Conceição
Cação
A agitação era crescente. Em
frente à Faculdade de Letras, juntavam-se grupos de estudantes. Reunião ou,
simplesmente, provocação? Solidarizando-nos com eles, sentávamo-nos na
escadaria. Por pouco tempo! Vinda do nada, a polícia perseguia os manifestantes
pelas escadas Monumentais e pelo Quebra-Costas. A nós, que fingíamos pacatamente
apanhar sol, ordenavam-nos que entrássemos
para a faculdade. Na cantina da Associação Académica, passou a estar sempre a
polícia: primeiro só um agente e depois uns cinco ou seis. As vozes que ousavam
levantar-se no meio do refeitório eram rapidamente neutralizadas. Quando o
número era mais elevado ou os estudantes mais rebeldes vinha a polícia de
intervenção. Ai de quem tentasse insistir na provocação!
Era abril. Pairava no ar um
cheiro a mistério; dizia-se, à boca pequena, que alguma coisa estava para
acontecer. E chegou o dia 25. Enquanto me preparava para sair, apercebi-me de
que a rádio só transmitia música clássica. Que estranho! Saí. Ao passar junto
da redação do Diário de Coimbra, vi um comunicado: “Uma junta militar…” Bem,
era ainda pouca informação, mas dava para perceber que a mudança estava em
marcha. Nos espaços adjacentes às faculdades, iam-se concentrando centenas de
estudantes, com indisfarçável expectativa e ansiedade.
Começava-se a festejar |
Aos poucos, foram chegando
notícias do êxito da revolução. Começava-se a festejar. Como se previa não
haver aulas no dia seguinte, fui para casa. A minha mãe, a cuidar da minha avó,
doente em fase terminal, precisava de todo o apoio que lhe pudesse dispensar. À
noite, o comunicado do MFA: Aqui Posto de Comando do Movimento das
Forças Armadas… numa voz teatral, de comando, punha toda a gente em sentido
e a mim a tremer de emoção.
A vida académica foi
altamente perturbada: ávidos de mudança, e, em alguns casos desejando o
facilitismo, os estudantes promoviam constantes reuniões onde se digladiavam
grupos adversários e se esgrimiam argumentos – para uns (os mais cábulas) a
passagem administrativa era a solução; outros não abdicavam das suas
frequências e exames. No meio daquela indefinição, eu, no terceiro ano,
pensava:
Mas o que é que eu vou fazer com o Ricardo III? |
“Mas o que é que eu vou fazer com o Ricardo III? Já lhe dediquei
tantas horas!” A verdade é que aquela confusão me deu volta à cabeça e quase
todas as minhas notas baixaram. Pudera! Com todas as contestações e adiamentos,
fui chamada à pressa para um exame a poucos dias do meu casamento – 10 de
agosto.
Em todos os setores da vida
do país foram cometidos excessos. O povo, pouco politizado e oprimido durante
tantas décadas, ficou deslumbrado com a liberdade acabada de conquistar e teve
alguma dificuldade em gerir o entusiasmo, em conter-se.
Enfim, tempo de euforia,
tempo de esperança… Quem nos ajuda a reencontrá-la?
A resposta é só uma: nós, exigindo aos governantes serviço público, e não serviço privado; nós, exigindo transparência; nós, procurando quem seja a nossa voz; nós, refletindo sobre que armas usam sobre uns, para silenciar todos; NÓS, dando nós democráticos que sustenham a LIBERDADE DE SERMOS PESSOAS DIGNAS E POVO SOBERANO.
ResponderEliminarRealmente foram momentos de ansiedade e de euforia, ao mesmo tempo. A democracia chegou e não mais vai embora.Como sempre uma descrição,desses momentos, muito bem descrita.
ResponderEliminar"Em todos os setores da vida do país foram cometidos excessos" Hoje compreendo melhor os que defenderam e possam justifica-los, como consequência das marcas que 48 anos de obscurantismo possam ter deixado nas pessoas. É evidente, que sob esta perspetiva não têm lugar quaisquer tipo de oportunismos.E até que ponto é que a evolução política de um país que só conhece a democracia há 39 anos (tempo insignificante do ponto de vista histórico)não pode ter ainda como justificação o mesmo argumento e a falta de mais experiência?
ResponderEliminarBoa observação, Zé Luís. Propositadamente, omiti os oportunismos, e havia tanto a dizer sobre isso...Tanta injustiça cometida, em nome da democracia. Tantos "progressistas" de última hora...
EliminarE não podemos atribuir a situação que vivemos à falta de experiência. Eu até concederia alguma dose de perdão à incompetência, mas com líderes desonestos, a minha tolerância é zero.
Há memórias que são inesquecíveis: as recordações que nos marcam ficam para sempre gravadas no mais recôndito do nosso íntimo. As minhas vão um pouquinho mais atrás porque nessa época já havia terminado o meu curso. Recordo-me das reuniões na cantina da universidade e da entrada da polícia de bastão em punho, da guarda a cavalo a espezinhar quem à sua frente se avistasse, da vigília na Capela do Rato… e fico sempre com uma certa nostalgia! Naquele tempo havia força para vencer e vontade de recomeçar todos os dias…
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