quinta-feira, 24 de março de 2016

As delícias de um banco


José Luís Vaz

— Ufa… Bom dia!
— Bom dia. Está cansado? E eu a julgar que só me acontecia a mim…
Um banco localizado num ponto estratégico do parque, sombreado por farta copa de árvore que filtrava os raios solares mais intensos e dava guarida a tenro vento que granjeava às pessoas a frescura do descanso procurado. Albergue da solidão de alguns, local de encontros conversados ou mesmo advento de amizades não programadas, aquele banco era detentor de tantas conversas, de tantos segredos, de tantas intimidades, que ai se ele falasse?!…
Hoje era anfitrião de um sexagenário que, bastante gasto pela vida, pousava ali o seu corpo, após caminhada recomendada pelos médicos, não fosse a ociosidade pregar das suas a quem em tanto stress tinha vivido. Local tão cobiçado, proporcionou-lhe, passado pouco tempo, a companhia de um jovem de boa aparência atlética que do exercício tirava prazer, tentando aliviar de tensões inevitáveis aos tempos de hoje.
— Acontece a todos. Percorri, em passo de corrida, cerca de seis quilómetros tendo, ultimamente, feito isto poucas vezes. E sente-se logo a diferença. 
— Claro, a quem o diz. Basta falhar um dia e no dia a seguir já é o cabo dos trabalhos: os músculos ficam presos, as articulações perras, nada ajuda e tudo se torna mais difícil. Eu tento fazer isto com uma certa regularidade, mas nem sempre calha e olhe, já estou como diz o outro, “o óptimo é inimigo do bom” e vai-se andando com o tempo. E o meu amigo, o que é que faz?
— Ainda sou estudante, estou a ultimar o meu doutoramento. Por isso, nem sempre consigo conciliar as obrigações académicas com as desportivas, pelo que vou tentando dividir-me.
— Quer dizer, dentro de algum tempo, será Doutor. Oxalá que tudo lhe corra bem.
— Obrigado. Mas disso não tenho qualquer certeza. Sabe, uma das razões porque enveredei pela continuação dos meus estudos foi, exactamente, não ter arranjado emprego quando terminei a licenciatura. Ainda estudei a hipótese de emigrar mas os meus pais apoiaram-me, ou melhor continuaram a assumir as minhas despesas, e só temo não lhes dar a felicidade de me verem realizado. Então e o senhor, já está reformado?

segunda-feira, 21 de março de 2016

POESIA

Maria celeste Salgueiro


Atravessando a noite dos meus dias
Vens até mim sem eu te pressentir
Rasgando o nevoeiro à minha frente...
Vens na luz dum poente,
No aroma de uma flor
Escorrendo de um muro;
Numa sílaba que caminha
Para o coração dum poema;
No ar que tremula
A desfazer-se em luz;
Num grito de gaivota,
Num riso de criança,
No brilho das folhas
Molhadas pela chuva;
Na luz do sol a prumo,
No luar que eu piso no caminho;
No rumor dos pinheiros
Abraçados pelo vento;
No mistério das coisas
Onde o silêncio estremece...
Porém, como vieste doce e calma,
Sem eu te pressentir,
Assim também partiste,
Deixando na minh´alma
Janelas por abrir!...


Maria celeste Salgueiro ©2016,Aveiro,Portugal

sábado, 19 de março de 2016

Não sei que te diga, nem sei se te diga

Albertina Vaz 


Não sei que te diga, nem sei se te diga.
Não sei se sou capaz de falar das palavras, dos dias que corremos juntos, que passeámos de mão dada junto ao rio, que te ouvi e me ouvi, em que te confessei segredos, em que partilhámos sonhos, em que seguraste a minha mão e me levaste a transpor um degrau difícil, um obstáculo penoso.
aquela mão que me segurava
Não sei se sou capaz de recordar aquele sorriso dos teus olhos, aquela mão que me segurava, ou a tua voz grave que me prevenia dos caminhos tortuosos e serenava as minhas dúvidas quando o desconhecido me assustava ou o ignoto me atraía. 
Não sei se vou conseguir esquecer aquelas manhãs de sol, as gaivotas a circularem à nossa volta e os patos em fila a fugirem perseguidos pelo gato e tu e eu a rirmos até cairmos numa alegria feita esperança e sol nascente.
Não sei se ainda me lembro daqueles dias em que as nossas vozes se cruzavam e se digladiavam discordando e discutindo como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, ou mesmo naquele dia. Não sei se me recordo dos dias em que nos deitámos de costas voltadas e de testa enrugada como se nunca mais houvesse possibilidade de voltarmos a apertar as nossas mãos.
Não sei se vou esquecer aquele circo repleto de animais e palhaços e acrobatas a que assistíamos juntos saboreando a magia de que tanto gostávamos e o feitiço duma noite diferente em que a tua mão prendia a minha e eu vivia o sonho de estar contigo e estarmos juntos.
Não sei se ainda me lembro da primeira vez que me levaste a ver um filme com uma história de fantasia em que a quimera se transformava em devaneio e a utopia se instalava sem receio, como se a vida de cada um de nós se esgotasse ali, naquele segundo, naquele instante.

domingo, 13 de março de 2016

Mulher

Isabel Maria 

Ouvi teu grito
e chorei!
Com o teu lamento
estremeci
Mas cantei
quando tu cantaste               
Teu querer é infinito
e com o teu sorriso                   adormeci!...

Tuas mãos afáveis e meigas
São doces como o luar!
Macias como o veludo
E a fragância do mar!...

No silêncio da Natureza
abriu-se um botão em flor!
Também tu, mulher,
dás vida ao mundo
com tanta beleza e amor!...

Mulher
cheia de afecto e doçura
Teu querer é infinito!
Ultrapassa mares e montanhas
Em busca dum grito aflito!...

Isabel Maria ©2016,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 7 de março de 2016

De flor se escreve Mulher

Albertina Vaz 

Um dia vou sair por aí, bem de madrugada, a colher as flores que brotam da terra esventrada, onde um pingo de chuva fez nascer uma pétala florida. E vou ficar espantada ao desvendar a menina, feita margarida (flor da inocência), que surge do nada e cresce sem dar por isso. E vou perceber que, um dia, ela se veste de anis e acredita numa promessa que caiu do céu, em dia de bonança. Depois, na asa de um pensamento, vou colher um amor-perfeito e a menina será mulher. Aí, vou correr, a pé, pela estrada deserta e descobrir que cada mulher se traja de açucenas, numa angústia de fim de tarde, quando a calma tem cheiros a alfazema e a vida a obriga a colher flores de alecrim que lhe asseguram a coragem premente, num tempo em que o trabalho faz escravos sem direitos nem leis.

Mulher romance, numa amurada, olhando a onda que se desfaz num quase nada, numa campânula feita admiração dos que a vêem e não perdoam o ciúme dum ciclâmen ou o poder duma coroa imperial. E vou cantar a felicidade e passear por entre as flores do campo que quebram a brisa e adoçam a mulher que corre, corre, sem dar por nada ou sem o querer.

Depois, agarra um gladíolo, como um encontro desejado e ergue-se orgulhosa num girassol que se alteia diante da desgraça e se renega quando a rosa branca, menina inocência, vagueia por aí vestindo-se de simplicidade e denudando-se diante da sua irmã a rosa vermelha, senhora paixão.

E lá vai, feita dente de leão, flor da vida, com uma dália ao peito, flor da delicadeza, e um amor ardente dum cravo branco, bem dentro do seu coração. Mulher desejo, mulher beleza, mulher música, mulher certeza e multidão. É nas esquinas, nos becos, no escuro da noite, à beira da estrada que vende o seu corpo e chora aterrada, feita flor de laranjeira, em dia cinzento, que o nevoeiro esmagou na mão. E aquela mágoa vai com ela, pela estrada fora, vai a correr e de mansinho, vai devagar, passa o caminho.

E de mulher se renova em mãe e aceita ser jasmim, flor da bondade sem fim. Colhe um crisântemo branco, flor da verdade e cobre-se com uma dália rosa, cheia de delicadeza. E dias há em que a tristeza a invade e corre a esconder-se num jacinto que se admira num riacho, ou num junquilho que se entrelaça sobre si mesmo e fica para ali a balbuciar violetas e a querer lealdades.

E mulher é mudança e medo e melancolia e mentira e verdade e acaso e afeição. E mulher é amante e rosa vermelha, paixão que germina numa angústia, numa ansiedade, numa ausência dum caminho que se cruza e se trança numa multidão feita criança, num coração ou numa crença duma felicidade que o futuro apetece ou quer.

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