Maria
da Conceição Cação
Amarelo gema de ovo... |
É domingo de Páscoa. O sol
brilha intensamente no horizonte. Sigo por caminhos estreitos que serpenteiam
pelos olivais. Do verde denso do centeio que rodeia as imponentes oliveiras
centenárias emergem, espontâneas e vigorosas, graciosas flores rubras. Mais adiante,
impera o amarelo em caprichosos matizes: amarelo gema de ovo das flores
exuberantes do tremoço; amarelo canário das azedas; amarelo e branco, ovo
estrelado, das camomilas que, humildes, atapetam os valados… Aventuro-me agora
por carreirinhos pedregosos. Ai os meus sapatos de verniz! As flores brancas
dos carrapiteiros acariciam-me os cabelos, brincam com as minhas tranças; o
perfume das madressilvas impregna-me as roupas novas. Indiferente à lama e à
distância, deixo-me inebriar pelo aroma fresco e festivo da primavera.
Lá está acasa dos avós |
Lá está
a casa dos avós. O cheirinho rescendente da comida que já nos espera a um canto
da lareira. Que bom o arroz de pato servido na louça do cavalinho - o cheiro da
tradição … E da História vivida e recontada pelo avô – a monarquia, a
implantação da república, a revolta de Paiva Couceiro… Cheiros múltiplos a
folar, a naftalina das colchas antigas e vistosas que tapam a nudez
envergonhada das velhas portas de madeira carcomida. “Cristo ressuscitou.
Aleluia!”. Cheiro suave a alecrim, a água benta. Beijo a cruz, recebo o perfume
aveludado da bela rosa vermelha
A vindima |
Há também a safra da
azeitona. A transformação mágica da massa negra no líquido dourado. O cheiro
verde do azeite novo mistura-se harmoniosamente com o cheiro guloso da couve
cozida com bacalhau.
A matança do porco. Cheiros
fortes, opostos. Reúne-se a família, os amigos. Preparam-se os instrumentos de
execução. Cheiro a pelo chamuscado, a sangue vermelhinho, a alho, a cravinho…
Cheiro a sarrabulho, a pão… e a jogo de cartas ao serão.
O Natal. O cheiro a novo das
roupas compradas na feira dos 24. Um cheiro místico a igreja, a presépio. Cheira
a frio, a fumo que se evade da lareira acesa, a filhoses com canela e … a
austeridade.
A vindima. O cheiro áspero
das parras; o aroma doce das uvas a despedirem-se da videira; doce que se
prolonga no mosto, que já fermenta no enorme tanque e que logo, logo, há de
jorrar da torneira de metal, ainda cru, mas já com cor e cheiro varonis. E o cheiro
vítreo e penetrante da aguardente que, em fio, desce por um boneco de madeira
(qual Manneken Pis) e se afunda na jarra de barro vidrado
Não, não quero recordar o
verão. O sol abrasador, o canto ominoso dos galos, o concerto monótono das
cigarras trazem até mim um cheiro árido, desolador. É agosto. Vários dias a
fio, após o almoço, com uma precisão matemática, uma violenta trovoada faz-se anunciar
através dum leve ribombar. Aos poucos, as nuvens vão-se adensando, o céu assume
uma cor ameaçadora, lembrando as trevas desencadeadas pelo último suspiro de
Cristo na cruz; raios de fogo atravessam-no de lés a lés, logo seguidos de
estrondos assustadores.
Os meus pais parti~ram de madrugada |
O mundo parece desabar sobre a minha cabeça, esmagada
pelo terror. Os meus pais partiram de madrugada, só regressam à noite. Sinto o
cheiro da saudade, da aflição, da morte, da morte deles assim, repetidamente,
anunciada ao meu coração pequenino.
Afinal temos seis sentidos. Não estou a falar da intuição como sexto sentido, mas de seis sentidos mesmo. Este texto prova a minha teoria. Para além dos cinco que os compêndios consagram, temos também o sentido da memória da infância. Ainda algum António Damásio provará que a memória dos nossos tempos de meninos estava aparelhada para armazenar a sustentabilidade da nossa felicidade futura.
ResponderEliminarDepois, em adulto, quanto mais se deixa em liberdade a memória de menino, mais ela se enriquece e nos prende e traz felicidade a todos.
Que bela sinestesia de cheiros, cores, formas, texturas e gostos este texto oferece.
Tal como na vida, porque é vida, nem o som aterrador do trovão falta.
Não sei se viu ontem uma noticia que andou por aí a circular sobre o Google e um novo programa que nos permitiriam saborear os cheiros através do computador:claro que se tratava do dia 1 de Abril. Mas estou sinceramente a pensar propôr-lhes a leitura deste seu trabalho. Eu, por mim senti-me a saborear todos os cheiros, as cores, os sabores que descreve tão bem e com um pormenor, uma força que quase nos fazem saltar de dentro de casa e ir á procura do nosso sol que, este ano, está dificil de ficar. Lindo, São, gostei imenso!
ResponderEliminarUma forma muito bonita de viver as recordações da infância. E, se a beleza não lhe chegasse, "os cheiros" polvilham um texto rico de imagens e realidades.
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