quarta-feira, 17 de abril de 2013

Mais uma página em BRANCO



EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Jorge Santos


Bolas, mais uma página em BRANCO, e agora? É do caraças. Toca a inventar uma personagem - branca, como a página. Mas também poderia ser negra, azul ou às pintinhas. No dia em que o milímetro de epiderme definir a pessoa pelo seu todo, as galinhas terão dentes, e pelo mesmo motivo: o da estupidez, pura e dura. Mas adiante. 
A minha personagem chamar-se-à Pedro
A minha personagem chamar-se-à Pedro. Tem um pequeno escritório de contabilidade, vive sozinho num apartamento normalíssimo. Aliás, toda a sua vida é absolutamente normal, tão normal que ele tem a impressão de não ter vida. Talvez seja essa a razão dele não conseguir ter um relacionamento mais estável: a sua insustentável normalidade de pessoa normal, heterossexual assumido, algo quadrado nas atitudes. Gosta de música dos anos 70 e 80, abomina o que é tocado nas discotecas e bares. Por essa e por outras, Pedro sente-se sozinho e tem tendências para a depressão. Até brinca com isso: “Mais deprimido do que eu, só mesmo a situação económica do país”, matuta ele, enquanto termina mais um modelo 22. Mas ainda mais adiante: Pedro está apaixonado. Descobriu há pouco tempo, e mudou completamente o seu mundo cinzento. A culpada chama-se Céu Vermelho. Não, não é brincadeira. 
Céu Vermelho
Ele está apaixonado por um perfil anónimo que habita no seu Facebook. Nunca viu sequer uma fotografia dela, mas todas as conversas que tiveram deu-lhe essa certeza, a certeza de ter conhecido a sua alma gémea. Não se trata apenas da concordância de gostos, mas também a concordância nos maus gostos, ainda mais importantes. Os dois gostavam das mesmas coisas, coisas essas que as outras pessoas pensavam não ter valor absolutamente nenhum. Foi com espanto, por exemplo, que Pedro descobriu que Céu Vermelho tinha, como ele próprio, um fascínio pelos filmes pornográficos do início dos anos 80. Nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse daquilo, mas Céu Vermelho gostava, e isso tinha feito o clique: Pedro passou o seu estado civil para SOLTEIRO, MAS APAIXONADO. 

Quando chegou a essa conclusão, passou a tentar, de todas as formas, encontrar-se com ela. Sabia que viviam na mesma cidade. Sabia que passavam pelos mesmos sítios. Mas ela não queria encontrar-se com ele. Continuava a mesma presença indefinida no seu Facebook. Se calhar, pensava ele, talvez fosse um fantasma. 
Fantasmas: almas gémeas, virtuais
A rede social estaria habitada por fantasmas: almas gémeas não corporizadas, virtuais. Comentários seguintes deram-lhe, no entanto, pistas do contrário. Céu Vermelho conhecia-o pessoalmente. Sabia os seus hábitos. Isso limitava o seu âmbito de procura: do mundo, passou à cidade onde vivia, depois delimitou a zona da cidade, as ruas, até que finalmente chegou à conclusão, certa e definitiva, de que costumava ir ao café onde tomava o pequeno-almoço todos os dias. A partir desse momento, passou a observar tudo e todos no café: clientes, empregadas, baixas, magras, gordas, obesas, altas. Todas eram escrutinadas, e, por um motivo ou outro, postas de lado. Havia no entanto uma empregada por quem ele tinha especial fascínio. Talvez fosse pela sua forma simples de ser, pela sua simpatia genuína. Mas havia um senão: ela namorava. Seria a sua alma gémea comprometida? Que desperdício de gemelaridade. Ela não dava pistas, mesmo assim, pelo que ele abandonou a procura.
        “Desisto”, escreveu ele no chat.
        “Desistes facilmente. Eu bem vejo que tu procuras. Mas não procuras no lugar certo”, foi a resposta, e ela não voltou a tocar no assunto.

     Não existe um lugar certo para se procurar aquilo que não se sabe que se procura. Entretanto, Pedro conversa cada vez mais com a empregada do café, quando esta está sozinha. É uma conversa estranha – ele a beberricar um café horrível (porque a simpatia da empregada era inversamente proporcional ao seu talento para tirar cafés), ela do outro lado do balcão a fazer coisa nenhuma, sempre em movimento, para que pareça estar a trabalhar à vista das câmaras que o patrão instalara. O assunto veio à baila quando ele se sentiu mais à vontade para falar dele: perguntou-lhe abertamente se ela era a pessoa que usava a alcunha de “Céu Vermelho” no Facebook. Ela disse que não. Nem tinha Facebook. “E o que lhe faz pensar que é uma mulher?”, perguntou ela. Ele reconheceu que ela tinha razão. A sua alma gémea, fantasma da Internet, ou o que quer que fosse, nunca se tinha assumido como mulher, nem muito menos como homem. Mas sabia que ela(e) ia àquele café. As conversas entre ele e a empregada do café continuaram, tornaram-se mais frequentes e mais profundas. Ela não era a empregada de café típica. Aluna de letras, tinha sido obrigada a sair da universidade por não poder pagar as propinas – mas mesmo assim conseguia manter o encanto e o bom-humor. Concordou em tentar descobrir quem era Céu Vermelho. O Pedro abanou a cabeça, olhou para ela e disse-lhe para não o fazer. Para quê procurar quem não queria ser encontrado, se o que ele queria estava à sua frente? 

 
Pseudo-epílogo

A procura do que está à nossa frente
Só muito mais tarde, já depois de morarem juntos, é que a empregada do café, a futura Sra. Pedro, lhe revelou a mentira. Céu Vermelho era ela, mas nunca acreditaria num homem que se apaixonasse por uma presença anónima numa rede social. Durante meses ela dera pistas do que sentia, mas ele não lhe prestava atenção. Esse Pedro de antigamente era bem burro, comentou o Pedro de agora, com a certeza de que, desta vez, seria feliz.

2 comentários:

  1. Uma boa peça de prosa. Assunto atual. Mensagem pedagógica.
    obrigada, Jorge.

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  2. Como é que duma página em branco se podem tirar tantas e tão variadas mensagens! A paixão, a ilusão, o engano, a busca, a procura e o longe, a distância. Vamos sempre longe e afinal, como diz o Jorge e muito bem, o que procuramos está aqui, junto a nós, à distância de um estalar de dedos ou de um sorriso meio velado. Obrigado Jorge pela partilha. Continuamos a querer contar consigo!

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