quarta-feira, 3 de abril de 2013

A chuva do descontentamento



José Luís Vaz
E a chuva teimava em continuar a cair
E a chuva teimava em continuar a cair, ainda por cima, acompanhada de fortes rajadas de vento que apanhava desprevenido qualquer um. Pessoas que dependem, única e exclusivamente, do rendimento de poucos e pequenos prédios rústicos, cultivados com o seu labor permanente, impedidos assim, compulsivamente, de desenvolver a sua atividade. Fazem parte da Estatística Nacional, ao lado dos mais.
O mau tempo
Todos juntos formam o bolo agrícola de um país que, embora pequenino, tem as maiores e mais pequenas propriedades de toda a Europa. O mau tempo, logo nesta altura, em que tanto havia para fazer, remete-os para a opção mais fácil, a Tasca do Jeremias. São pessoas simples, de poucas habilitações escolares, agarrados a maior parte das vezes a tradições seculares, parecendo que o tempo já há muito parou e elas a tudo resistem, em luta perseverante pela subsistência dos seus.
A Tasca proporciona-lhes o ambiente apropriado a conversas, do mais variado tipo, muitas das vezes com o ingrediente fornecido por uns copos a mais, funcionando para esta gente, como a válvula de escape de quem tudo quer e nada tem.
São pessoas simples
— Jeremias, ó Jeremias…
— Já lá vou, quem está ai? Olha quem ele é, então que queres?
— Que é que hei-de querer, deita aí um copo, homem. Tu não vês, como está o tempo?
— Deixa chover, a água também é precisa… Se não chover, como queres tu lavrar as terras, António?
— Se não chover? Está-te a calhar, é o que é… Se não chover…
— Boas tardes! Deita aí um copito Jeremias, para ver se ajuda a passar o tempo.

— Eh Joaquim, trazes a roupa a pingar homem, chega-te ao lume, donde é que tu vens?
Foi pior do que se tivesse ido a pé
— De onde é que hei-de vir…Olha, António, no fim de almoçar, deu-me cá uma de raiva que arranquei de casa, direito à “malhadinha”, convencido, que mais minuto, menos minuto, vinha uma aberta para fazer qualquer coisa… Acabei por ir gastar gasóleo, e como ela vinha muito batida pelo vento, foi pior do que se fosse a pé.
A troca de olhares, substituía agora as palavras amargas que lhes inundavam o peito cansado de se não cansar e passando os olhos pelo chão escondiam algumas vezes a lágrima que nunca poderia sair. Era um diálogo, em silêncio, que só era quebrado pelos sinais que faziam ao taberneiro para lhes voltar a encher os copos.
Chegaram o Manel, o Augusto, o Ezequiel e outros não entrariam porque já tinham percebido que naqueles dias ir para a Tasca do Jeremias, não era, normalmente, a melhor solução. O desânimo tomava conta deles e era bebendo que se vingavam da sua falta de sorte, acabando por deixar na tasca algum do dinheiro que em casa fazia muita falta. Bebem, falam muito alto, discutem, negoceiam até alguns dos seus poucos haveres, tantas vezes alucinados entre as preocupações que os fazem vergar e a bebida já efervescente de tanta agitação.
Enche os copos ao pessoal
— Enche os copos ao pessoal, Jeremias. Agora sou eu que pago. Deita também um copo para ti, desgraçado, também tens direito…
— Não senhor Manel, eu não bebo, obrigadinho.
— Olha o finório, não bebe, ele é muito fino, mas não caça ratos, ele não…
— Ó Manel vê lá o que dizes? Não arranjes sarilhos…Olha que cá o António, ainda sou teu parente, não quer o teu mal.
— “Não arranjes sarilhos”, então vocês ainda não entenderam, o taberneiro não quer beber porque está-lhe a correr… está-lhe a tilintar na gaveta e tem medo de não receber… Pode ser que ainda aprendas, logo ali abaixo, há a do Zé, que é tão bom rapaz, e até vos digo mais — ele tem lá melhor pinga do que este gaijo.
Juntando o útil ao agradável, em jeito de desviar a conversa, o Augusto perguntou:
— Ó Ezequiel, outro dia, disseste que já não tinhas que dar ao gado. Eu estive a ver e talvez te possa dispensar uns fardos. 
De feno ou de palha?
— De feno ou de palha? Palha, ainda lá tenho alguma, agora, uns farditos de feno, davam-me jeito… Mas vou-te ser muito sincero, não posso fazer negócio, não tenho dinheiro e…
— Dessa, é que eu não estava à espera… Então, primeiro, falas e depois não tens dinheiro?
— Acontece homem, pode acontecer, sim senhor. Eu não sou gastador e já tenho passado alturas bem complicadas…Eu, Joaquim dos Santos, não tenho vergonha de vos dizer, ainda no ano passado, com a moléstia da batata, não fiz dinheiro nenhum e não foi fácil…
O ambiente estava a ficar mais pesado. É sempre assim, muita agitação, muitos copos, e depois, palavras puxam palavras, e das duas, uma, ou se gera uma grande bulha ou acabam por vir à tona de água algumas das agruras que transportam, tantas vezes, durante uma vida. O António, que tinha que fazer em casa, conseguiu convencer o Manel, já bastante carregado, a sair com ele, o ar estava a ficar um bocado turvo e o melhor era pôr-se a andar e levar o outro com ele. Pelo caminho, não parava de resmungar — aquele Jeremias é falso, sabes Tonho, o gaijo é fraco, não é dos nossos — e a rua parecia pequena para ele. Na Tasca, agora mais em silêncio, com vozes arrastadas, como que numa catedral, em que todos falam e nada se percebe, estavam os três companheiros de labuta, em amena cavaqueira. O Jeremias, sempre dentro e fora, não era pessoa para se ligar a uma conversa e num vai e vem permanente alternava entre a Tasca e a sua própria casa para a qual tinha uma porta que lhe dava acesso.
— Sabes Augusto, aqui o Joaquim, falou bem, falou a verdade. Às vezes, um homem passa por coisas muito tristes. Um homem e uma mulher, porque a minha Maria, coitadita, sempre a trabalhar a meu lado, e lá em casa, a toda a hora, cose, descose, vira de um lado, vira do outro, chega as panelas ao lume, eu sei lá bem, nunca para aquela mulher e para quê? Agora não para de chorar, até me tem metido pena…
— Fala Ezequiel, agora sou eu que estou a ficar encravado. Então, eu a julgar que estava a ajudar-te a resolver o problema do gado… Fala por favor, afinal o que se passa?
— O que se passa? Como sabeis, o meu Zé Alberto quer ser doutor de leis e ele, nem sei, não entendo, mas lá conseguiu, chamam-lhe uma bolsa, acho eu, quer dizer, o rapaz lá se tem aguentado… Eu e a mãe não lhe deixamos faltar as batatinhas, feijão, e de todos os mimos, um pouco. Dinheiro, sempre que podemos, lá lhe mandamos uns tostões, pouco é certo, mas sempre será uma ajuda.
O que se passa com o rapaz?
— Mas desembucha, o que é que se passa com o rapaz? – Perguntou Joaquim, já muito ansioso.
— O que se passa é que o meu Zé Alberto, está sujeito a ter que desistir.
— O quê, mas isso não pode ser. Então, tem sido um rapagão, sempre tão bom nos estudos e agora é que vai desistir? – Especulou Augusto com ar de poucos amigos.
— Isto está mau e parece que lhe vão cortar aquela coisa, lá a bolsa, e assim cortam as pernas ao rapaz…
A prostração daquele pai, quase analfabeto, mas muito lúcido, terrivelmente impotente, mais triste que o inverno daquele dia, exibia naquele rosto, rugoso, castigado pelo tempo e pela vida dos pobres, a distância louca que vai do real ao imaginário. Ter um filho, doutor de leis, nem sequer seria um sonho, era a persistência de um seu filho, rapaz de valor, trabalhador, de ideias fixas para pretender chegar onde os pais não o podiam levar, tendo com a sua determinação, com o seu ímpar desempenho convencido os pais de que poderiam sonhar.
O desalento instalou-se, o abatimento estendeu-se aos dois companheiros que trocavam olhares silenciosos e ficavam mais tristes quando olhavam para aquele pai que já há muito tinha deixado de cruzar o olhar, de olhos pregados no chão, era agora a imagem viva de um pobre desamparado, de quem no mundo se encontra absolutamente só e solitário.
O desalento instalou-se
 E, repentinamente, Augusto bate com a mão na mesa de madeira, à volta da qual estavam sentados, e pergunta:
— Mas afinal, como é que te chegou essa notícia, Ezequiel?
— Olha, como é que me chegou a notícia, então vocês não ouvem o que dizem na televisão? E o rapaz já falava nisso na última carta que escreveu.
— Mas, agora, digo eu. O Zé Alberto disse-vos mesmo que já lhe tinham deixado de pagar os estudos? – Perguntava Joaquim.
— Dizer, dizer, não dizia. Mas falava nisso e contava-nos que agora, em vez de um emprego, teria que arranjar outro e que tinha receio de não conseguir ter tempo para estudar. Olhai que eu só fiz a terceira, mas não sou burro.
Que futuro para os nossos filhos?

As palavras soavam amarguradas pela ferida profunda que estava bem dentro dele sem o largar. Era um receio, de que tinha medo de ter a certeza, o filho estava a dar tudo por tudo. Para quem a vida nunca foi fácil, o pessimismo não existe, existe sim o sabor do dia-a-dia e será que o dia do filho doutor de leis ainda teria alguma hipótese de chegar?


4 comentários:

  1. A brincar, a brincar cá vamos falando de coisas muito sérias. Gosto muito da forma como o autor utiliza o diálogo entre pessoas comuns para falar de situações graves que se estão a agudizar cada vez mais na sociedade em que vivemos e gosto sobretudo da forma como agarra a tipicidade dum povo que "teima em persistir". E utilizo esta frase porque sei que te é muito cara: na escrita - como na vida - é necessário persistir e sobretudo teimar em persistir.

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  2. Um problema antigo: a pobreza e abandono dos pequenos lavradores; um problema atual: filhos que, sonhando mais alto que os pais, sofrem ainda mais frustrações por se verem impedidos de alcançar os seus objetivos.
    Um texto muito interessante, pela forma como espelha a realidade, pela caraterização das personagens, pela análise de sentimentos, pelo realismo das situações e dos diálogos. Continue, Zé Luís!

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  3. "a distância louca que vai do real ao imaginário"
    Mas textos como este têm a força de pôr na nossa frente uma fotografia bem nítida da tragédia que é roubarem também os sonhos a tanto jovem! O pormenor, a frase certa e o ambiente recriado com segurança fazem deste texto um testemunho muito mais vivo do que as notícias que amam a estatística, que é importante, mas esquecem cada pessoa que contribuiu com um número para essa estatística.

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  4. Esta realidade já é velha. Quantos pais que não puderam ir à escola, vivendo do trabalho árduo,tiveram a vontade de terem filhos doutores. Mas a triste realidade foi outra; enquanto que os seus filhos foram sempre bons alunos, mas com pais em grandes dificuldades, outros menos bons, lá tiravam os seus cursos, fazendo-se doutores à força. Parabéns pelo seu texto, Zé Luís.

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