domingo, 1 de março de 2015

“Abre os armários, arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela.” - Mia Couto

Conceição Cação

A decisão estava tomada, nada nem ninguém poderia alterá-la. Acabava ali a luta sem tréguas travada anos a fio. Estava exausta, mas sentia-se finalmente apaziguada, liberta. Na mente iluminada por uma lucidez que há muito não experimentava o plano começou a desenhar-se.
Os caixotes guardados na arrecadação, após a mudança ainda tão recente para aquela casa, foram descendo para a sala e ali ficaram perfilados como servos fiéis, aguardando com expectativa o seu novo destino.
Lenta, mas regularmente, como um autómato, foi depositando neles as roupas elegantes, os livros, as louças, fotografias, recordações de viagens… Enfim, todos os objetos que a tinham rodeado, mas que já não sentia como seus. Foi sem emoção que
Foi sem emoção que reviu a coleira
colocou num cantinho uma coleira da Golden Retriever de pelo de seda e olhar doce, agora numa casa a que ainda não se habituara, recordando com saudade os passeios com a dona, o Espera um pouco que a mamã já vem quando tinha de esperar à entrada duma loja Foi com a mesma indiferença que  depositou num pequeno cofre os vários diplomas e com eles todo o sucesso académico e profissional, os documentos, as recordações mais íntimas, os laços de ternura sempre tão  fácil e bruscamente desatados…
          O dia acordou radioso, o sol da manhã inundou-lhe a casa. Que importava? – o coração carregava o outono mais sombrio, toda a melancolia daquele novembro que estava prestes a despedir-se …  Iria fazer o que tinha de ser feito. Mas não era ainda o momento: demasiada luz, muito bulício… O ritual requeria recolhimento, confiar-se-ia às sombras da noite.
o deus que destrói para renovar
 Um estrondo ecoou por todo o prédio. Sobressaltados, os vizinhos interromperam o jantar. O que seria? Um profundo silêncio devolveu-lhes a tranquilidade – (soube-se depois) era Shiva, o deus que destrói para renovar, uma estátua enorme trazida de Goa, que se despedaçava  contra o chão frio de mármore.  Ligou a uma amiga. Tinha-se ferido numa perna, precisava de alguém. Um derradeiro apelo, um grito de socorro que de tão gasto já não encontrou eco.
Lança um olhar vago aos caixotes: encerram os pedaços que restam da sua vida – relacionamentos falhados, amizades abortadas, frustrações esmagadoras, energia negativa (chamavam-lhe os amigos), muito, muito desamor…
 Abre os armários, gélidos como a sua alma, e arruma nas prateleiras vazias o vazio que está dentro dela. Já não lhe dói a solidão e o abandono, está finalmente preparada. 
Consummatum est.
Sentada na poltrona aveludada, com gestos calmos e firmes, leva aos lábios a poção libertadora; nem repara no Ben que, deitado aos pés da cama, espera que a luz se apague para poder adormecer serenamente, dormir um sono reparador que lhe faça esquecer a estranha agitação dos últimos dias.
 Começa a sentir-se envolvida por um doce manto de tranquilidade. Vai-se desvanecendo aquele fogo abrasador que ainda há pouco lhe queimava as entranhas. O drama chegou ao fim. Pouco a pouco vai-se descerrando a cortina… A incompreensão, o medo, a dor estão cada vez mais distantes, esfumam-se na palidez das paredes…
 Consummatum est . (Tudo está consumado.)
 Acolha-te o abraço carinhoso do bebé Miguel, o filho que fantasiaste e por quem derramaste abundantes lágrimas verdadeiras. Que finalmente possas dar e receber. Num jardim de beleza inefável; deitada na relva verdejante das margens dum rio de águas cristalinas ou no brilho fulgurante duma estrela longínqua, descansa em Paz, Sandra.



Conceição Cação ©2015,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. Uma história bem triste. Mas a vida é feita de tudo isto - histórias tristes e histórias felizes. Esta é a história que conta até onde pode chegar alguém cuja vida parece ter perdido todo o sentido. Histórias que circulam ao nosso lado - basta-nos querer percebê-las e estendermos-lhes uma mão. A Conceição relata-nos uma situação com um realismo tão profundo que nos parece quase estarmos perante ela. Parabéns pela coragem com que o fez.

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  2. Não se lê ests texto e vira a página, simplesmente. Sentimos o vazio da prateleira gelar o nosso interior e depois uma perplexidade perante esta fuga à procura de paz. Lindo Conceição.

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  3. Incomoda muito o conhecimento de que alguém fez a derradeira viagem de forma voluntária...
    E o que se sente perante alguém que está morto de pessoas e espera que a VIDA o atravesse?

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  4. Um tema normalmente tabu para a nossa sociedade. Tratado com elevada delicadeza que o assunto merece. A autora demonstrou com enorme nobreza, aquilo, que quanto a mim nos resta: respeitar a atitude dos que sendo DONOS de si mesmos decidem sobre si, e que a ninguém assiste o direito de julgar.

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