Albertina
Vaz
Acho
que foi na última 5.ª feira. Ia eu, já atrasada, a tentar correr até ao carro,
quando me deparo com um homem, meio grisalho, alto, de pasta na mão, fato e
gravata a condizer, passos cadenciados e vagarosos, de olhar esgazeado e colérico,
gesticulando raivosamente, como se estivesse a falar com alguém que, ali, muito
perto, talvez até junto dele, o escutasse.
Olhei
para um e outro lado e não vi ninguém. Até olhei para trás, talvez a pensar que
teria feito alguma coisa que lhe desagradasse. Mas não. Tudo estava dentro da
normalidade. Aquela normalidade a que convencionámos chamar paz.
Esmurrava o inimigo... |
E
ele continuava, gesticulando, dando pontapés na parede, resmungando palavras ininteligíveis, em passadas largas, cada vez mais possuídas pela raiva que o
avassalava, e vociferando, colérico, contra alguém, invisível, que teria
provocado algo ou alguma coisa que, quem por ali estava, não entendia.
Esmurrava o inimigo que só ele podia ver e ria desmedidamente quando um soco o
atirava ao chão.
Ainda
tentei entabular conversa mas fui imediatamente dissuadida por uma moradora
que, sorrindo, me alertou:
- Não ligue, não está bom da
cabeça, passa horas a falar sozinho. Ninguém o entende nem percebe o que ele
quer. Dá-lhe para isto, agora.
O
meu tempo estava a ficar sem tempo. Eu tinha alguém à minha espera, com quem me
comprometera e tive de me desligar daquela representação que decorria ao meu
lado. Mas a imagem dolorosa de alguém, que deixei para trás, foi-me
acompanhando durante toda a viagem. E dei por mim a perguntar-me:
- O que terá acontecido
àquele homem para o colocar naquele estado? O aspecto cuidado, a pasta na mão,
as folhas que retirava de dentro da pasta, rasgando-as com violência, eram
sinónimos de quê? Os pontapés que atirava descontroladamente contra as paredes,
contra as floreiras do parque e até mesmo contra os carros estacionados,
demonstravam um mau estar potenciado por quê? O descontrolo em que se
encontrava poderiam gerar maior violência ou ela seria apenas uma forma de
extravasar uma raiva incontida?
Tentei
então perceber qual a distância entre falar sozinha ou falar comigo. Há um
limiar muito ténue entre ambas – o limiar da loucura, dirão alguns.
Quantas
vezes não utilizamos a oportunidade de conduzir, com a música bem alta, para
desancarmos o chefe que foi arrogante e a quem não pudemos responder? Quantas
vezes não dialogamos com um pai que não nos compreendeu, uma criança que não
quisemos ouvir ou alguém que perdemos e a quem não perdoamos que se tenha
deixado ir? Quantas vezes não discutimos com um companheiro que se tornou
intolerante, um filho que já não vimos há muito, uma saudade que nos corrói por
dentro e nos amachuca por fora?
E é,
nesses momentos que falamos o que não pudemos, que somos completamente
sinceros: não precisamos inventar desculpas para sair duma conversa, fazer de
conta que se está a gostar duma iguaria detestável, nem inventar desculpas para
partir em debandada. Um livro de que todos dizem maravilhas mas que detestámos.
Falamos em silêncio e gritamos em alta voz: ensaiamos uma discussão que não
queremos ter, um desabafo que queremos calar, uma querela que não queremos que
aconteça.
E tudo fica ali mesmo resolvido sem nada acontecer. |
E
tudo fica resolvido ali mesmo sem nada acontecer. Porque a ter lugar quantos
estragos não cometeríamos? Quantos empregos terminados, quantas relações
frustradas, quantas amizades terminadas, quanta hipocrisia concluída. Gritar
sozinha, sem que ninguém nos oiça funciona assim como uma espécie de catarse em
que afastamos o que nos impede de continuarmos a ser livres, ou a iludirmo-nos,
como se o fossemos.
Se
alguém nos ouvisse, nesses momentos, seríamos loucos! Claro que sim, seríamos
loucos. Mas não estaremos nós, nesses momentos, a zelar pela nossa sanidade
mental? Não nos sentiremos muito melhor depois de uns bons socos numa almofada
ou umas braçadas violentas na água da piscina? Qual de nós nunca se utilizou
dum excelente grito (em surdina) para continuar a viver?
Albertina
Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Em vez de viver tudo isso, talvez seja melhor ficar louco... Porque não?
ResponderEliminarÉ verdade Joana! Também penso que é com "loucos" que os se deram os grandes saltos na humanidade. É preciso é coragem para se ser "louco". Pelo menos de vez em quando. Força, fico à espera das suas "loucuras" e de mais comentários.
ResponderEliminarA loucura obrigatória do equilíbrio está apenas a dois degraus de profundidade do imenso e desconhecido poço que é a condição humana. Texto de sincera reflexão sobre esses dois degraus que vislumbramos em nós e nos outros.
ResponderEliminarDe são e de louco…todos temos um pouco?
ResponderEliminarCoitados dos extrovertidos, dos introvertidos, dos que se mostrem — diferentes — , seja no que for, é certo e sabido que têm “pancada”! Mas, se reprimirem sentimentos, se esconderem emoções, se engolirem opiniões, serão os loucos bem comportados?
E os que sobram,— são(s) — os…— sensatos —?...