EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação
Jorge Santos
Um boneco feito de papel |
Ele colocou o boneco feito de papel em cima do banco de jardim.
Estava sentado, olhando para o pequeno lago. Depois, José deu dois passos para
trás para admirar melhor a sua obra. Satisfeito, continuou o seu passeio.
Mais à frente, pegou numa folha do seu caderno de Origamis
(faltavam poucas, não tinha dinheiro para comprar mais), dobrou-a com toda a
paciência habitual de quem tinha esse vício desde adolescente e colocou o
resultado final - uma flor de papel - no chão.
Estava a semear Origamis pelo jardim público, como se fosse o
novelo que Teseu desenrolou para conseguir saber o caminho de saída do
labirinto do Minotauro – mas José desconhecia a lenda grega: sentira
necessidade de deixar o seu rasto no jardim (ou no mundo?), por alguma razão estranha.
Aquele seu hábito dava com a mulher em doida: por toda a casa tinha pequenas
miniaturas de papel dobrado. Desde que a empresa o tinha dispensado, não fazia
outra coisa. Estava tantos anos num emprego de que não gostava, mas quando se
viu sem ele, ficou admirado com a falta que sentia. Antes um emprego de que não
gostava, do que nenhum emprego para não gostar.
Andou mais uns passos e tirou mais uma folha. Dobrou-a para
formar uma criança pequena. Depois colocou-a no chão. Representava o filho
pequeno, a quem José ensinara a fazer pequenas dobras, para alegria do petiz
(que no entanto preferia as longas horas a torrar o seu pequeno cérebro à
frente de uma televisão – José ficava louco por isto).
Atirou para o lixo o caderno, agora vazio de folhas, e foi-se
sentar no banco de jardim. Tirou um papel do bolso, uma carta que indicava o
fim do pagamento do subsídio de desemprego. Releu-a pela décima vez: precisava
de uma luz para voltar a ter esperança. Tinha piada que um papel lhe tivesse
terminado a vida, quando tinha passado a vida a dobrar papéis.
Uma menina ficou à sua frente, magra, ar sorridente. Nas mãos
tinha os Origamis que José tinha espalhado por todo o jardim.
“Gostas?”, perguntou ele.
Ela disse que sim, com a cabeça. Uma mulher aproximou-se, mas
ficou a alguma distância, como se não quisesse interromper a nossa conversa.
José cumprimentou-a com um ligeiro acenar de cabeça, depois voltou a sua
atenção para a
menina.
“Queres que te ensine a fazer um?”, perguntou. A menina não disse nada, mas o
seu olhar faiscou e o sorriso abriu-se ainda mais. José pegou no único papel
que tinha, a comunicação do fim do seu Subsídio de Desemprego, e ensinou a
menina a fazer as dobras de um pato, a figura mais simples que sabia fazer. A
menina tentou uma e outra vez, até conseguir fazer um pato, mais ou menos
convincente.
“Está muito bem feito. Queres que te ensine a fazer outro?”
A menina disse “Sim”, de uma forma quase inaudível. Isso causou alguma agitação
na mulher, que se aproximou ligeiramente. José desfez a figura do pato e
ensinou a menina a fazer um sapo. Depois ela foi brincar com o sapo de papel,
saltando por todo o jardim, sem nunca se afastar da mulher, que se aproximou de
José.
“O que fez foi fantástico”, disse-lhe ela.
“Não foi nada. Qualquer um sabe dobrar papel”
Ela riu-se.
“Não. Vou explicar. Esta menina não fala há um ano, desde que perdeu os pais
num acidente de viação. E tenho outras crianças na mesma situação.”, disse ela,
explicando depois que era terapeuta e que fazia a reabilitação de crianças
traumatizadas.
“Posso fazer-lhe uma proposta de trabalho?”, disse ela. José disse que sim, com
um sorriso aberto, estranhamente parecido com os Origamis que fazia: tinha
encontrado a sua Luz.
Evoluir quer saudar a presença de um novo autor: Jorge Santos que nos enviou um texto pleno de actualidade nos tempos que vivemos. O desemprego, o fenómeno mais gritante dos nossos dias, não pode passar-nos ao lado! Mas não deixa de ser relevante que a aposta do autor passe pela educação e nomeadamente a educação especial. Ficamos à espera de novos contributos
ResponderEliminarAfinal, há vícios bons.Com tão poucos origamis, dois "milagres"!
ResponderEliminarA ciência e a técnica, sem uma dimensão de sonho, desumanizam a vida!
ResponderEliminarE é a "dialogar" que nos vamos dizendo.
Ficamos à espera que alguém veja numa palavra um origami, para continuarmos o diálogo.
Texto revelador duma grande sensibilidade - literária e humana. Muita criatividade e ternura. Obrigada, Jorge.
ResponderEliminarEu penso e acredito que o que nos acontece, não é por acaso.
ResponderEliminarEste texto do Jorge é duma sensibilidade incrível.
Pois faz-nos pensar um pouco; um objeto tão pequeno, com uma dimensão tão grande.
Obrigada, Jorge e espero mais textos.
Ás vezes basta uma flor... era o que me apetecia dizer sobre este texto! O sorriso de uma criança, um garfo que se leva pela primeira vez à boca, uma letra que se aprende... anos de trabalho do educador que persiste, que persiste. E no dia em que uma passo se concretiza é uma alegria imensa e uma vitória com um valor inexplicável. Mais ainda quando trabalhamos com crianças diferentes porque especiais.
ResponderEliminarGostei imenso, Jorge, até porque me trouxe à memória muitas vitórias pequeninas de que me souberam sempre muito bem.