EVOLUIR agradece
ao autor o envio deste texto para publicação
Jorge
Santos
Bolas, mais uma página em
BRANCO, e agora? É do caraças. Toca a inventar uma personagem - branca, como a
página. Mas também poderia ser negra, azul ou às pintinhas. No dia em que o
milímetro de epiderme definir a pessoa pelo seu todo, as galinhas terão dentes,
e pelo mesmo motivo: o da estupidez, pura e dura. Mas adiante.
A minha personagem chamar-se-à Pedro |
A minha
personagem chamar-se-à Pedro. Tem um pequeno escritório de contabilidade, vive
sozinho num apartamento normalíssimo. Aliás, toda a sua vida é absolutamente
normal, tão normal que ele tem a impressão de não ter vida. Talvez seja essa a razão
dele não conseguir ter um relacionamento mais estável: a sua insustentável
normalidade de pessoa normal, heterossexual assumido, algo quadrado nas
atitudes. Gosta de música dos anos 70 e 80, abomina o que é tocado nas
discotecas e bares. Por essa e por outras, Pedro sente-se sozinho e tem
tendências para a depressão. Até brinca com isso: “Mais deprimido do que eu, só
mesmo a situação económica do país”, matuta ele, enquanto termina mais um
modelo 22. Mas ainda mais adiante: Pedro está apaixonado. Descobriu há pouco
tempo, e mudou completamente o seu mundo cinzento. A culpada chama-se Céu
Vermelho. Não, não é brincadeira.
Céu Vermelho |
Ele está apaixonado por um perfil anónimo que
habita no seu Facebook. Nunca viu sequer uma fotografia dela, mas todas as
conversas que tiveram deu-lhe essa certeza, a certeza de ter conhecido a sua
alma gémea. Não se trata apenas da concordância de gostos, mas também a
concordância nos maus gostos, ainda mais importantes. Os dois gostavam das
mesmas coisas, coisas essas que as outras pessoas pensavam não ter valor
absolutamente nenhum. Foi com espanto, por exemplo, que Pedro descobriu que Céu
Vermelho tinha, como ele próprio, um fascínio pelos filmes pornográficos do
início dos anos 80. Nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse daquilo, mas
Céu Vermelho gostava, e isso tinha feito o clique: Pedro passou o seu estado
civil para SOLTEIRO, MAS APAIXONADO.
Quando chegou a essa conclusão, passou a
tentar, de todas as formas, encontrar-se com ela. Sabia que viviam na mesma
cidade. Sabia que passavam pelos mesmos sítios. Mas ela não queria encontrar-se
com ele. Continuava a mesma presença indefinida no seu Facebook. Se calhar,
pensava ele, talvez fosse um fantasma.
Fantasmas: almas gémeas, virtuais |
A rede social estaria habitada por
fantasmas: almas gémeas não corporizadas, virtuais. Comentários seguintes
deram-lhe, no entanto, pistas do contrário. Céu Vermelho conhecia-o
pessoalmente. Sabia os seus hábitos. Isso limitava o seu âmbito de procura: do
mundo, passou à cidade onde vivia, depois delimitou a zona da cidade, as ruas,
até que finalmente chegou à conclusão, certa e definitiva, de que costumava ir
ao café onde tomava o pequeno-almoço todos os dias. A partir desse momento,
passou a observar tudo e todos no café: clientes, empregadas, baixas, magras,
gordas, obesas, altas. Todas eram escrutinadas, e, por um motivo ou outro,
postas de lado. Havia no entanto uma empregada por quem ele tinha especial
fascínio. Talvez fosse pela sua forma simples de ser, pela sua simpatia
genuína. Mas havia um senão: ela namorava. Seria a sua alma gémea comprometida?
Que desperdício de gemelaridade. Ela não dava pistas, mesmo assim, pelo que ele
abandonou a procura.
“Desisto”, escreveu ele no chat.
“Desistes facilmente. Eu bem vejo que
tu procuras. Mas não procuras no lugar certo”, foi a resposta, e ela não voltou
a tocar no assunto.
Não existe um lugar certo para se
procurar aquilo que não se sabe que se procura. Entretanto, Pedro conversa cada
vez mais com a empregada do café, quando esta está sozinha. É uma conversa
estranha – ele a beberricar um café horrível (porque a simpatia da empregada
era inversamente proporcional ao seu talento para tirar cafés), ela do outro
lado do balcão a fazer coisa nenhuma, sempre em movimento, para que pareça
estar a trabalhar à vista das câmaras que o patrão instalara. O assunto veio à
baila quando ele se sentiu mais à vontade para falar dele: perguntou-lhe
abertamente se ela era a pessoa que usava a alcunha de “Céu Vermelho” no
Facebook. Ela disse que não. Nem tinha Facebook. “E o que lhe faz pensar que é
uma mulher?”, perguntou ela. Ele reconheceu que ela tinha razão. A sua alma
gémea, fantasma da Internet, ou o que quer que fosse, nunca se tinha assumido
como mulher, nem muito menos como homem. Mas sabia que ela(e) ia àquele café.
As conversas entre ele e a empregada do café continuaram, tornaram-se mais
frequentes e mais profundas. Ela não era a empregada de café típica. Aluna de
letras, tinha sido obrigada a sair da universidade por não poder pagar as
propinas – mas mesmo assim conseguia manter o encanto e o bom-humor. Concordou
em tentar descobrir quem era Céu Vermelho. O Pedro abanou a cabeça, olhou para
ela e disse-lhe para não o fazer. Para quê procurar quem não queria ser
encontrado, se o que ele queria estava à sua frente?
Pseudo-epílogo
Só muito mais tarde, já
depois de morarem juntos, é que a empregada do café, a futura Sra. Pedro, lhe
revelou a mentira. Céu Vermelho era ela, mas nunca acreditaria num homem que se
apaixonasse por uma presença anónima numa rede social. Durante meses ela dera
pistas do que sentia, mas ele não lhe prestava atenção. Esse Pedro de
antigamente era bem burro, comentou o Pedro de agora, com a certeza de que,
desta vez, seria feliz.
A procura do que está à nossa frente |
Uma boa peça de prosa. Assunto atual. Mensagem pedagógica.
ResponderEliminarobrigada, Jorge.
Como é que duma página em branco se podem tirar tantas e tão variadas mensagens! A paixão, a ilusão, o engano, a busca, a procura e o longe, a distância. Vamos sempre longe e afinal, como diz o Jorge e muito bem, o que procuramos está aqui, junto a nós, à distância de um estalar de dedos ou de um sorriso meio velado. Obrigado Jorge pela partilha. Continuamos a querer contar consigo!
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