noite de Primavera
Brilhante de luar,
Deixei de estar suspensa
Em silêncios de espera
Para ficar suspensa
Na luz do teu olhar!...


Maria Celeste Salgueiro ©2016,Aveiro,Portugal

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O PODER NÃO TEM ASAS

Albertina Vaz 


Vagueava pelas ruas da cidade admirando-se por não se cruzar com ninguém. Está cada vez mais só e mais cinzenta a cidade dos homens. Dos homens? Ou dos animais feitos homens? Ou dos homens que parecem animais?
Gostava de admirar uma narceja
Lá estava ele – sempre filosofando como se as narcejas não estivessem ali. E estavam, bem visíveis e bem altivas. Gostava de admirar uma narceja, no seu esplendor recatado, de quem sabe que o é e não aceita que lho digam. Era assim que avistava aquela ave, quando, de manhã, abria a janela do quarto e abraçava mais um dia.
Travava os olhos devagarinho e, pelas frinchas semicerradas, perscrutava o horizonte e descia do longe até junto de si – era aí que encontrava sempre a narceja residente que, queiramos ou não, teimava em não sair dali.
Conjeturara muitas vezes porque é que aquela ave permanecia ali. Às vezes pensava que era o mar que a prendia, outras, imaginava algum macho furtivo que viria de noite, quando todos dormiam, fazer-lhe a corte e desafia-la para voos de terras distantes e mares de paragens longínquas. Mas não – ela ali ficava envelhecendo como tudo à sua volta.
Nem sei mesmo se se dava conta de que o tempo ia passando porque se mantinha,
Valia a pena continuar a esperar?
estática e serena, de olhar parado e ouvido à escuta de alguma coisa ou de alguém que havia de já ter chegado. Mas ainda cá não está. Será que virá algum dia?
Ali à volta tudo parara no tempo e mesmo que alguém resolvesse chorar, doendo de tanto sofrer, ninguém daria conta nem ninguém correria a saber de que se tratava – era como naquelas cidades grandes, onde o barulho camuflava os sentimentos e os pássaros emigravam para longe.
Valeria a pena continuar a esperar? A narceja esperava calmamente cada dia que voltava sempre mesmo depois de uma longa noite, quando a lua se não via e no céu as estrelas deixavam de tremelicar. A narceja estava ali como dantes, quando as ruas tinham cravos e as portadas das janelas se iluminavam cada dia com um tumulto de corridas de roda e risos de crianças, que iam e vinham, apertando num abraço a cidade, num laço que se prende e que não se solta sem dor.
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