Albertina Vaz
Será que não estou enganada? |
Estamos no dia 30 de Abril
de 2013! Será que não estou enganada? Será que a minha memória me não está a
atraiçoar? Não sei. Não consigo perceber muito bem o que se está a passar.
Naqueles tempos falávamos de
liberdade de expressão, de capacidade de escolha, de livre arbítrio, de
liberdade… E hoje já não falamos? Já nem sequer falamos? Já nem sequer podemos
falar? Já nem sequer podemos pensar?
E oiço lá ao longe uma
canção que dizia: “Não há machado que corte…” O quê? Não haverá mesmo? Será que
nenhum de nós ainda sentiu o fiozinho cortante daquela lâmina que tenta
escalpelizar aquilo que sinto, que vejo, que canto, que faço, que digo?
Estranho país este em que
voltar atrás é sempre calar a voz de quem, se calhar, já nem sequer sabe o que
quer. Estranho pedacinho de terra em que voltejamos em círculos fechados, em
que o ser deu lugar ao parecer ser e em que o parecer é o mais importante da
vida de cada um de nós!
Onde estão os sonhos? |
Olho em redor e fico parada
no tempo! Não é verdade. Eu não passei uma vida inteira à procura de um país
novo em que o diferente não é mesmo o igual e em que o ontem não será sempre o
amanhã. Não, eu lutei por qualquer coisa de diferente, mas a verdade é que não
consegui encontrar nada em meu redor. A verdade é que continuo a precisar
daquele abraço que dei aos desconhecidos que encontrei na manhã do dia 25 de
Abril de 1974. Onde estão esses abraços? Onde estão os risos que gritámos, as
lágrimas duma alegria incontida, os sonhos?
Somos uma geração que passou
a vida a sonhar… Só sonhámos porque nunca conseguimos realizar nenhum sonho. Só
sonhámos porque vivemos em tempos de cólera, de guerra, de fome, de ignorância.
E sabíamos o que tudo isso significava.
Queríamos melhor para os
nossos filhos e para as gerações futuras. E andámos todo este tempo embalados
por um desejo de futuro que julgámos ter conquistado.
Afinal apenas virámos uma
folha do calendário!
Afinal o que foi o dia a
seguir? O que veio depois?
É verdade que corremos à
procura de mais e melhores escolas para os filhos de todos. Não, não era só
para os nossos. Era para todos. Era uma educação acessível a todos como a nossa
geração não teve.
É verdade... |
E uma alegria enorme nos
invadia quando se erguia uma nova escola, mais perto das nossas crianças, como
nós não havíamos tido. Foi errado ter pensado assim?
É verdade que queríamos mais
saúde para todos e não só para aqueles que podiam pagar a medicina particular
já de si tão exclusiva e tão deficiente. E sonhámos e concretizámos uma saúde
melhor.
E alegrámo-nos com o que
tínhamos feito! E com o que tínhamos, bem feito! Era lindo de se ver que uma
criança tinha sempre um lugar para nascer sem que a família tivesse de pagar
para lhe proporcionar a alegria dum nascer do sol.
É verdade que conquistámos o
direito ao trabalho e ao trabalho digno, com direitos. E com deveres também. O
trabalho feito da partilha entre quem dá e quem recebe. O trabalho que
dignifica quem o faz e engrandece quem o pratica.
É verdade que conquistámos o
direito a deixar de trabalhar quando as forças nos abandonam ou quando, depois
de tantos anos de trabalho, merecíamos de uma forma tranquila apreciar o pôr do
sol que se espraia lá pelos horizontes coladinho ao mar.
E ficámos felizes porque os
nossos pais deixaram de ter de mendigar um pedaço de pão ou uma gota de água!
Foi errado termos sonhado
com “as portas que Abril abriu”?
Foi um sonho feito de sonhos
e de canções e de cravos e de abraços! Tantos abraços! Tanta vontade de
esquecer aquela longa noite em que os passos caminhavam uns a seguir aos outros
numa rota feita de medos e de murmúrios surdos na calada da noite.
Depois voltámos atrás sem dar conta |
E depois… porque há sempre
um depois no dia seguinte! Um depois que comanda a vida de quem é apanhado no
meio da multidão e de quem deixa de olhar para o lado para ver quem lá está a
tentar saltar de novo em cima das nossas costas.
Depois, voltámos atrás sem
dar conta. Falamos sim, é verdade que falamos! E até podemos dizer que não
estamos de acordo. Mas depois lá está o patrão a apontar o dedo acusador do
caminho da porta. Lá está o senhor engravatado a explicar com mil palavras que
não dizem nada e que dizem tudo. Lá está o sistema!
E o sistema é implacável!
Faz de todos nós, de novo, prisioneiros sem grades, marinheiros em terra,
lenhadores na areia, sonhadores de sonhos. Assim, devagarinho, sem nos
movimentarmos, sem hipóteses de levantarmos um braço, ou um grito, ou até um
simples sussurro.
E voltamos a ver os nossos
filhos a procurar outra vez outras terras, outros rumos, outras gentes… Dizem
que somos maus trabalhadores mas eles vão e ficamos a saber que por lá são
admirados e acarinhados.
Afinal valeu a pena termos
lutado para lhes abrir novos rumos, novos horizontes, novos pensamentos.
A tristeza toma conta de novodeste povo |
A tristeza toma conta deste
povo de novo. Outrora perdemos os nossos irmãos, os nossos amigos, os nossos amantes
numa guerra que não queríamos e soubemos conquistar o direito de acabar com
ela. Outrora vimos partir tantos de entre nós com a roupa do corpo e um saco
cheio de nada à procura duma vida melhor num bairro de lata duma capital da
Europa ou numa cidadezinha perdida do novo mundo.
Hoje vemos partir de novo
para longe os nossos filhos a quem tudo quisemos dar e a quem nada demos porque
é forçoso partir.
É de novo forçoso partir!
Com a desgraça do ir e ficar, com esta sentença de quem parte e se reparte
pelos cantos deste mundo. E não me venham dizer que é muito bom vaguear pelo
mundo. Então e aquele sentimento de pertença, de raiz, de povo, de casa?
Eu sei. Eu não esqueci a tal
melodia que trauteava pelos cantos quando ainda não podia falar. Eu sei que em
tempos foi possível gritá-la a plenos pulmões. Mas também sei que os meus
filhos apenas a podem entoar em sons abafados e surdos. Já quase não há quem
nos oiça. Já quase não há quem a cante. Já quase se enublou no horizonte das
nuvens que voltejam nos céus da nossa terra.
Não há machado que corte.... |
Não sei como tudo isto vai
acabar, mas sei, ah, sim, isso eu sei, disso eu tenho a certeza. Um dia há-de ser possível voltar
a cantar. Um dia o fio da lâmina voltar-se-á contra quem a usa. Um dia as
palavras soltar-se-ão das folhas dos livros e cairão pela estrada desfeita. Um
dia o trinado das aves inundará o coração da cidade. Um dia o bater cadenciado
das ondas arrasará as luzes duma ribalta que se silenciará
E devagarinho vamos sentir o
poeta a balbuciar baixinho, a cantar docemente e a medo, e num crescendo, num
passo acompanhado, num trote cadenciado, num galope delirante voltaremos a
cantar em uníssono… “não há machado que corte… a raiz ao pensamento!”
Quando um texto nos ouve o pensamento não há mais nada a dizer ou a escrever...
ResponderEliminarÉ continuar a reclamar! Se tiver que ser baixinho será... mas a reclamar!
Este é o melhor comentário que eu gostaria que um filho meu fizesse a este trabalho: valeu a pena o caminho que construímos juntos. É muito bom saber que atrás de nós haverá sempre alguém que continue a pensar.
EliminarUm texto que diz tudo o que vai na alma da autora. Isto é falar. Reclamar, não é só cantar a Grândola Vila Morena,ou gritar os slogans gastos. Como era de esperar, muito bom! Parabéns, Albertina.
ResponderEliminarObrigado, Maria José! São sempre muito gratificantes as suas palavras: fico muito contente por saber que já conseguiu ultrapassar a questão processual. Este blogue é seu também – ficamos à espera dos seus trabalhos.
EliminarA força das palavras como expressão do pensamento são manuseadas com a profundidade necessária e a beleza "cortante" de um poema do Abril que se foi. O abril de hoje é como outro qualquer...Este, é o texto da nostalgia do sonho perdido. Se, o conteúdo não fosse horrível, diria que é simplesmente arrepiante de belo.
ResponderEliminarGosto desta força e da força dos teus comentários: quem diria que te ouvi tantas vezes dizer que não gostavas de escrever?
EliminarE a propósito não esqueças: lá dizia o Adriano - não há machado que corte...
A autora deste texto,habituou-nos a descrever os seus pensamentos tão profundamente, que me chegam a arrepiar de belos. Disse tudo o que lhe vai na alma e disse-o muito bem.Como sempre muito bem escritos. parabéns Albertina, gostei muito.
ResponderEliminarA autora deste comentário é uma pessoa especial e eu sinto-me muito orgulhosa por ver que é com muita facilidade que nos apresenta as suas ideias. Quase me atrevo a dizer que estou mesmo vaidosa, Julinha!
EliminarUma análise profunda de quase quarenta anos de democracia; uma excelente interpretação dos sentimentos dominantes na sociedade portuguesa.
ResponderEliminarTal como a construção magistral do texto espelha, parece que, em muitos aspetos regressámos ao 24 de abril de 1974. Mas, tal como nesse tempo e em todos os tempos, ninguém nos pode cercear a liberdade de pensamento. Assim, neste lodaçal, resta-nos manter vivos os sonhos, alimentar a chama da esperança. Obrigada, Albertina!
É sempre boa esta troca de ideias, São e o blogue serve mesmo para isso: aproxima-nos e faz-nos trocar ideias que servem para nos mantermos de pé!
EliminarA alegria da esperança de o sonho se concretizar,o caminho do sonho, a carga de elevada emoção de o sonho a se tornar mais e mais longínquo, a luta pela realização, o engano, o embuste,a frustração, a solidariedade dass gerações, tudo descrito sob a forma sentida de elevada emotividade e poesia do colorido das palavras certas de que resulta um quadro lindo. Parabéns
ResponderEliminarMuito obrigado pelas suas palavras e pela forma como interpretou o meu trabalho. Estamos do mesmo lado da barricada e por isso mesmo a realidade é mais forte e mais dificil de interpretar
EliminarOlhar o passado longa e criticamente para alimentar a esperança no futuro, porque “não há machado que corte… a raiz ao pensamento!”
ResponderEliminarO estilo? Cadenciado e atrativo, como a Albertina tão bem sabe fazer.
Se calhar só nos vai restar isso mesmo - o pensamento. Mas esse ninguém no-lo vai tirar. Obrigado, Fernanda.
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