domingo, 7 de abril de 2013

Utopia…?


A partir da publicação deste texto, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre ciclos de vida. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! Obrigada.
O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.
Fernanda Reigota

Texto I

Antunes sempre fora um homem feliz. Aquela felicidade que uma vida sem episódios angustiantes dá, aquela felicidade que um trabalho compensador vai tecendo na teia da vida.
Sonhou arquitetar edificios não habitacionais
Mal acabou o curso de arquitetura, começou a trabalhar numa empresa de razoável projeção, também a nível internacional. O mundo do trabalho afigurou-se-lhe como uma bem lançada e elegante ponte que ele iria apreciar ao longo da sua carreira. Sempre tivera o sonho de arquitetar edifícios não habitacionais. Como ele dizia, interessavam-lhe as casas de viver e não as casas de dormir. 
Quando a empresa angariava o projeto de uma biblioteca, era ao Antunes que o primeiro esboço era confiado. A sua pesquisa sobre efeitos de deflexão arquitetónica da luz levava-o a conceber espaços de leitura onde era possível utilizar a luz solar durante todo o dia. Concebido um espaço com esta funcionalidade, outros colegas participavam no projeto e, em trabalho de equipa, surgia sempre um edifício urbanisticamente integrado e extremamente funcional.
Espaços de sociabilidade
Para os utentes, os espaços de leitura assumiam-se rapidamente como bolhas individuais onde a leitura podia alimentar a vida e o conhecimento. Mas também era fácil aceder a um espaço onde se pudesse conversar. Para ele, sempre fora muito penoso transgredir a regra do silêncio, mas também não gostava de encontrar um amigo numa biblioteca e não lhe poder falar. Por isso, os seus projetos contemplavam espaços de sociabilidade, muitas vezes contínuos aos de leitura. Também não descurava aquilo a que chamava espaços de comodidade: deixar pertences acautelados, fazer uma pequena refeição, aceder a um espaço que possibilitasse a privacidade de um telefonema ou encontrar um WC, tudo isto era sempre fácil e funcional. Como ele dizia, numa biblioteca era necessário estar sempre de alma lavada, porque ler é um ato tão íntimo que nada o pode perturbar.
Se o projeto suportava maiores arrojos, então acrescentava espaços de leitura ao ar livre – em pequenos jardins no rés do chão, em varandas, ou mesmo em coberturas ajardinadas –, onde a leitura podia ser sublinhada pelo canto de algum pássaro. Não era bucolismo, era a natural necessidade de o homem se libertar do círculo de betão que o condiciona na sua vida citadina.
... nos fazem sentir em casa
A determinada altura da sua vida, a amiga Francisca propôs-lhe um desafio. Queria deixar a sua casa e ir habitar uma muito mais facilitadora da vida no dia-a-dia.
– Eu não sou especialista em casas funcionais.
– Mas projetas bibliotecas que nos fazem sentir em casa, no sentido metafórico da expressão.
– Para mim, a nível exterior, uma casa tem de ter um bom enquadramento urbanístico e perturbar a paisagem o menos possível. O espaço habitável tem, como é evidente, de ser um refúgio íntimo, com meia dúzia de requisitos que nos facilitem a vida.
– Concordo. Mas quero uma casa que me dê mais. As casas comuns são pensadas dessa forma, são desenhadas por pessoas no apogeu da vida, são feitas para as pessoas dormirem durante a semana e se refugiarem ao fim de semana. São construídas para andar de carro. Se tudo fica longe, não importa, se muros nos impedem de conversar com os vizinhos, não importa, se conhecemos os vizinhos só no patamar mal iluminado do elevador e as conversas se reduzem a boa tarde e que calor lá fora, pouco importa.

– Já vi que não gostas de vivendas, Francisca, nem de apartamentos…
Uma biblioteca num jardim
– Eu não disse isso, Antunes. Não são propriamente os conceitos que me incomodam. Contudo, um apartamento já me parece mais apartador, mais tendente a ser claustrofóbico para quem vive sozinho… Mas uma vivenda também é…
– Bem! Parece que um hotel também não te agradaria. Caso contrário, não vinhas pôr o problema.
– Claro! A minha primeira prioridade é não precisar de andar de carro, mas também não ficar isolada logisticamente nem socialmente. O que eu quero dizer é que desejava, nesta fase da minha vida, viver numa casa pequena – mas o prédio pode ser grande, embora não queira que tenha uma entrada de bloco de apartamentos – com lojas de bairro e comércio tradicional muito acessíveis… Não te sei dizer muito mais. Conto contigo!
– Vou pensar, reunir ideias, falar com alguns especialistas e depois contacto-te, Francisca!
– Fico a aguardar. Obrigada.
Passados três meses, Antunes apareceu com algumas ideias definidas e outras para confrontar com Francisca.
Foi uma longa conversa.
"Ler como quem está em férias"
Antunes tinha um novo centro de interesse profissional e falava de habitação com o mesmo entusiasmo com que abraçara o seu conceito de biblioteca. Se, para o seu conceito de biblioteca, partira da ideia “Ler como quem está em férias”, este novo desafio só começou a rolar quando fixou o conceito na expressão “Bairrocasahotel”.
E foi a partir de cada uma das palavras da expressão que ele expôs o que agora imaginava que seria uma casa de viver.
Teria a entrada de um hotel com os espaços de convívio tradicionais. A maior parte do complexo habitacional seria constituído por apartamentos com um quarto, mas também alguns com dois quartos e uns tantos T0, destinados a serem alugados como qualquer outro apartamento. Um setor seria destinado a quartos tradicionais de hotel.
– Mas isso é um hotel e um aparthotel em conjunto, como há tantos.
– Não, na sua utilização. Quem alugar um apartamento pode mobilá-lo ou alugá-lo já mobilado. Os serviços como televisão por cabo e internet, concebo-os como fornecimentos do hotel. Os consumos de água e energia, concebo-os como gastos individuais faturados pelo próprio hotel.
– Pagavam-se todas as contas de uma única vez, mas evitavam-se consumos excessivos. De facto, é preciso dar oportunidade a este planeta para que seja sustentável.
– Sim, e cada inquilino podia ainda optar por serviços de limpeza regular ou pontual.
– Já são algumas facilidades. Penso que até muitos jovens gostariam de habitar num espaço com essas características. Já percebi a ideia de “casahotel”, mas, por favor, explica-me a presença da palavra bairro agregada ao conceito.
"Bairrocasahotel"?
E Antunes continuou com entusiasmo. Aquela ideia era a sua nova paixão profissional. Poder-se-ia dizer que até já era uma paixão pessoal. Começava a gostar de passar mais algum tempo em casa e isso implicava mais apoio logístico e nem sempre tinha tempo para se organizar. Via o seu edifício “Bairrocasahotel” integrado numa zona habitacional da cidade. Os seus habitantes e hóspedes, especialmente os hóspedes adeptos do novo turismo, respirariam o ar antigo do bairro e sentiriam o latejar da vizinhança que se cumprimenta e sorri, na rua ou à janela. Parte do rés do chão do edifício seria destinado a lojas de comércio tradicional e serviços. A sua implementação obedeceria a dois critérios principais: por um lado, os habitantes do complexo habitacional teriam os fornecimentos de produtos e serviços assegurados, de forma facilitada; por outro lado, ter-se-ia em conta o comércio e serviços já existentes. Todo o contexto habitacional envolvente ficaria enquadrado e ligado pela rede do pequeno comércio.
É num sitio destes que eu quero viver
– É num sítio desses que eu quero viver – interrompeu Francisca.
– Até eu!
– És ainda muito novo e tens uma bela casa.
– Mas agora começa a ficar muito vazia… Tenho pensado muito na minha mãe, enquanto estudava esta tua encomenda. Se a tua grande amiga ainda estivesse entre nós, provavelmente iria contigo para uma casa destas.
– Também penso o mesmo. Mas até parece que o edifício já está em acabamentos.
– Nem tanto. Mas olha que um economista, que trabalhou determinados aspetos comigo, disse-me que um investidor gostou da ideia.
– Quando a família vai naturalmente reduzindo, as pessoas tem tendência para se isolarem e isso leva à solidão e ao sofrimento. Atualmente, o voluntariado e novas aprendizagens são ótimos, também para criar laços e pontes com os outros, mas as casas tradicionais continuam a isolar os idosos que vivem sozinhos. Que venha a concretização. Depois, quem lá viver, muito poderá fazer por uma vida com dimensão humana e cultural, ou seja, com qualidade. Obrigada, meu amigo. Conto contigo.
Será?...
– Até poderemos vir a ser vizinhos.

12 comentários:

  1. Excelente ideia! Desta forma podemos falar e discutir temas que a todos interessam.
    Gostava de viver nessa cidade Fernanda, gostava mesmo! Penso que já existem experiências que vão nesse sentido mas todas me parecem destinadas apenas a quem tenha um determinado poder económico que não deve estar ao alcance de qualquer um. Neste mundo de diferenças acho que vou ter de me encontrar com a Francisca ou com o Antunes para continuarmos este projeto!

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    1. Sim, é importante que o Antunes conheça alguém que acredite, como eu acredito, que é possível viver integrado, mesmo quando o dia-a-dia se torna um pouco mais difícil...

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  2. Olá Fernanda!
    Não consegui que o comentário ficasse mas...aqui vai, de novo:
    Tenho passado algum do meu tempo a trabalhar os neurónios a propósito desta temática ; viver como, onde, e com quem a partir do momento em que os filhos deixam o ninho e à medida que as capacidades (físicas, mas não só...) de todos nós, vão diminuindo. No fundo esta "cidade ou aldeia da utopia" até já é possível pois conheço, na serra algarvia, um complexo deste género onde os habitantes (ingleses na sua maioria...)têm acesso a todo o tipo de serviços e apoios, inimagináveis, quando vivemos em casas normais...
    Gosto da ideia! Gostei do texto!
    Quem sabe, não seremos vizinhas/os?!
    Contem comigo!

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    1. Olá, Conceição!
      Gostei, em especial, do "contem comigo": ficamos à espera de os teus neurónios nos revelarem o que têm congeminado e produzirem um texto que dialogue com Utopia I.
      "Quem sabe? Seremos vizinhas...

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  3. Gostei muito do texto onde nem sequer faltam aspetos técnicos relevantes. Não podendo viver na minha casa, eu também gostaria de viver na Utopia. Vamos ver o que sobra da crise...

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    1. Este sonho, com muitas adesões, poderá subtrair-se à tutela da utopia?

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  4. Cara Amiga

    Eu posso afirmar que sempre vivi, e vivo, na utopia. Tem-me faltado o arquitecto, a rua, a casa, o bairro. Talvez um dia o encontre de verdade.
    Nunca deixarei de o procurar, enquanto a força anímica me não faltar (não ao do ministro, é claro).
    É bom saber que não estamos sozinhos em nossos sonhos e sobretudo que por lá encontramos amigos, Amigas...
    O sonho é apenas o primeiro patamar da realidade.Comanda mesmo a vida.
    Gostei muito de ler este texto.
    Um abraço.
    Aida

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    1. Hoje sonho, amanhã projeto, depois a força que lhe quisermos e podermos dar...
      Obrigada por mais um alento para a Utopia que em muitos de nós encontra terreno propício para o "bichinho álacre e sedento,

      de focinho pontiagudo,

      que fossa através de tudo

      num perpétuo movimento." se manifestar.

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  5. Há quem diga, que não há felicidade, mas antes, "momentos felizes".A UTOPIA, será um estado de felicidade? Acredito que, cada um, à sua maneira, luta no dia-a-dia por atingi-la. Para mim tem sido perfeitamente utópico estar a participar neste projeto. - Disse projeto? Pois é, só me faltava meter-me em construção. Este blog obriga-nos a fazer cada coisa?...

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    1. É um doce "obrigar" que este blog nos impõe, não é, José Luís?

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  6. Gostei muito da ideia para esse projeto. Também eu penso muitas vezes nesse género de habitação. Contem comigo para aí viver com comodidade e com serviços perto.

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    1. Será que sairemos da esfera da utopia?
      Muitas ideias, muitas palavras e muitas ações são necessárias...

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