Conceição Cação
A
decisão estava tomada, nada nem ninguém poderia alterá-la. Acabava ali a luta sem
tréguas travada anos a fio. Estava exausta, mas sentia-se finalmente apaziguada,
liberta. Na mente iluminada por uma lucidez que há muito não experimentava o
plano começou a desenhar-se.
Os
caixotes guardados na arrecadação, após a mudança ainda tão recente para aquela
casa, foram descendo para a sala e ali ficaram perfilados como servos fiéis,
aguardando com expectativa o seu novo destino.
Lenta,
mas regularmente, como um autómato, foi depositando neles as roupas elegantes,
os livros, as louças, fotografias, recordações de viagens… Enfim, todos os
objetos que a tinham rodeado, mas que já não sentia como seus. Foi sem emoção
que
colocou num cantinho uma coleira da Golden
Retriever de pelo de seda e olhar doce, agora numa casa a que ainda não se
habituara, recordando com saudade os passeios com a dona, o Espera um pouco que a mamã já vem quando tinha de esperar à
entrada duma loja… Foi com a mesma
indiferença que depositou num pequeno
cofre os vários diplomas e com eles todo o sucesso académico e profissional, os
documentos, as recordações mais íntimas, os laços de ternura sempre tão fácil e bruscamente desatados…
Foi sem emoção que reviu a coleira |
O
dia acordou radioso, o sol da manhã inundou-lhe a casa. Que importava? – o
coração carregava o outono mais sombrio, toda a melancolia daquele novembro que
estava prestes a despedir-se … Iria
fazer o que tinha de ser feito. Mas não era ainda o momento: demasiada luz,
muito bulício… O ritual requeria recolhimento, confiar-se-ia às sombras da
noite.
o deus que destrói para renovar |
Um estrondo ecoou por todo o prédio. Sobressaltados,
os vizinhos interromperam o jantar. O que
seria? Um profundo silêncio devolveu-lhes a tranquilidade – (soube-se
depois) era Shiva, o deus que destrói para renovar, uma estátua enorme trazida
de Goa, que se despedaçava contra o chão
frio de mármore. Ligou a uma amiga. Tinha-se
ferido numa perna, precisava de alguém. Um derradeiro apelo, um grito de
socorro que de tão gasto já não encontrou eco.
Lança
um olhar vago aos caixotes: encerram os pedaços que restam da sua vida –
relacionamentos falhados, amizades abortadas, frustrações esmagadoras, energia
negativa (chamavam-lhe os amigos), muito, muito desamor…
Abre os armários, gélidos como a sua alma, e
arruma nas prateleiras vazias o vazio que está dentro dela. Já não lhe dói a
solidão e o abandono, está finalmente preparada.
Consummatum est. |
Sentada na poltrona aveludada,
com gestos calmos e firmes, leva aos lábios a poção libertadora; nem repara no
Ben que, deitado aos pés da cama, espera que a luz se apague para poder
adormecer serenamente, dormir um sono reparador que lhe faça esquecer a
estranha agitação dos últimos dias.
Começa a sentir-se envolvida por um doce manto
de tranquilidade. Vai-se desvanecendo aquele fogo abrasador que ainda há pouco
lhe queimava as entranhas. O drama chegou ao fim. Pouco a pouco vai-se
descerrando a cortina… A incompreensão, o medo, a dor estão cada vez mais distantes,
esfumam-se na palidez das paredes…
Consummatum
est . (Tudo está consumado.)
Acolha-te
o abraço carinhoso do bebé Miguel, o filho que fantasiaste e por quem derramaste
abundantes lágrimas verdadeiras. Que finalmente possas dar e receber. Num jardim de beleza inefável; deitada na relva verdejante
das margens dum rio de águas cristalinas ou no brilho fulgurante duma estrela longínqua,
descansa em Paz, Sandra.
Conceição Cação ©2015,Aveiro,Portugal
Uma história bem triste. Mas a vida é feita de tudo isto - histórias tristes e histórias felizes. Esta é a história que conta até onde pode chegar alguém cuja vida parece ter perdido todo o sentido. Histórias que circulam ao nosso lado - basta-nos querer percebê-las e estendermos-lhes uma mão. A Conceição relata-nos uma situação com um realismo tão profundo que nos parece quase estarmos perante ela. Parabéns pela coragem com que o fez.
ResponderEliminarNão se lê ests texto e vira a página, simplesmente. Sentimos o vazio da prateleira gelar o nosso interior e depois uma perplexidade perante esta fuga à procura de paz. Lindo Conceição.
ResponderEliminarIncomoda muito o conhecimento de que alguém fez a derradeira viagem de forma voluntária...
ResponderEliminarE o que se sente perante alguém que está morto de pessoas e espera que a VIDA o atravesse?
Um tema normalmente tabu para a nossa sociedade. Tratado com elevada delicadeza que o assunto merece. A autora demonstrou com enorme nobreza, aquilo, que quanto a mim nos resta: respeitar a atitude dos que sendo DONOS de si mesmos decidem sobre si, e que a ninguém assiste o direito de julgar.
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