domingo, 22 de fevereiro de 2015

..." a casa só é nossa quando é maior que o mundo" - Mia Couto

Lindonor Silveirinha 


Arrumou o carro e, depois de o trancar, dirigiu-se a casa. Era um primeiro andar numa rua calma e, àquela hora, quando a noite se aproximava, não se via ninguém.
Abriu a porta, que estava devidamente trancada com duas voltas da chave e procurou o interruptor às escuras. Fez-se luz. Fechou novamente a porta, poisou a mala e só então sentiu que estava em casa.
Passara uns dias com uma familiar em Lisboa e, agora, estava de volta. A primeira sensação foi de solidão. Não havia ninguém para a receber. A cadelita, sua fiel companheira tinha morrido e a pouca família que restava, vivia longe. Sentiu um arrepio de frio e tratou de abrir as luzes o que a fez sentir-se mais confortável. Dirigiu-se à salinha de estar e ligou a televisão para ouvir vozes.
....a sua casa era maior que o mundo
Então sentou-se na sua cadeira habitual e passou um olhar ao redor da sala. Estava tudo como deixara: a mesa de camilha com as revistas habituais; o sofá com as almofadas de renda feitas pela mãe; as cómodas com as fotografias do pai, da mãe e do irmão falecido tão cedo, os quadros nas paredes…A televisão projectava um filme e a sua atenção ficou presa numa cena de amor. Também ela vivera cenas como aquela, mas agora estava só.
A sua parente insistira com ela para que ficasse mais tempo, mas ela sentia que não pertencia ali. Não era a sua casa, não era o seu quarto. Tudo o que a rodeava era-lhe estranho. Enfim, apesar da gentileza com que era tratada, dos passeios que fazia, tinha saudades do seu cantinho, onde era senhora e mandadora. Tinha que voltar. A sua casa era pequena e singela, mas era lá que vivia as suas alegrias e as suas tristezas.
Em nenhum outro lugar se sentia à sua vontade como ali. O mundo lá fora era imenso, mas, para ela, a sua casa era maior que o mundo.

Lindonor Silveirinha ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A CAMÉLIA

Maria Celeste Salgueiro 

Ela estava ali na minha frente envolta pelo sol da manhã. Apenas uma flor, uma camélia vermelha em cima duma mesa, aberta ao meu olhar. Lembrei a sua origem asiática, o seu forte significado de flor emblemática, inspiradora de emoções, afecto e devoção.
...voltei à minha infância e adolescência
Mas não foram esses atributos que me cativaram. À volta dela tracei um círculo invisível fora do tempo e do espaço onde ela ficou presa. Ela transmitia-me paz, alegria, deslumbramento, estabelecendo uma aliança entre o passado e o presente.
Olhando-a eu voltei à minha infância e adolescência. Revi nela a cameleira centenária plantada no meu jardim pelo meu Avô e que em todas as primaveras, transbordando de cor e de beleza se transformava na rainha do jardim. As suas camélias enfeitavam a nossa casa e a nossa mesa no dia dos anos do meu Pai e à sua sombra eu brinquei e até troquei o meu primeiro beijo de amor.

Por isso, ao ver aquela camélia envolta pelo sol da manhã, com todo o seu peso simbólico que me trouxe à memória a cameleira centenária plantada pelo meu Avô, eu senti uma paz, uma alegria, um deslumbramento que me deixaram presa num círculo mágico fora do tempo e do espaço, onde o passado ficou suspenso!



Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sábado, 14 de fevereiro de 2015

INTERROGAÇÃO

Clavel
Com que flores adornarei o teu corpo
Com que palavras farei poesia para que sintas que o sol é quente
Com que fogos o olhar acenderei para te amar,- que nunca é tarde ?
Com que cores pintarei o caminho duma estrela cadente
Com que risca o céu em ímpetos de fogo, e caindo arde?

Com que flores adornarei teu corpo macio e ardente
Com que me alimentas a paixão e induzes a saudade ?
Com que água meus lábios dessedentarei na nascente
Com que cantarei a melodia da canção liberdade?

Com que pedras construirei segurança do castelo
Em que  impedirei a entrada da injustiça e da maldade?
Com que armas e ferros conquistarei o tosado velo
Com que me hei-de vestir de  tamanha felicidade?

Procuro a paz em que deporei o desejo profundo
No altar do sacrifício em que se purifique o mundo.

Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Eu, os livros e a burra

Ester Rocha Martins 


Já a chuva refrescou o monte,
Verdeja a terra transmontana,
O largo é uma imensidão de lama.
E a carga lá se vai.
Aqui apronta-se a burra,
A fiel acompanhante,
Carrega a mala de emigrante,
E alguns livros à mistura.
Seis ou sete Km de caminhada,          
O mesmo ritual,
Sempre igual.
Na lama, uma pata, outra pata,
E uma pata que não sai!...
Sopica e cai…
E a carga lá se vai.
Transborda o largo de ciência,
E eu de euforia.
Revejo a casa branca com carinho,
Guardo da minha mãe o sorriso,
E do cão o último latido.
O meu pai recolhe por inteiro
a estranha sementeira
Vamos, o comboio chega à tabela.
Olho ainda a última janela…
Assim parti.
Dos montes para Coimbra,
Numa manhã muito fria,
Com a amarga companhia
Dos livros … e da lama

Ester Rocha Martins ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Reencontro

Albertina Vaz 

   Encontrei-o há dias, escondido. Por detrás de outros bem mais corpulentos. Cheguei a pensar que o tinha perdido. Quem sabe se não o teria emprestado a alguém que por ele se apaixonara, como acontecera comigo. Quem sabe se não estaria misturado com os das crianças que tanto gostam dele. Dei por mim a afagá-lo muito de mansinho. E, sem quase querer, recordei a primeira vez que o vi: tinha mais ou menos cinco anos e fascinaram-me as cores, as formas. Não sabia muito bem o que lá estava dentro mas gostava que me falassem dele. Todas as noites adormecia a pensar por onde andaria ele e se já teria encontrado algum amigo. Invariavelmente, apanhava uma ou outra flor que guardava para, um dia, lhe dar. E, quando podia, fazia desenhos para, quando o encontrasse, alegrar o seu sorriso triste.
Procurei-o por toda a parte mas não queria encontrá-lo.
  Acho que me acompanhou por muito tempo. Até que um dia alguém me disse que aquilo era só para crianças, miúdos pequenos, que descobrem o fantástico numa esquina ou tropeçam num imaginário de fadas e duendes. Nessa época eu já não queria ser criança e guardei-o no fundo duma gaveta.
  Às vezes encontrava-o nas mãos de outras pessoas e escapava-me um sorriso – eu bem queria retomar aquela amizade mas os meus sonhos de adolescente queimavam-me os dedos e arriscavam-me a um corte definitivo naquela relação.
   Algum tempo depois, voltei a ter necessidade dele. Lembrei-me, vagamente, de que o ouvira falar de felicidade e de “preparar o coração” numa espera sem hora marcada, saboreando o momento antes, o durante e o depois. E pensei que, se calhar, aquilo não seria só de criança, se calhar havia ali uma sabedoria de gente grande num corpo franzino. E de repente deu-me uma vontade louca de voltar a vê-lo, e abraçá-lo, e devorá-lo com raivas e sonhos que via desfeitos e voltava a reconstruir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Mar Nosso

Fernanda Reigota 

O vosso dissipar da bruma cerrada

MAR!
Vieste silencioso insinuares-te a nossos pés.
Estremecemos, mas acorremos a outras marés.
Deste luta e, com trevas no coração,
Agarrámos as pepitas de água e luz.
Era a nossa criação:
Vislumbrámos-te as entranhas.

E teus areais suspensos e tuas terras odorosas e gentes estranhas.
Com as mãos crispadas muitos enfrentaram os temporais,
Com a vida outros pagaram nosso arrojo.
E nas praias sorviam o horizonte as mulheres incorporais!

ESTRELAS!
O vosso murmurar dos pontos cardeais
O vosso desvendar do mistério 
O vosso dissipar da bruma cerrada
Transpareceram
As ligações universais
As claras horas do planisfério
A necessária exaltação da TERRA REVELADA!

Fernanda Reigota ©2015,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ONDE É QUE ESTAVA A POESIA

Maria Celeste Salgueiro

Era o dia nacional da POESIA. Acordei feliz, disposta a tirar o melhor partido da data e tentar encontrar a POESIA nas mais pequenas coisas.
O dia estava lindo, o sol brilhava radioso num céu sem nuvens e tudo parecia perfeito. Deixei os meus problemas fechados numa gaveta, e, de cabeça liberta, lancei-me para a rua, caneta e lápis na mão para poder anotar tudo o que me chamasse a atenção.
Comecei a procurar. A cidade estava um caos, as ruas em confusão, só buracos, pedras soltas, só poeira à minha frente. Onde é que estava a POESIA? Devia estar escondida ou mesmo até soterrada com tanta obra pendente. Fui ao jardim onde o verde transbordava em profusão. Porém só desolação havia naquele espaço com as flores a definhar e o lago escuro e baço. Onde é que estava a POESIA que não a podia achar?
Meti-me no turbilhão de ruas a abarrotar de gente muito apressada e carros sempre a
...nos olhos de uma criança
encontrei-a nesse dia!
apitar. Então vi uma criança de boné e de sacola que regressava da escola muito contente a cantar. Pegou-me logo na mão e seguimos devagar, lado a lado a conversar.
Vês estas folhas no chão? Fazem música ao calcar. Olha o sol a rebrilhar no lago do meu castelo e os cavaleiros em volta. Já viste um quadro mais belo? Olhei para o chão pasmada. O lago era água parada, baça, escura, sem ter nada. O castelo era uma pedra e os cavaleiros formigas! Reparei no seu olhar: era azul , todo candura. Vi dentro o céu e o mar e o sol nele a sorrir.

E eu que perdera a esperança de descobrir a POESIA, nos olhos duma criança encontrei-a nesse dia!

Maria Celeste Salgueiro ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Atravessando os séculos!

José Luís Vaz


Sempre elegantes, desde as altas às mais baixotas, coabitam com facilidade em espaços variados. Quando sós, deslumbram os seus admiradores pela conformação sui generis que proporciona a cada um especular sobre as suas formas.

Já lá vai o tempo em que a natureza determinava o seu livre desenvolvimento proporcionando, quantas vezes, uma arquitectura exótica e diferenciada. Hoje, é abruptamente “fabricada”, de acordo, única e simplesmente, com critérios economicistas que tudo determinam violentando as formas livres da mãe natureza.

Existe uma grande variedade distinguindo-se, entre si, pelo desenho, pela idade, pelo
Fonte inesgotável de vida
porte, pela raridade ou mesmo pelo seu interesse histórico. Podem atingir cerca de vinte metros de altura, o que justifica forte capacidade na procura dos nutrientes necessários. Neste ciclo de luta pela subsistência e desenvolvimento acaba por, com a sua acção, tantas vezes, evitar que fortes enxurradas arrastem catastroficamente os solos, destruindo uma estrutura em que existem os elementos necessários à vida.

Necessitando muito tempo para crescer, pode viver centenas de anos. Há mesmo exemplares referenciados com cerca de dois mil anos, sendo considerada a mais antiga do mundo, uma que existe perto de Tavira.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Manuel Sortudo - uma história quase verídica...

Graciete Manangão


O Manel era um jovem e dinâmico agricultor. Lavrava e cultivava quase todas as terras disponíveis, na sua aldeia, quer fossem suas ou não. Tinha investido em modernas máquinas agrícolas. Era muito requisitado para fazer todo o tipo de trabalhos de lavoura por quem o não podia fazer. Além disso, tinha uma ordenha mecânica que lhe dava um
um "empresário agrícola"
rendimento mensal razoável. Constava-se até que recebia subsídios do Estado para manter toda a sua actividade agrícola. Era o que se poderia dizer um “empresário agrícola”.
Estava casado, desde os 22 anos, com Bina, uma bonita e vivaça feirante. Sempre bem disposta e incansável, “fazia” mensalmente, durante todo o ano, fizesse chuva, sol ou vento, as feiras dos 7, dos 10, dos 12, dos 13, dos 21, dos 28, dos 29 e dos 30. Levantava-se de madrugada, em dias de feira, para preparar a carrinha fechada com todo o arsenal da tenda, incluindo os sacos de plástico enormes, carregados de mercadorias diversas.
Com toda esta azáfama diária, e porque ainda estavam no princípio da luta pela vida, Bina e o Manel resolveram adiar a chegada de um filho.
Sobrava muito pouco tempo para distrações ou passeios. Bina, aos domingos à tarde, desde que não fosse dia de feira, gostava de ir ver o mar, fazer algumas compras para casa e lanchar na pastelaria da dona Mariazinha.
O Manel, sempre que podia, ia ao “Café do Zé” beber uma cerveja ou um café e bagaço, com os seus amigos ou vizinhos. Às vezes, também jogava às cartas.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

IN MEMORIAM

José Carreto Lages


E se queres saber se doeu
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.
Não te deram  tempo nem ocasião
para a despedida que tu merecias.
A eternidade, talvez, para cumprir profecias
te levou. Mas tão formal, sem uma razão?                     
Sem  dos teus amigos um adeus
que os conformasse de arrelias
e evitasse fazer aos céus
justificada reclamação?
Se me perguntarem se a eternidade
foi justa contigo. Eu direi que não.
Que é da liberdade
de cada um viver e ter o que é seu?
Se partiste por tua vontade
E se queres saber se doeu,
eu dir-te-ei: Manuel, doeu.


José Carreto Lages ©2015,Aveiro,Portugal

O Moinho

Esmeralda Dinis Assunção 


Fim de tarde. Uma pausa para uns minutos de leitura. Na capa da revista que tenho nas mãos há um moinho, em primeiro plano. Logo me veio à memória um outro moinho que conheci na infância, beirão de gema, bem perto da casa da avó Rita.
No alto do pequeno monte, sozinho, o moinho era um rei. À sua volta havia verde até perder de vista. De braços sempre abertos ao vento, corpo robusto, dominava todo o espaço que o cercava e, como um verdadeiro senhor, parecia ser ao mesmo tempo o protector daquelas terras. O caminho para chegar até ele não era fácil porque era íngreme e tinha muitas pedras.
O moinho ainda lá está no cimo do morro
O moleiro montado no seu burrico, o Moisés, lá ia sempre morro acima, levar-lhe o grão, em jeito de homenagem. Quando descia, já com os sacos cheios de farinha, vinha a assobiar de contente. É que aquele rei não tinha coroa mas tinha dentro de si o poder enorme de lhe dar o sustento, o ganha-pão. Aquele moinho representava para o moleiro a própria sobrevivência.
O moinho ainda lá está no cimo do morro. Dos braços abertos restam os paus que seguravam as velas. A porta e a janela são apenas uns buracos. Do corpo robusto do rei antigo restam as pedras resistentes. Agora já não tem poder, nem sequer é o sustento de alguém mas ele lá está como símbolo duma tradição perdida.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Por cá e por além-mar em Africa

                                                                                                             Maria Cacilda Marado

Já não é muito nova, quarenta e um anos ninguém lhos tira, mas mantém-se de pé e com firmeza sempre que a requisitam para cumprir a sua missão. Tenho visto companheiras suas mais jovens desengonçarem-se todas ao mais pequeno desajeitar das mãos de quem as usa. Realmente, o utensílio de que vos estou a falar tem uma história notável. Com apenas seis anos de idade, transpôs o oceano Atlântico com garbo e valentia.
Uma vez deu-me cabo de um pé...
Arrumadinha num contentor, nunca deu sinal de si até que, quase um mês depois, a pus novamente ao serviço da família. Sim, ela esteve em terras de África, onde, durante dois anos e meio, desempenhou bem a missão para que foi criada. E permitiu muitas descargas de adrenalina enquanto se deixava usar para o fim a que se destina. Foi utilizada por mim e por outros sempre que era necessário mimar quem se queria alindar. Uma vez, deu-me cabo de um pé quando fui desajeitada ao pô-la sobre as suas duas firmes sustentações. No entanto, eu tenho por ela uma estima tão grande que, dois anos e meio depois de ela ter ido para Angola comigo, quando regressei, não quis deixá-la numa terra de desassossego, no pós-25 de Abril, época bem conturbada pelos movimentos de independência.

E lá a trouxe de novo, no fundo de um outro contentor que mais tarde se transformou numa bela estante. Mas, voltando ao meu utensílio de estimação, hoje, tanto tempo já passado, ainda me alivia as tensões quando corro em cima dela com o meu bólide de corridas, quando aprimoro os tecidos, quando liberto as tensões, quando faço conjecturas e elaboro projectos. Para a guardar, escolho sempre um cantinho para não me perturbar as correrias de última hora. Mas não sou só eu que lhe quero bem; a minha filha tem por ela uma estima especial, pois liberta-a de algumas tarefas que teria de fazer na casa dela.

Maria Cacilda Marado ©2015,Aveiro,Portugal

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O sótão da avó

Lindonor Silveirinha

Todos os anos faço uma arrumação a este sótão, mas está sempre cheio de tudo e mais alguma coisa. É como a minha cabeça e as lembranças do passado. Algumas procuro deitar fora, porque me incomodam, mas também há outras que gosto de recordar.
"Espelho meu, espelho meu, que é feito da outra
que você já conheceu?"
Quando viemos para esta casa achei fantástico ter um espaço amplo para guardar o que não estava a uso, mas agora estou cansada e não me apetece remexer no passado. Contudo, neste preciso momento, tenho que ir ver se encontro alguns brinquedos para dar a uma obra que ajuda crianças. Tenho alguns carrinhos do meu filho e bonecas e mobílias das minhas filhas. Talvez alguma coisa ainda esteja boa para dar.
Vamos lá! Coragem!
Olha, aqui está uma mobília de quarto das bonecas: a cama, o toilette e uma cadeira. Ainda estão em bom estado. Como me lembro bem das brincadeiras das minhas filhas! A P. gostava de olhar para o espelho e perguntar: “ Espelho meu, espelho meu, achas que há alguém mais bonita do que eu?”
Mas que horror! O que eu vejo agora neste espelhinho é uma velha, enrugada e triste e apetece-me perguntar: “ Espelho meu, espelho meu, que é feito da outra que você já conheceu?
Então ouço atrás de mim a voz da minha neta: “Avó! Que engraçado rever tudo isto! A avó podia escrever uma história chamada: O meu sótão…”

Lindonor Silveirinha ©2015,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Sentia-se ferida de luz por dentro.

Fernanda Reigota


A hora de abandonar o local de trabalho provocava sempre em Alexandra um estado de lassidão. A sua mente aproveitava-o para processar e armazenar tudo o que era importante. Sabia que rapidamente mergulharia noutro estado de vigília em que era necessário coordenar os horários e os apoios logísticos que as atividades pessoais dos filhos exigiam.
...um precioso minuto de encontro
consigo própria
Na alternância do estado de tensão e atenção ao trabalho para o estado de vigília que as atividades dos filhos requeriam ao de fim do dia, Alexandra guardava para si um precioso minuto de encontro consigo própria. Conseguiria uns minutos para prosseguir a leitura que a estava a entusiasmar? Precisava de falar com o filho mais velho para compreender a súbita mudança de atitude em relação aos estudos. Há muitos dias que não tinham uns momentos em que o único objetivo fosse estar em família e viver. Viver como quem se deixa aquecer por um raio de sol de outono. Viver como quem se extasia com o abraço que o Céu e a Terra dão no início da primavera e depois se encanta com a pujante criação que vai surgindo cheia de cores e de cheiros. Viver como quem se deixa refrescar por uma chuva miudinha de verão. Viver como quem saboreia o som do crepitar do lume no inverno.
Neste minuto de encontro consigo própria, e enquanto os filhos encestavam umas bolas antes de abalarem todos, Alexandra ia adiantando pequenas tarefas rotineiras. Quando chegasse definitivamente a casa outras tarefas ocupariam a família.
Sem explicação explícita, Alexandra  entalou um dedo. Os gritos  espontâneos  que deu 
Não sei para que aprendemos
estas coisas na escola.
atraíram os filhos. Apesar das dores intensas, conseguiu fixar a perplexidade, a ansiedade e a surpresa com que os filhos a fixavam. O mais novo, o João, tomou o comando das operações e mandou o irmão, o Pedro, ligar para o 112. Mãe, ligo? Não é preciso, meus queridos. Liga! Não, não é preciso! Não sei para que aprendemos estas coisas na escola.
Passados os grandes minutos de dores mais intensas, Alexandra falou com os filhos. Era natural que o João quisesse aplicar o que tinha aprendido há tão poucos dias, mas precisava de saber avaliar as situações e ele ainda era muito novo. O Pedro intuiu que a mãe estava plenamente capaz de decidir. Explicou aos dois, mas principalmente ao João, que a dor tinha sido muito forte, mas tinha estado sempre consciente, não tinha sangrado, respirava bem… Assim, não era necessário chamar o 112.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Prece ao Novo Ano


Maria Celeste Seabra




Mais um ano que acaba de ruir
Qual folha que o Outono derrubou;
Mais um ano que acaba de partir,
Mágoa que foi, Saudade que ficou!

Mais um ano que vem, prece a sorrir,
Pela estrada que o outro já pisou;
Mistério a despontar, a ressurgir,
Entre as sombras do ano que passou!

Ano que vens nas brumas da incerteza,
Benvindo sejas tu pela grandeza
Dum sonho que tão alto me conduz!

Veja ou não satisfeito o meu desejo,
Benvindo pela esp´rança que em ti vejo,
Esp´rança a abrir em pétalas de luz!...


Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

sábado, 27 de dezembro de 2014

Quando chegará o tempo de ouvir as crianças?!

José Luís Vaz

O verão de S. Martinho já lá vai e os dias vão diminuindo, dia após dia, criando espaço às frias e longas noites de inverno. Quase de seguida, o Dia Internacional da Generosidade, fazendo pairar no ar um tempo que faz adivinhar a proximidade de época natalícia. 

Uns começam a idealizar, outros a programar, outros fazendo cálculos e mais cálculos
Um tempo de exuberância para uns....
para melhor gerirem os seus pecúlios e, como sempre, tantos a vê-los passar… Um tempo de exuberância para uns, de desamparo para outros, mas, fundamentalmente, de uma verdadeira euforia à volta do consumo. O mundo inteiro entrega-se às tradições natalícias e sob esse auspício, em cada latitude, vive-se um tempo repleto de slogans, sempre recheados de paz, muita paz, fraternidade, caridade para uns, solidariedade para outros, Menino Jesus, Pai Natal, amizade, amor… Um verdadeiro romantismo vivido todos os anos com um, demasiado curto, prazo de validade. 

Mas... É agora tempo de Natal!
Os anos, uns a seguir aos outros, todos, ou quase todos, com trezentos e sessenta e cinco dias, são vividos, em função de rotinas obrigatórias, repressoras de excessos ou então na abundância a que o dinheiro permite chegar. Neste mundo globalizado, as desigualdades, que já o eram, são agora mais transparentes tornando mais difícil o alheamento e o desprezo pelo que se passa debaixo do mesmo céu azul, mais claro para uns e muito escuro ou mesmo praticamente negro para outros.


Mas… É agora tempo de Natal! O frenesim espalha-se, como as sementes que o lavrador lança para o solo, espevitando as vontades a um tempo de generosidade e harmonia, que até parece criar dias diferentes, como se os paradigmas da sociedade, num estalar de dedos, se tivessem alterado. Os sem abrigo, habituados aos Natais à volta da habitual fogueira gelada, agradecem agora o velho cobertor que a generosidade natalícia acaba por lhes proporcionar. Pedintes sentem nesta altura melhores compensações pelo apelo repetitivo que vão fazendo a quem passa. Desempregados, precários e escravos do ordenado mínimo, sobejamente habituados ao rigor do pouco, aventuram-se em pequenos, grandes arrojos, que mais tarde lhes sabe a amargo. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sonho

Maria Helena Linhares

Éramos um grupo de crianças, saltitante e garrido. Pertencíamos ao antigo ensino primário – da 1ª à 4ª classe.
Rapazes e raparigas, as meninas mais vistosas, mais enfeitadas, algumas com laçarotes na cabeça.
Eles, mais estouvados, empurrando-se uns aos outros, cavaqueando, ou atrás da bola que iam chutando pelo caminho...
Eram tempos felizes... mas para mim não o eram tanto. Dentro de mim havia como que um vazio, um desconforto, por um desejo tão contrariado que me provocava uma tristeza profunda, um desalento imenso!
Íamos andando rumo à escola e ia mirando disfarçadamente algumas colegas, pensando com os meus botões que elas é que tinham razões para serem felizes e rirem às gargalhadas por tudo e por nada.
Ah, se eu fosse uma delas como seria
plenamente feliz!
Mas eu era orgulhosa e não revelava a nenhuma amiga o meu sentir, a razão da minha tristeza.
Ah, se eu fosse uma delas como seria plenamente feliz!
Iria rir tanto, tanto, de boca escancarada, e adeus tristezas: — correria contra o vento, ainda mais
do que ele, andaria às voltas, de mãos ora na cabeça, ora postas nas saias para que elas não esvoaçassem... ai como eu iria ser tão feliz! Mas não, a minha mãe explicava, desdobrava-se em fazer-me compreender o incompreensível, mas qual quê? Quanto mais o fazia, menos eu compreendia. Porque não podia ser como a Celina, a minha vizinha? Seria fácil, tão fácil, eu prometia portar-me muito bem, estudar mais, mais isto mais aquilo...
Não! Não sejas teimosa e cala-te! O assunto morreu aqui! Não há mais conversa!

sábado, 13 de dezembro de 2014

O meu brinquedo

Maria Jorge

Era uma noite de outono e o frio já começava a ameaçar que tinha vindo para ficar. Era urgente ir chamar a ti Quitéria, porque a Emília já tinha começado com as dores de parto. Para ela já não era novidade: a terceira criança queria nascer e não havia tempo a perder. Começaram os preparativos. Uma panela de água ao lume no borralho, as toalhas em cima da cama e as primeiras roupinhas para o bebé. Seria menina ou menino?
Ao fim de algum tempo e com mais ou menos dificuldade nasceu uma menina, um pouco franzina mas de pulmões bem afinados. Como tinha sido previamente combinado, chamar-se-ia Maria em homenagem a uma tia entretanto falecida.
O meu brinquedo
Maria foi crescendo e como qualquer criança gostava de brincar. Mas à medida que os anos vão passando, um brinquedo faz parte integrante da sua vida, nascendo, crescendo e vivendo com ela. Apesar de não poderem estar um sem o outro, gostam muito de pregar partidas e sustos entre si e a vida tem sido um desafio constante, uma luta minuto a minuto.
Por vezes o brinquedo, já cansado, quer desaparecer da vida de Maria, mas ela agarra-o com toda a força, pede ajuda a quem sabe e pode porque a hora da despedida ainda não chegou. Quando se quer muito a um brinquedo só a presença dele é deveras importante e imprescindível. Sabermos que está ali, junto a nós conforta e faz-nos viver. Não é necessário mais nada. 
Porque no dia em que o meu coração deixar de bater, já nada mais me resta.

Nascemos e morremos sós. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado.

Maria Jorge ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 7 de dezembro de 2014

De são e de louco...

Albertina Vaz

Acho que foi na última 5.ª feira. Ia eu, já atrasada, a tentar correr até ao carro, quando me deparo com um homem, meio grisalho, alto, de pasta na mão, fato e gravata a condizer, passos cadenciados e vagarosos, de olhar esgazeado e colérico, gesticulando raivosamente, como se estivesse a falar com alguém que, ali, muito perto, talvez até junto dele, o escutasse.
Olhei para um e outro lado e não vi ninguém. Até olhei para trás, talvez a pensar que teria feito alguma coisa que lhe desagradasse. Mas não. Tudo estava dentro da normalidade. Aquela normalidade a que convencionámos chamar paz.
Esmurrava o inimigo...
E ele continuava, gesticulando, dando pontapés na parede, resmungando palavras ininteligíveis, em passadas largas, cada vez mais possuídas pela raiva que o avassalava, e vociferando, colérico, contra alguém, invisível, que teria provocado algo ou alguma coisa que, quem por ali estava, não entendia. Esmurrava o inimigo que só ele podia ver e ria desmedidamente quando um soco o atirava ao chão.
Ainda tentei entabular conversa mas fui imediatamente dissuadida por uma moradora que, sorrindo, me alertou:
- Não ligue, não está bom da cabeça, passa horas a falar sozinho. Ninguém o entende nem percebe o que ele quer. Dá-lhe para isto, agora.
O meu tempo estava a ficar sem tempo. Eu tinha alguém à minha espera, com quem me comprometera e tive de me desligar daquela representação que decorria ao meu lado. Mas a imagem dolorosa de alguém, que deixei para trás, foi-me acompanhando durante toda a viagem. E dei por mim a perguntar-me:
- O que terá acontecido àquele homem para o colocar naquele estado? O aspecto cuidado, a pasta na mão, as folhas que retirava de dentro da pasta, rasgando-as com violência, eram sinónimos de quê? Os pontapés que atirava descontroladamente contra as paredes, contra as floreiras do parque e até mesmo contra os carros estacionados, demonstravam um mau estar potenciado por quê? O descontrolo em que se encontrava poderiam gerar maior violência ou ela seria apenas uma forma de extravasar uma raiva incontida?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Um grito

Maria Helena Linhares

Não era cedo nem tarde... antevia-se que o sol ainda iria demorar a desaparecer na linha alaranjada e cintilante do horizonte.
Fazia ainda bastante calor, antevendo um novo dia estival, reforçando o sentimento de calmaria, motivado pelo cansaço das correrias e brincadeiras na praia.
- Aí o  meu menino!
De repente um grito, seguido de exclamações aflitivas.
 – Ai o meu menino! Ai que se afoga! – clamava a jovem mulher, tentando em vão agarrar o corpinho minúsculo da criança que se ia afastando das mãos estendidas da mãe, entre os baldões de água e areia.
Mas já outras mãos acorriam e pressurosas entravam na água e corajosa e firmemente agarravam o menino que gritava e estrebuchava buscando a progenitora...
Esta, ajoelhada no meio da água, soluçava agora já agarrada ao filho recuperado.

E o sol continuava a brilhar, e a tarde retomou a calma. Mas no ar perdurou o som daquele grito. O grito que causou espanto. O grito que salvou.

Maria Helena Linhares ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 30 de novembro de 2014

Fazes-me falta, quando não apareces.

Maria José 


Vives num local onde não te faltam vizinhos.
Não sei qual a tua relação com eles, mas deves sentir-te o rei!
És único, o mais brilhante!
Por vezes, teimas em ficar escondido. Envergonhado? Zangado?
E, de repente, lá apareces, espreitando, como que cuscando, por trás dos montes, montanhas, por entre as frestas das janelas, por entre a folhagem das árvores...
Adoras esconder-te e, quando dou conta, já mudaste de cor.
Queria que ficasses ali, para sempre.
Ficas maravilhoso, com esses tons quentes. Será do cansaço duma jornada de trabalho?
Quando te avisto, de manhãzinha, tens um ar pálido. À tardinha, ficas diferente.
O teu semblante é de cortar a respiração!
Quando te vejo assim, fico com a alma iluminada. Queria que ficasses ali, para sempre. Mas não, num instante, desapareces...
Resta a certeza de que amanhã vais voltar. Ou será que um dia vais morrer?
Para mim, vais ser eterno!
Quando não te vejo, fico triste, deprimida, sem vontade de fazer nada.
Sempre que mostras um brilhozinho no olhar, tudo muda.
Então, quando apareces com um semblante mais luminoso, é como se fosses a minha musa inspiradora.
Surgem ideias novas...

Pois é, amigo Sol, se não aparecesses, a minha vida seria bem mais triste!


Maria José ©2014,Aveiro,Portugal
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