Helena Maltez
O sujeito tinha um corpo
anguloso, sem ordenamento territorial. Tudo à balda, das feições ao trajar.
Como único adereço, um embrulho de suspeitáveis contornos. Parou um momento
junto da porta, topografando o interior da carruagem, e só depois tomou de
assalto o lugar mesmo à minha frente. Remexi-me no banco num desassossego de
maus agouros. Inquietava-me aquela coisa embrulhada em papel de jornal que o
fulano empunhava com aprumo militar. Um facalhão de magarefe? Uma catana? Fosse
o que fosse bulia com os arquivos da minha memória, obrigando-me a rever
lúgubres imagens televisivas: ataques à mão armada… bombistas
embuçados…reféns…explosões. Céus! E se…
Isto é um assalto! |
Pus-me a fantasiar um
assalto em versão soft, uma espécie de desenrascanço à portuguesa: comboio
regional quase lotado… homem sem emprego a chafurdar na crise…arma branca…Estava
a minha efabulação prestes a atingir o seu clímax dramático, quando no enredo
se veio enredar um segundo suspeito, um tipo grandalhão, com excedentes
adiposos e voz de parada militar.
No banco da frente, viajavam
agora, traseiro a traseiro, dois alegados terroristas. Arrepiei-me toda.
Que podia eu fazer?
Mentalmente tentei rascunhar uma estratégia de defesa: olho atento, ouvido à
escuta. Não que a conversa a decorrer fosse minimamente reveladora. Um circuito
fechado de fruta, pomares e podas.
Tratar-se-ia de algum código
secreto? O arrepio voltou. Então, com dedos de prestidigitador e vagares de
criar suspense, o sujeito desalinhado retirou o cordel que atava o embrulho,
abriu as folhas de jornal como quem abre um relicário e, erguendo à altura do
coração um singelo galho de árvore, disse:
Bravo Esmolfe |
- "Bravo Esmolfe. Finalmente consegui
um enxerto."
Eu boquiaberta. Imaginem, um facalhão a virar garfo!! Bravo de Esmolfe! Mas as maçãs sempre gostaram de protagonismo nas histórias: a maçã proibida de Eva, a maçã envenenada de Branca de Neve, a maçã-alvo de Guilherme Tell e, claro, a lendária maçã de Newton.
Eu boquiaberta. Imaginem, um facalhão a virar garfo!! Bravo de Esmolfe! Mas as maçãs sempre gostaram de protagonismo nas histórias: a maçã proibida de Eva, a maçã envenenada de Branca de Neve, a maçã-alvo de Guilherme Tell e, claro, a lendária maçã de Newton.
Relaxei. Um espreguiçar
interior, um abandonar-me ao embalo do comboio. Dentro da carruagem a mesmice
do costume: conversas ao telemóvel, lamúrias (doenças, desavenças, apuros financeiros,
golos falhados). Aqui e ali uma gargalhada, aqui e ali uma irreverência juvenil.
Os dois sujeitos sempre em mansa cavaqueira. Descartado o assunto do enxerto,
eles falavam agora de problemas laborais: os colegas, os chefes, os turnos. Foi
então que, de repente, eu entendi tudo. Sem farda, sem armas, à minha frente
viajavam (imaginem!) dois agentes policiais.
Ah, se eles soubessem! E
vi-me algemada, a caminho da esquadra. À minha direita, o gordalhaço, à minha
esquerda, o mal-encarado. Ou vice-versa.
Mais um colaborador que, pela primeira vez, começa a participar no Evoluir. Um texto pleno de suspense, que perspectiva com um enorme realismo os tempos que vivemos e o trabalho que a nossa imaginação consegue arquitectar. Às vezes não passam de novelas... felizmente!
ResponderEliminarObrigado Maria Helena: queremos continuar a contar consigo.
Um texto muito interessante. A esperada qualidade literária de braço dado com o "gostinho" pelo teatro. Terei razão?
ResponderEliminarVerdadeira escrita de invulgar criatividade poética. Não é a imaginação a "doida" da casa?
ResponderEliminarGrande criatividade, variedade e precisão vocabular, riqueza de imagens, suspense, emoção, humor... Enfim,um texto que nos prende fortemente do princípio ao fim. Apetece-me parafrasear Saroyan: se isto não é literatura, quem perde é a literatura.
ResponderEliminarObrigada, Maria Helena!
Eu sabia que o estilo da Maria Helena nos iria surpreender. Uma pessoa que se conhece dificilmente mas nos encanta com a forma versátil, multifacetada, e cheia de uma surpresa que nos prende e nos leva a ler os seus trabalhos com um misto de curiosidade e espanto. Uma boa gargalhada não se arranca facilmente e a Maria Helena sabe aliar o imprevisto ao riso, qualidade esta que prende o leitor e surpreende mesmo quem a conhece.
ResponderEliminarDepois destes comentários que traduzem toda a qualidade do texto, resta-me perguntar: quando vem o próximo? Aguardo-o interessada.
ResponderEliminarHá pessoas com uma imaginação invulgar para "fazer filmes" como costumo dizer. E a quem, que habitualmente se desloca em transportes publicos, já não aconteceu fazer um filme parecido com este? Agora passá-lo para o papel com esta qualidade...
ResponderEliminarGostei imenso.
Bom, ao ler este texto vi-me envolvida sem querer num filme de pistoleiros. Grande imaginação e bela escrita. Gostei muito.
ResponderEliminar