Maria
Jorge
Acordei,
como habitualmente, às sete da manhã. Podia ficar mais um pouco na cama, mas a
minha perna e os meus pés inchados não me deixavam ter a agilidade de há uns
meses atrás. A minha barriga crescia a olhos vistos e tudo tinha de ser feito com
calma, nada de stresse, tinha-me recomendado o médico. Tudo era programado e
pensado: sentar-me um pouco na cama, como que a mentalizar-me das tarefas
seguintes. Abrir as persianas e a janela do meu quarto para respirar um pouco,
ir à casa de banho, ligar a telefonia e preparar o meu pequeno-almoço. A última
tarefa matinal seria tomar banho, vestir-me e ir apanhar os transportes para ir
trabalhar. Hoje a refeição seria só para mim, o meu marido tinha ficado de
prevenção no quartel. Pelo sol a querer espreitar pelas janelas adivinhava-se
uma manhã primaveril.
Entretida
a fazer a minha torrada, ouvi um pedido à população. Que seria aquilo? Pus o
som mais alto. Para não sairmos de casa? Porquê? Que se estava a passar?
Estaria a ouvir bem? E como ia trabalhar? Os apelos eram incessantes para não
sairmos de casa… Apesar de morar pertíssimo dos meus sogros não os queria
acordar com o que estava ouvindo… E a minha vizinha do esquerdo? Mas ainda era
tão cedo… Oh meus Deus o que ia fazer? Não podia entrar em contacto com o meu
marido…
As horas iam passando... |
As
horas foram passando e eu com um dilema para decifrar. Por um lado, devia ir
trabalhar, por outro avisavam-nos para não sairmos de casa, para estarmos
calmos. Absorta nestes pensamentos, batem-me à porta. Era a minha vizinha do
esquerdo que, tal como eu, também estava a ouvir as mesmas notícias,
aconselhando-me a não sair de casa “naquele estado”.
Decidi
ficar em casa. Liguei a televisão. Programas de entretenimento não havia,
filmes também não, notícias tão pouco, apenas com intervalos curtos, o mesmo
comunicado à população.
Ao
longo do dia fomos vendo e ouvindo notícias mais esclarecedoras. O meu
nervosismo foi crescendo de tom, do meu marido nada sabia, devia estar muito
ocupado a transmitir as notícias para as ditas “nossas províncias
ultramarinas”.
Toca
o telefone. Finalmente era o meu marido.
-
São, estás bem?
-
Estou, então e tu?
-
Está tudo bem, não te preocupes. Ainda não sei quando vou a casa, mas fica
descansada, vai para a casa dos meus pais e fica lá com eles.
-
Não, não é preciso, estou bem.
-
Escuta, não me posso demorar. Beijinhos. Logo que possa dou mais notícias.
O povo saiu à rua |
- Está
bem. Beijinhos.
À
medida que as notícias iam aparecendo, ficávamos cada vez mais esclarecidos.
Tinha havido um golpe de estado militar. Comandadas pelo capitão Salgueiro
Maia, as tropas ocuparam o Terreiro do Paço e, logo a seguir, cercaram o
Quartel do Carmo, onde se encontrava Marcelo Caetano e alguns ministros.
A
nível nacional, na madrugada da véspera, os capitães estavam de ouvido colado à
rádio. Tinham de ouvir duas canções. A primeira seria “E depois do adeus”,
cantada por Paulo de Carvalho. A seguir deviam ouvir “Grândola vila morena” de
Zeca Afonso. Eram a senha e contrassenha para saírem à rua comandando as suas
tropas. E se tudo foi pensado ao pormenor, a sua execução foi perfeita.
Um cravo num cano duma arma |
Com
uma enorme euforia e completamente descontrolado, mas com um grande sentido de
responsabilidade, espontaneamente, em cada cidade, em cada lugar, o povo saiu à
rua apoiando este ato heroico. Os militares, apesar de estarem devidamente
equipados com material de guerra, não tiveram necessidade de o utilizar. As
armas não foram precisas e, nos locais donde, na eventualidade, pudessem sair
balas, eram colocados cravos vermelhos, oferecidos pela população.
Fiquei
colada à televisão, um turbilhão de sentimentos tinha-se apoderado de mim. Como
seria este desfecho? As notícias eram tranquilizadoras, mas… seria mesmo isso?
Também eu queria sair, mas o meu estado e com tão poucas notícias do meu marido
não me permitiam fazê-lo.
No
dia seguinte, pela manhã, um toque na minha campainha. Quem seria?
–
Bom dia minha senhora.
Com
uma postura correta, vi dois homens, ainda muito novos, devidamente fardados.
Identificaram-se. Eram oficiais do “Ralum”.
Apesar de o meu marido pertencer ao Quartel da Graça, prestava ali serviço num
pavilhão onde eram filtradas as transmissões internacionais.
–
Bom dia.
–
Estamos cá, para ver se a senhora precisa de alguma coisa e, se quiser, podemos
levá-la a ver o seu marido. Ele ainda não pode sair e atendendo ao seu estado…
O nosso filho vai nascer num país livre |
–
Vou, vou. Preciso só de um segundo.
–
Esperamos o tempo que for necessário.
Pelo
caminho, fomos conversando. Finalmente, quarenta e oito anos de governação
fascista tinham chegado ao fim. Iríamos ser um país democrático, onde cada
cidadão se pudesse expressar livremente.
A
sala era enorme, uma nuvem de fumo de tabaco inundava o espaço, uma grande
algazarra, cada um procurava falar mais alto para se fazer ouvir. Todos os
olhares se direcionaram para mim. Afinal não era todos os dias que uma mulher
ocupava um espaço apenas de homens.
O
meu marido aproximou-se de mim e, abraçando-me com uma grande ternura,
disse-me:
– São, finalmente o nosso
filho vai nascer num país livre (como ainda não havia ecografias, não sabíamos
que eram gémeos).
“Uma
realidade que se tornou apenas e tão só num sonho”.
Viveste intensamente esse momento. Muita gente nem se apercebeu do que estava a acontecer.A liberdade que não conhecíamos e que foi implantada deve ser vivida com serenidade e alegria.
ResponderEliminarIsso é que foi um dia emocionante, Maria! Quando é que o nosso país voltará a sentir alegria e esperança no futuro?
ResponderEliminarEstar no centro dos acontecimentos fez-nos viver este dia de uma forma completamente diferente. Eu também estava em Lisboa, Maria e recordo com muita clareza a insegurança, o medo e depois a explosão de alegria que assolou as pessoas e as levou á rua. As praças encheram-se de gente e de gente que se abraçava e sorria sem se conhecer e chorava a rir: foi um longo caminho de obscurantismo e repressão que se quebrou naquele dia e todos desejávamos nunca mais voltar a olhar para trás. Esperava este teu testemunho porque o sabia pleno de autenticidade: obrigado, Maria, por o teres partilhado connosco.
ResponderEliminarAcho lindo a forma como pais e futuros pais projetaram nos filhos a felicidade da liberdade.É um sentimento que tive o privilégio de viver, por isso e por tudo,apesar dos acidentes de percurso,custa muito termos hoje de nos "contentar" com o RECORDAR... Maria, um destes dias conversamos, o mundo é tão pequeno!...E, já agora, parabéns à mãe.
ResponderEliminarEu já sou 25 de Abril + 2 (nasci em 76) mas reconheço nas suas palavras a emoção, o medo e a alegria que tão bem identifico das histórias que sempre ouvi dos meus pais.
ResponderEliminarEsses dias poderiam ter sido aterradores, mas devem ter sido fantásticos!!!
Pena ter acabado... vamos fazer outro?!