A partir da publicação deste texto, aos domingos, e com
periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre ciclos
de vida. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este
diálogo, participando com um texto! Obrigada.
O trabalho poderá ser enviado para
o endereço evoluircriativa@gmail.com
ou para qualquer outro dos autores do blogue.
Fernanda
Reigota
Texto
I
Antunes
sempre fora um homem feliz. Aquela felicidade que uma vida sem episódios
angustiantes dá, aquela felicidade que um trabalho compensador vai tecendo na
teia da vida.
Sonhou arquitetar edificios não habitacionais |
Mal
acabou o curso de arquitetura, começou a trabalhar numa empresa de razoável
projeção, também a nível internacional. O mundo do trabalho afigurou-se-lhe
como uma bem lançada e elegante ponte que ele iria apreciar ao longo da sua
carreira. Sempre tivera o sonho de arquitetar edifícios não habitacionais. Como
ele dizia, interessavam-lhe as casas de viver e não as casas de dormir.
Quando
a empresa angariava o projeto de uma biblioteca, era ao Antunes que o primeiro
esboço era confiado. A sua pesquisa sobre efeitos de deflexão arquitetónica da
luz levava-o a conceber espaços de leitura onde era possível utilizar a luz
solar durante todo o dia. Concebido um espaço com esta funcionalidade, outros
colegas participavam no projeto e, em trabalho de equipa, surgia sempre um
edifício urbanisticamente integrado e extremamente funcional.
Espaços de sociabilidade |
Se o
projeto suportava maiores arrojos, então acrescentava espaços de leitura ao ar
livre – em pequenos jardins no rés do chão, em varandas, ou mesmo em coberturas
ajardinadas –, onde a leitura podia ser sublinhada pelo canto de algum pássaro.
Não era bucolismo, era a natural necessidade de o homem se libertar do círculo
de betão que o condiciona na sua vida citadina.
... nos fazem sentir em casa |
A
determinada altura da sua vida, a amiga Francisca propôs-lhe um desafio. Queria
deixar a sua casa e ir habitar uma muito mais facilitadora da vida no
dia-a-dia.
– Eu
não sou especialista em casas funcionais.
–
Mas projetas bibliotecas que nos fazem sentir em casa, no sentido metafórico da
expressão.
–
Para mim, a nível exterior, uma casa tem de ter um bom enquadramento
urbanístico e perturbar a paisagem o menos possível. O espaço habitável tem,
como é evidente, de ser um refúgio íntimo, com meia dúzia de requisitos que nos
facilitem a vida.
–
Concordo. Mas quero uma casa que me dê mais. As casas comuns são pensadas dessa
forma, são desenhadas por pessoas no apogeu da vida, são feitas para as pessoas
dormirem durante a semana e se refugiarem ao fim de semana. São construídas
para andar de carro. Se tudo fica longe, não importa, se muros nos impedem de
conversar com os vizinhos, não importa, se conhecemos os vizinhos só no patamar
mal iluminado do elevador e as conversas se reduzem a boa tarde e que calor lá
fora, pouco importa.
Antunes
tinha um novo centro de interesse profissional e falava de habitação com o
mesmo entusiasmo com que abraçara o seu conceito de biblioteca. Se, para o seu
conceito de biblioteca, partira da ideia “Ler como quem está em férias”, este
novo desafio só começou a rolar quando fixou o conceito na expressão
“Bairrocasahotel”.
E
Antunes continuou com entusiasmo. Aquela ideia era a sua nova paixão
profissional. Poder-se-ia dizer que até já era uma paixão pessoal. Começava a
gostar de passar mais algum tempo em casa e isso implicava mais apoio logístico
e nem sempre tinha tempo para se organizar. Via o seu edifício
“Bairrocasahotel” integrado numa zona habitacional da cidade. Os seus
habitantes e hóspedes, especialmente os hóspedes adeptos do novo turismo,
respirariam o ar antigo do bairro e sentiriam o latejar da vizinhança que se
cumprimenta e sorri, na rua ou à janela. Parte do rés do chão do edifício seria
destinado a lojas de comércio tradicional e serviços. A sua implementação obedeceria
a dois critérios principais: por um lado, os habitantes do complexo
habitacional teriam os fornecimentos de produtos e serviços assegurados, de
forma facilitada; por outro lado, ter-se-ia em conta o comércio e serviços já
existentes. Todo o contexto habitacional envolvente ficaria enquadrado e ligado
pela rede do pequeno comércio.
– Já
vi que não gostas de vivendas, Francisca, nem de apartamentos…
Uma biblioteca num jardim |
– Eu
não disse isso, Antunes. Não são propriamente os conceitos que me incomodam. Contudo, um apartamento já me parece
mais apartador, mais tendente a ser claustrofóbico para quem vive sozinho… Mas
uma vivenda também é…
–
Bem! Parece que um hotel também não te agradaria. Caso contrário, não vinhas
pôr o problema.
–
Claro! A minha primeira prioridade é não precisar de andar de carro, mas também
não ficar isolada logisticamente nem socialmente. O que eu quero dizer é que
desejava, nesta fase da minha vida, viver numa casa pequena – mas o prédio pode
ser grande, embora não queira que tenha uma entrada de bloco de apartamentos –
com lojas de bairro e comércio tradicional muito acessíveis… Não te sei dizer
muito mais. Conto contigo!
–
Vou pensar, reunir ideias, falar com alguns especialistas e depois contacto-te,
Francisca!
–
Fico a aguardar. Obrigada.
Passados
três meses, Antunes apareceu com algumas ideias definidas e outras para
confrontar com Francisca.
Foi
uma longa conversa.
"Ler como quem está em férias" |
E
foi a partir de cada uma das palavras da expressão que ele expôs o que agora
imaginava que seria uma casa de viver.
Teria
a entrada de um hotel com os espaços de convívio tradicionais. A maior parte do
complexo habitacional seria constituído por apartamentos com um quarto, mas
também alguns com dois quartos e uns tantos T0, destinados a serem alugados
como qualquer outro apartamento. Um setor seria destinado a quartos
tradicionais de hotel.
–
Mas isso é um hotel e um aparthotel em conjunto, como há tantos.
–
Não, na sua utilização. Quem alugar um apartamento pode mobilá-lo ou alugá-lo
já mobilado. Os serviços como televisão por cabo e internet, concebo-os como
fornecimentos do hotel. Os consumos de água e energia, concebo-os como gastos
individuais faturados pelo próprio hotel.
– Pagavam-se
todas as contas de uma única vez, mas evitavam-se consumos excessivos. De
facto, é preciso dar oportunidade a este planeta para que seja sustentável.
–
Sim, e cada inquilino podia ainda optar por serviços de limpeza regular ou
pontual.
– Já
são algumas facilidades. Penso que até muitos jovens gostariam de habitar num
espaço com essas características. Já percebi a ideia de “casahotel”, mas, por
favor, explica-me a presença da palavra bairro agregada ao conceito.
"Bairrocasahotel"? |
É num sitio destes que eu quero viver |
– É
num sítio desses que eu quero viver – interrompeu Francisca.
–
Até eu!
– És
ainda muito novo e tens uma bela casa.
–
Mas agora começa a ficar muito vazia… Tenho pensado muito na minha mãe,
enquanto estudava esta tua encomenda. Se a tua grande amiga ainda estivesse
entre nós, provavelmente iria contigo para uma casa destas.
–
Também penso o mesmo. Mas até parece que o edifício já está em acabamentos.
–
Nem tanto. Mas olha que um economista, que trabalhou determinados aspetos
comigo, disse-me que um investidor gostou da ideia.
– Quando
a família vai naturalmente reduzindo, as pessoas tem tendência para se isolarem
e isso leva à solidão e ao sofrimento. Atualmente, o voluntariado e novas
aprendizagens são ótimos, também para criar laços e pontes com os outros, mas
as casas tradicionais continuam a isolar os idosos que vivem sozinhos. Que
venha a concretização. Depois, quem lá viver, muito poderá fazer por uma vida
com dimensão humana e cultural, ou seja, com qualidade. Obrigada, meu amigo.
Conto contigo.
Será?... |
–
Até poderemos vir a ser vizinhos.
Excelente ideia! Desta forma podemos falar e discutir temas que a todos interessam.
ResponderEliminarGostava de viver nessa cidade Fernanda, gostava mesmo! Penso que já existem experiências que vão nesse sentido mas todas me parecem destinadas apenas a quem tenha um determinado poder económico que não deve estar ao alcance de qualquer um. Neste mundo de diferenças acho que vou ter de me encontrar com a Francisca ou com o Antunes para continuarmos este projeto!
Sim, é importante que o Antunes conheça alguém que acredite, como eu acredito, que é possível viver integrado, mesmo quando o dia-a-dia se torna um pouco mais difícil...
EliminarOlá Fernanda!
ResponderEliminarNão consegui que o comentário ficasse mas...aqui vai, de novo:
Tenho passado algum do meu tempo a trabalhar os neurónios a propósito desta temática ; viver como, onde, e com quem a partir do momento em que os filhos deixam o ninho e à medida que as capacidades (físicas, mas não só...) de todos nós, vão diminuindo. No fundo esta "cidade ou aldeia da utopia" até já é possível pois conheço, na serra algarvia, um complexo deste género onde os habitantes (ingleses na sua maioria...)têm acesso a todo o tipo de serviços e apoios, inimagináveis, quando vivemos em casas normais...
Gosto da ideia! Gostei do texto!
Quem sabe, não seremos vizinhas/os?!
Contem comigo!
Olá, Conceição!
EliminarGostei, em especial, do "contem comigo": ficamos à espera de os teus neurónios nos revelarem o que têm congeminado e produzirem um texto que dialogue com Utopia I.
"Quem sabe? Seremos vizinhas...
Gostei muito do texto onde nem sequer faltam aspetos técnicos relevantes. Não podendo viver na minha casa, eu também gostaria de viver na Utopia. Vamos ver o que sobra da crise...
ResponderEliminarEste sonho, com muitas adesões, poderá subtrair-se à tutela da utopia?
EliminarCara Amiga
ResponderEliminarEu posso afirmar que sempre vivi, e vivo, na utopia. Tem-me faltado o arquitecto, a rua, a casa, o bairro. Talvez um dia o encontre de verdade.
Nunca deixarei de o procurar, enquanto a força anímica me não faltar (não ao do ministro, é claro).
É bom saber que não estamos sozinhos em nossos sonhos e sobretudo que por lá encontramos amigos, Amigas...
O sonho é apenas o primeiro patamar da realidade.Comanda mesmo a vida.
Gostei muito de ler este texto.
Um abraço.
Aida
Hoje sonho, amanhã projeto, depois a força que lhe quisermos e podermos dar...
EliminarObrigada por mais um alento para a Utopia que em muitos de nós encontra terreno propício para o "bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento." se manifestar.
Há quem diga, que não há felicidade, mas antes, "momentos felizes".A UTOPIA, será um estado de felicidade? Acredito que, cada um, à sua maneira, luta no dia-a-dia por atingi-la. Para mim tem sido perfeitamente utópico estar a participar neste projeto. - Disse projeto? Pois é, só me faltava meter-me em construção. Este blog obriga-nos a fazer cada coisa?...
ResponderEliminarÉ um doce "obrigar" que este blog nos impõe, não é, José Luís?
EliminarGostei muito da ideia para esse projeto. Também eu penso muitas vezes nesse género de habitação. Contem comigo para aí viver com comodidade e com serviços perto.
ResponderEliminarSerá que sairemos da esfera da utopia?
EliminarMuitas ideias, muitas palavras e muitas ações são necessárias...