terça-feira, 30 de abril de 2013

Já não há cravos vermelhos

Albertina Vaz

Será que não estou enganada?
Estamos no dia 30 de Abril de 2013! Será que não estou enganada? Será que a minha memória me não está a atraiçoar? Não sei. Não consigo perceber muito bem o que se está a passar.
Naqueles tempos falávamos de liberdade de expressão, de capacidade de escolha, de livre arbítrio, de liberdade… E hoje já não falamos? Já nem sequer falamos? Já nem sequer podemos falar? Já nem sequer podemos pensar?
E oiço lá ao longe uma canção que dizia: “Não há machado que corte…” O quê? Não haverá mesmo? Será que nenhum de nós ainda sentiu o fiozinho cortante daquela lâmina que tenta escalpelizar aquilo que sinto, que vejo, que canto, que faço, que digo?
Estranho país este em que voltar atrás é sempre calar a voz de quem, se calhar, já nem sequer sabe o que quer. Estranho pedacinho de terra em que voltejamos em círculos fechados, em que o ser deu lugar ao parecer ser e em que o parecer é o mais importante da vida de cada um de nós!
Onde estão os sonhos?
Olho em redor e fico parada no tempo! Não é verdade. Eu não passei uma vida inteira à procura de um país novo em que o diferente não é mesmo o igual e em que o ontem não será sempre o amanhã. Não, eu lutei por qualquer coisa de diferente, mas a verdade é que não consegui encontrar nada em meu redor. A verdade é que continuo a precisar daquele abraço que dei aos desconhecidos que encontrei na manhã do dia 25 de Abril de 1974. Onde estão esses abraços? Onde estão os risos que gritámos, as lágrimas duma alegria incontida, os sonhos?
Somos uma geração que passou a vida a sonhar… Só sonhámos porque nunca conseguimos realizar nenhum sonho. Só sonhámos porque vivemos em tempos de cólera, de guerra, de fome, de ignorância. E sabíamos o que tudo isso significava.
Queríamos melhor para os nossos filhos e para as gerações futuras. E andámos todo este tempo embalados por um desejo de futuro que julgámos ter conquistado.
Afinal apenas virámos uma folha do calendário!
Afinal o que foi o dia a seguir? O que veio depois?
É verdade que corremos à procura de mais e melhores escolas para os filhos de todos. Não, não era só para os nossos. Era para todos. Era uma educação acessível a todos como a nossa geração não teve.
É verdade...
E uma alegria enorme nos invadia quando se erguia uma nova escola, mais perto das nossas crianças, como nós não havíamos tido. Foi errado ter pensado assim?
É verdade que queríamos mais saúde para todos e não só para aqueles que podiam pagar a medicina particular já de si tão exclusiva e tão deficiente. E sonhámos e concretizámos uma saúde melhor.
E alegrámo-nos com o que tínhamos feito! E com o que tínhamos, bem feito! Era lindo de se ver que uma criança tinha sempre um lugar para nascer sem que a família tivesse de pagar para lhe proporcionar a alegria dum nascer do sol.
É verdade que conquistámos o direito ao trabalho e ao trabalho digno, com direitos. E com deveres também. O trabalho feito da partilha entre quem dá e quem recebe. O trabalho que dignifica quem o faz e engrandece quem o pratica.
É verdade que conquistámos o direito a deixar de trabalhar quando as forças nos abandonam ou quando, depois de tantos anos de trabalho, merecíamos de uma forma tranquila apreciar o pôr do sol que se espraia lá pelos horizontes coladinho ao mar.
E ficámos felizes porque os nossos pais deixaram de ter de mendigar um pedaço de pão ou uma gota de água!
Foi errado termos sonhado com “as portas que Abril abriu”?
Foi um sonho feito de sonhos e de canções e de cravos e de abraços! Tantos abraços! Tanta vontade de esquecer aquela longa noite em que os passos caminhavam uns a seguir aos outros numa rota feita de medos e de murmúrios surdos na calada da noite.
Depois voltámos atrás sem dar conta
E depois… porque há sempre um depois no dia seguinte! Um depois que comanda a vida de quem é apanhado no meio da multidão e de quem deixa de olhar para o lado para ver quem lá está a tentar saltar de novo em cima das nossas costas.
Depois, voltámos atrás sem dar conta. Falamos sim, é verdade que falamos! E até podemos dizer que não estamos de acordo. Mas depois lá está o patrão a apontar o dedo acusador do caminho da porta. Lá está o senhor engravatado a explicar com mil palavras que não dizem nada e que dizem tudo. Lá está o sistema!
E o sistema é implacável! Faz de todos nós, de novo, prisioneiros sem grades, marinheiros em terra, lenhadores na areia, sonhadores de sonhos. Assim, devagarinho, sem nos movimentarmos, sem hipóteses de levantarmos um braço, ou um grito, ou até um simples sussurro.
E voltamos a ver os nossos filhos a procurar outra vez outras terras, outros rumos, outras gentes… Dizem que somos maus trabalhadores mas eles vão e ficamos a saber que por lá são admirados e acarinhados.
Afinal valeu a pena termos lutado para lhes abrir novos rumos, novos horizontes, novos pensamentos.
A tristeza toma conta de
novodeste povo
A tristeza toma conta deste povo de novo. Outrora perdemos os nossos irmãos, os nossos amigos, os nossos amantes numa guerra que não queríamos e soubemos conquistar o direito de acabar com ela. Outrora vimos partir tantos de entre nós com a roupa do corpo e um saco cheio de nada à procura duma vida melhor num bairro de lata duma capital da Europa ou numa cidadezinha perdida do novo mundo.
Hoje vemos partir de novo para longe os nossos filhos a quem tudo quisemos dar e a quem nada demos porque é forçoso partir.
É de novo forçoso partir! Com a desgraça do ir e ficar, com esta sentença de quem parte e se reparte pelos cantos deste mundo. E não me venham dizer que é muito bom vaguear pelo mundo. Então e aquele sentimento de pertença, de raiz, de povo, de casa?
Eu sei. Eu não esqueci a tal melodia que trauteava pelos cantos quando ainda não podia falar. Eu sei que em tempos foi possível gritá-la a plenos pulmões. Mas também sei que os meus filhos apenas a podem entoar em sons abafados e surdos. Já quase não há quem nos oiça. Já quase não há quem a cante. Já quase se enublou no horizonte das nuvens que voltejam nos céus da nossa terra.
Não há machado que corte....
Não sei como tudo isto vai acabar, mas sei, ah, sim, isso eu sei, disso eu tenho  a certeza. Um dia há-de ser possível voltar a cantar. Um dia o fio da lâmina voltar-se-á contra quem a usa. Um dia as palavras soltar-se-ão das folhas dos livros e cairão pela estrada desfeita. Um dia o trinado das aves inundará o coração da cidade. Um dia o bater cadenciado das ondas arrasará as luzes duma ribalta que se silenciará
E devagarinho vamos sentir o poeta a balbuciar baixinho, a cantar docemente e a medo, e num crescendo, num passo acompanhado, num trote cadenciado, num galope delirante voltaremos a cantar em uníssono… “não há machado que corte… a raiz ao pensamento!”

14 comentários:

  1. Quando um texto nos ouve o pensamento não há mais nada a dizer ou a escrever...
    É continuar a reclamar! Se tiver que ser baixinho será... mas a reclamar!

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    1. Este é o melhor comentário que eu gostaria que um filho meu fizesse a este trabalho: valeu a pena o caminho que construímos juntos. É muito bom saber que atrás de nós haverá sempre alguém que continue a pensar.

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  2. Um texto que diz tudo o que vai na alma da autora. Isto é falar. Reclamar, não é só cantar a Grândola Vila Morena,ou gritar os slogans gastos. Como era de esperar, muito bom! Parabéns, Albertina.

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    1. Obrigado, Maria José! São sempre muito gratificantes as suas palavras: fico muito contente por saber que já conseguiu ultrapassar a questão processual. Este blogue é seu também – ficamos à espera dos seus trabalhos.

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  3. A força das palavras como expressão do pensamento são manuseadas com a profundidade necessária e a beleza "cortante" de um poema do Abril que se foi. O abril de hoje é como outro qualquer...Este, é o texto da nostalgia do sonho perdido. Se, o conteúdo não fosse horrível, diria que é simplesmente arrepiante de belo.

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    1. Gosto desta força e da força dos teus comentários: quem diria que te ouvi tantas vezes dizer que não gostavas de escrever?
      E a propósito não esqueças: lá dizia o Adriano - não há machado que corte...

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  4. A autora deste texto,habituou-nos a descrever os seus pensamentos tão profundamente, que me chegam a arrepiar de belos. Disse tudo o que lhe vai na alma e disse-o muito bem.Como sempre muito bem escritos. parabéns Albertina, gostei muito.

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    1. A autora deste comentário é uma pessoa especial e eu sinto-me muito orgulhosa por ver que é com muita facilidade que nos apresenta as suas ideias. Quase me atrevo a dizer que estou mesmo vaidosa, Julinha!

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  5. Uma análise profunda de quase quarenta anos de democracia; uma excelente interpretação dos sentimentos dominantes na sociedade portuguesa.
    Tal como a construção magistral do texto espelha, parece que, em muitos aspetos regressámos ao 24 de abril de 1974. Mas, tal como nesse tempo e em todos os tempos, ninguém nos pode cercear a liberdade de pensamento. Assim, neste lodaçal, resta-nos manter vivos os sonhos, alimentar a chama da esperança. Obrigada, Albertina!

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    1. É sempre boa esta troca de ideias, São e o blogue serve mesmo para isso: aproxima-nos e faz-nos trocar ideias que servem para nos mantermos de pé!

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  6. cl@carretolages.com1 de maio de 2013 às 11:44

    A alegria da esperança de o sonho se concretizar,o caminho do sonho, a carga de elevada emoção de o sonho a se tornar mais e mais longínquo, a luta pela realização, o engano, o embuste,a frustração, a solidariedade dass gerações, tudo descrito sob a forma sentida de elevada emotividade e poesia do colorido das palavras certas de que resulta um quadro lindo. Parabéns

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    1. Muito obrigado pelas suas palavras e pela forma como interpretou o meu trabalho. Estamos do mesmo lado da barricada e por isso mesmo a realidade é mais forte e mais dificil de interpretar

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  7. Olhar o passado longa e criticamente para alimentar a esperança no futuro, porque “não há machado que corte… a raiz ao pensamento!”
    O estilo? Cadenciado e atrativo, como a Albertina tão bem sabe fazer.

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    1. Se calhar só nos vai restar isso mesmo - o pensamento. Mas esse ninguém no-lo vai tirar. Obrigado, Fernanda.

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