Fernanda Reigota
A
hora de abandonar o local de trabalho provocava sempre em Alexandra um estado
de lassidão. A sua mente aproveitava-o para processar e armazenar tudo o que
era importante. Sabia que rapidamente mergulharia noutro estado de vigília em
que era necessário coordenar os horários e os apoios logísticos que as
atividades pessoais dos filhos exigiam.
...um precioso minuto de encontro consigo própria |
Na
alternância do estado de tensão e atenção ao trabalho para o estado de vigília
que as atividades dos filhos requeriam ao de fim do dia, Alexandra guardava
para si um precioso minuto de encontro consigo própria. Conseguiria uns minutos
para prosseguir a leitura que a estava a entusiasmar? Precisava de falar com o
filho mais velho para compreender a súbita mudança de atitude em relação aos
estudos. Há muitos dias que não tinham uns momentos em que o único objetivo
fosse estar em família e viver. Viver como quem se deixa aquecer por um raio de
sol de outono. Viver como quem se extasia com o abraço que o Céu e a Terra dão
no início da primavera e depois se encanta com a pujante criação que vai
surgindo cheia de cores e de cheiros. Viver como quem se deixa refrescar por
uma chuva miudinha de verão. Viver como quem saboreia o som do crepitar do lume
no inverno.
Neste
minuto de encontro consigo própria, e enquanto os filhos encestavam umas bolas
antes de abalarem todos, Alexandra ia adiantando pequenas tarefas rotineiras.
Quando chegasse definitivamente a casa outras tarefas ocupariam a família.
Sem
explicação explícita, Alexandra entalou um dedo. Os gritos espontâneos que deu
atraíram os filhos. Apesar das dores intensas, conseguiu fixar a perplexidade,
a ansiedade e a surpresa com que os filhos a fixavam. O mais novo, o João,
tomou o comando das operações e mandou o irmão, o Pedro, ligar para o 112. Mãe,
ligo? Não é preciso, meus queridos. Liga! Não, não é preciso! Não sei para que
aprendemos estas coisas na escola.
Não sei para que aprendemos estas coisas na escola. |
Passados
os grandes minutos de dores mais intensas, Alexandra falou com os filhos. Era
natural que o João quisesse aplicar o que tinha aprendido há tão poucos dias,
mas precisava de saber avaliar as situações e ele ainda era muito novo. O Pedro
intuiu que a mãe estava plenamente capaz de decidir. Explicou aos dois, mas
principalmente ao João, que a dor tinha sido muito forte, mas tinha estado
sempre consciente, não tinha sangrado, respirava bem… Assim, não era necessário
chamar o 112.
–
No entanto, numa situação em que tenhas dúvidas e estiveres sozinho com a
vítima, não hesites e chama mesmo o 112. O que aprendeste na escola é muito
válido, podes ter a certeza!
Estás
melhor? Já dói menos? Consegues conduzir?
Os seus meninos! |
A
preocupação dos filhos ainda continuava presente e ela tentava aligeirar o que
acontecera, pois na verdade as dores tinham sido muitas, mas nada de verdadeiramente
grave acontecera. Eles, mal iniciassem o treino, desanuviariam.
Os
seus meninos! Duas crianças, dois homenzinhos.
Deixou-se
ficar por ali a vê-los treinar e a descontrair a memória que se foi dilatando,
dilatando até se fixar numa praia onde dois meninos brincavam, sentindo o
prazer da areia molhada que recolhe as pegadas para as ondas se entreterem a
apagá-las.
Sempre
de sorrisos cúmplices, sempre de olhares sonhadores, ninguém precisava de
esclarecer que aqueles meninos eram irmãos. O mais velho, com um sorriso meigo,
mal saía da água, que o mais novo achava sempre fria, ia logo falar ao irmão. O
mais novo, com um sorriso malandro, agarrava-se ao irmão e, muitas vezes,
fazia-lhe uma marotice.
Não
eram propriamente dóceis quando havia uma obrigação para cumprir: o protetor
solar era como um pequeno tornado de areia que lhes fustigasse a pele e, por
isso, sempre mal recebido… E em casa? A televisão não era logo desligada, os
chinelos davam-se muito mal com os pés, mas responsabilizavam-se por algumas
tarefas domésticas.
Estava a perder os seus meninos:eles estavam a crescer. |
E
fora essa responsabilidade e capacidade de ter iniciativas em casos inesperados
que confirmara a Alexandra que os seus meninos estavam a crescer bem em todos
os sentidos. Estava a perder os seus meninos: eles estavam a crescer. Estava a
ganhar dois homens capazes de pensarem de forma autónoma. Naquele dia eles
presentearam-na com notas muito boas: um satisfaz plenamente na disciplina da
Vida.
Um
dia, quando começassem a alargar os voos, quando ela não os pudesse abraçar
todos os dias, lembrar-se-ia daqueles olhares de perplexidade e ansiedade que,
em momentos de surpresas mais perturbadoras, saberiam discernir e optar.
Sentia-se
ferida de luz por dentro.
Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal
Os pequenitos crescem tão depressa que estes momentos, num instante, se transformam em passado e ganham uma dimensão desmedida num presente em que a memória pretende eternizar. É verdade, Fernanda, o tempo corre veloz e sem complacência. A nós só nos basta vê-los crescer, ajudá-los a voar e endireitar-lhe as asas, quando eles nos deixam.
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