José
Luís Vaz
Cidadão português, vinte e
três anos, casado, pai de uma pequenina de quase nove mesitos, dava o seu
contributo patriótico ao serviço das forças armadas, no Regimento de cavalaria
7, separado por uma ténue parede do Palácio de Belém, residência do presidente
da república. Estávamos a 25 de abril de 1974. De acordo, com os regulamentos,
só tinha que dormir no quartel, quando a escala o obrigava a permanecer 24
horas de serviço. Dava-se ao luxo de poder fazer uma vida, dita normal, entrando
às oito ou nove da manhã e quando eram 17, 17.30, lá ia ele para casa dos
sogros, uma verdadeira pousada, e aí, tinha o privilégio de desfrutar da
vivência com a sua mulher e filha. Eram 4 da manhã e o telefone não parava de
tocar. Acordado pela mulher, levantou-se, a cambalear de sono, desceu a escada
e lá foi atender.
— Estou?
— É da casa do furriel
miliciano Vaz?
— Sim, ó pá, o que é que
aconteceu, para me estarem a telefonar a uma hora destas?
Quase a gaguejar, o soldado,
que estava incumbido de avisar todos, e eram muitos, os que dormiam fora da
unidade, dizia que, urgentemente, se tinha de apresentar no quartel. Em
simultâneo era a campainha da porta de casa que não parava. Agora, já bem
acordado, foi direito à janela, que de imediato abriu, olhou para o passeio
rente à porta de entrada do prédio e vê um furriel miliciano, companheiro das
lides militares, a quem perguntou:
— Mas o que é isto, Nunes,
está tudo maluco, então não percebes que com esta barulheira toda, me acordas
as pessoas?
— Ó pá é urgente, vem
depressa, estamos à tua espera.
Nesta altura, começa a achar
tudo muito estranho, porque, um pouco mais à frente do furriel estava
estacionado um jipe militar com dois soldados de espingarda metralhadora, com
um ar de poucos amigos e o dito Nunes, igualmente armado com uma pistola –
metralhadora, não parava de insistir que era urgente, que era urgente e ia
olhando para a um e outro lado da rua.
— Ouve lá Nunes, mas afinal,
o que é que se passa, tu não sabes que eu me desloco no meu carro? Está tudo
maluco, então alguma vez me vieram buscar de jipe?
O 1º de maio começava mais cedo |
— Ó pá, mas vais no teu
carro? Se vais, pronto, vai depressa, que nós vamos buscar outros. Em datas consideradas
pelo regime como perigosas, era certo e sabido que o Regimento de Cavalaria 7
entrava de prevenção, querendo isto dizer que ninguém se podia ausentar da
unidade e, por conseguinte, era isso que se passava, aproximava-se o primeiro
de maio e pronto, desta vez, era com a antecedência de uma semana, o que, de
facto, nunca tinha acontecido. Não havia nada a fazer, o Zé Luís subiu a
escada, já a bufar, e disse à mulher que, para aquela cambada, este ano o
primeiro de maio, começava cedo e, rapidamente, meteu num saco de viagem, que
utilizava nestas ocasiões, a roupa que iria necessitar porque ia entrar em
clausura. Entretanto, ficou a pairar no ar daquele quarto algo, que a dois era
notado, de que qualquer coisa não estaria bem. Nunca ninguém lá tinha vindo a
casa aquando das outras prevenções, telefonavam, normalmente a horas, bem
diferentes, e desta vez vinham de jipe, com todo o pessoal armado até aos
dentes?
Ele decidiu assumir, numa atitude de muito convencimento, que não havia
mais nada a pensar, este ano era com uma semana de antecedência e pronto, pois
percebia que a mulher estava a ficar preocupada e essa era a melhor forma de
dar a entender que a ele nada mais o preocupava, a não ser a separação
obrigatória para entrar no “convento”. Uns beijinhos de despedida e lá vai ele.
A viagem era curta, mas nem por isso deixaram de lhe passar pela cabeça algumas
hipóteses que o preocupariam imenso se fossem reais. Era irmão de um desertor,
tinha um amigo do casal em Caxias e, aos fins de semana, muitas vezes iam acompanhar
a amiga — ela iria nem que tivesse de ir a pé — para visitar o marido. O regime
era silencioso e qualquer pacato cidadão podia ver-se incomodado, quando menos
esperava. As marcas da deserção do irmão eram evidentes e a qualquer momento
poderiam surgir provocações, insinuações ou outras coisas piores que ninguém
podia perspectivar. Estacionou o carro, já na Calçada da Ajuda e não notou nada
de especial, a não ser que o portão do quartel estava fechado, conforme aliás,
era prática corrente quando de prevenção. Bateu ao portão e o soldado de
serviço, de imediato, abriu um pequenino postigo, para poder ver quem era.
— Então pá, abre lá isso, o
que é que se passa?
— Preciso primeiro ver a sua
identificação.
— Estás a passar-te ou quê?
Tu não vês, estou fardado, não me conheces ou estás a brincar comigo?
— Meu furriel, são as ordens
que recebi do nosso primeiro-sargento, tenho que ver a sua identificação.
Não havia memória de tal
procedimento, o que fazia pensar que desta vez, a “guerra” era mesmo a sério. Exibida
a identificação, a porta foi de imediato aberta e logo de seguida fechada.
— Então, agora já me
conheces? Anda, fecha rápido que vem lá o papão.
A respirar fundo e
demonstrando algum alívio confidenciou ao furriel que andava tropa na rua e que
o 1º esquadrão, o do furriel, também já lá andava. Entretanto, tinha recebido
ordens muito rígidas sobre o procedimento a ter com quem pretendesse entrar na
unidade. Tudo estava a ser diferente desta vez, mas havia que encontrar alguém
com quem recolher informações mais credíveis. Logo à frente, o gabinete do
oficial de dia, luz acesa, e meia dúzia de pessoas lá dentro. Estava de serviço
um aspirante miliciano e isso fazia a diferença. Àquelas horas da madrugada só
ali estariam os que estavam de serviço e um ou outro que também já tivesse
entrado na unidade porque, em cavalaria, não havia misturas, furriéis e
sargentos para um lado e oficiais para outro. Os soldados, esses então, eram
uns seres minúsculos que tinham que se resumir à sua insignificância. Eram as
regras militares que ali funcionavam implacavelmente. Ao empurrar a porta para
entrar quando, naturalmente, ia para dar os bons dias, todos, com rostos
apreensivos a uma voz diziam:
— Xiu, xiu, pouco barulho!
Estavam debruçados sobre um
rádio que o furriel acabado de chegar também, automaticamente, começou a ouvir.
Aqui, Movimento das Forças Armadas |
“Aqui, Movimento das Forças
Armadas, …. Solicita-se, a melhor compreensão da população em geral para que se
mantenha em suas casas, de forma a não se verem em situações complicadas e
facilitarem as operações em curso…” Agora dava mesmo para acreditar que algo de
muito estranho se estava a passar, mas como não podia falar, só a troca de
alguns olhares pretendiam dizer aquilo que era impossível de entender. De
seguida, uma música, tipo militar e aí deu lugar à pergunta inevitável.
— Por favor, digam-me o que
se passa. Não sei nada e para entrar nesta porcaria até o cartão tive que
mostrar à sentinela. Isto, para não falar no Nunes que foi armado em pistoleiro
tocar-me à porta de casa.
— O quê, o Nunes também foi
à tua casa? O gaijo ficou à rasca quando lhe deram ordem para ir buscar a malta.
— Ó pá, deixa-te de paleio e
contem-me o que se passa. É verdade que o 1º esquadrão saiu para o exterior?
Claro que era verdade. Foi
com destino ao Terreiro do Paço, comandado pelo 2º comandante Ferrand de
Almeida. Sabiam que havia mais tropa na rua, que uns indivíduos à paisana
tinham tentado agarrar o major Pato Anselmo, quando vinha a entrar na unidade e,
de resto, muita expectativa, porque muito se desejava saber, mas na rádio
repetiam o comunicado constantemente e, pelo meio, passavam a dita música, em
jeito de hino. Era madrugada, muito cedo, não havia telemóveis, e se alguma coisita
iam sabendo, era pelos telefonemas recebidos.
O tempo custava a passar, ninguém
falava abertamente, vivia-se em ditadura, mas muitos deles sonhavam, em
silêncio, sem saber bem com quê. Chegou o Lima, um outro furriel, amigo do Vaz,
que contou ter visto movimentações de muitas viaturas militares e
manifestava-se muito assustado, perante a hipótese de uma confrontação entre
pessoas com a mesma farda. As dicas, os ditos, o disse que disse, passaram a
ser tantos e tão contraditórios que o mais razoável era tentar manter a calma.
Sabia-se que o comandante, homem da confiança do regime, coronel Romeiras
Júnior, permanecia fechado no seu gabinete a fazer chamadas telefónicas
ininterruptas, sem sequer se preocupar em informar o pessoal. Preocupado e sem
novidades, o furriel Vaz decidiu telefonar para casa.
Fechou-se numa espécie de
cabine telefónica que havia no bar de sargentos e furriéis e ligou.
Só queria dar noticias |
— Tina, sou eu.
— Onde estás, tás bem?
— Só te queria dar notícias,
estou bem, estou no quartel.
— Mas, estão a dizer na
rádio, para as pessoas se manterem em casa porque, na rua, há movimentações
militares?
— Estou a ver que também
sabes o que eu sei, que é pouco. Posso dizer-te que quando entrei na unidade,
já tinham saído dois esquadrões, sendo um deles aquele a que pertenço. Olha
mulher, não sei mesmo o que se passa, mas cheira-me a algo muito sério.
— Então, e não houve
problemas por tu não ires com o teu esquadrão?
— Não, muitos ainda não
tínhamos chegado, mas, segundo me contaram, a saída foi uma azáfama. Consta
aqui que o 2º comandante que foi a liderar os dois esquadrões ia muitíssimo
nervoso.
— Tem cuidado contigo e dá
notícias quando souberes alguma coisa. Um beijinho.
— Outro para ti, xau.
E a manhã, que bem comprida
estava a ser, foi rematada com um almoço em que, pelas diversas mesas, se
tinham conversas mais ou menos discretas, sem que ninguém arriscasse
prognósticos. De um momento para o outro, alguém, alto e bom som, comunicou:
Na tropa não se fazem perguntas |
Todos os furriéis, do reconhecimento e carros de combate, se deveriam deslocar
para as respetivas viaturas, porque havia necessidade de formar uma coluna que
fosse levar o almoço, ao Terreiro do Paço, aos que lá se encontravam. O mesmo
acontecera nas messes de oficiais e soldados e não tinha passado um quarto de
hora, tudo estava pronto a partir para a acção solidária e humanitária de levar
comer a quem tinha fome. A comandar tudo aquilo, o comandante do regimento de
cavalaria 7, o que, manifestamente, era estranho, mas na tropa, pelo menos
naquele tempo, não havia perguntas. Chegados ao Cais de Sodré, em vez de
seguirem em frente, na direcção dos esfomeados, tomaram a direcção da rua do
alecrim, indo parar ao largo de Camões. Aqui, o estado de espírito era já bem
outro se bem que de muita espectativa e de algum receio, para os mais
responsáveis. O espectáculo tinha começado no início da rua do alecrim.
Viva a liberdade |
Populares, muitos populares, à volta das viaturas, delirantes, de olhos
brilhantes, alguns deixando cair uma lágrima, gritavam com quanta força tinham:
“Viva a liberdade”, “morte ao fascismo”, “o povo unido jamais será vencido”. E,
em cima das viaturas, jovens com sangue na guelra, nada podendo fazer,
assistiam a tudo aquilo, percebendo agora o mais importante: a ditadura tremia,
seria verdade, o que iria acontecer? Entretanto continuavam sob o comando de um
homem fiel ao regime. Ali permaneceram, horas e ninguém informava ninguém. Em
determinada altura, o comandante mandou a coluna descer novamente a rua do
alecrim e parecia credível a ideia de regresso ao quartel, mas não, passou a
dirigir-se para Monsanto e, segundo notícias da rádio, com a intenção de atacar
o regimento de comunicações, lá localizado. Na chaimite onde ia o furriel Vaz,
ia também o aspirante Gaivão. Ambos sonhavam com o fim da aventura, começaram a
perceber que quatro jovens, vestidos à paisana, dentro de um automóvel, seguiam
atrás da coluna, ultrapassando-a às vezes, numa atitude vigilante. Quem seriam?
Seriam militares pertencentes ao apregoado Movimento das Forças Armadas? E
muito baixinho dizia o Gaivão:
— Vaz, será mesmo verdade,
vamos ser livres?
— Fala baixo. Eu só gostava
de saber o que é que aquela prenda quer fazer, quais serão as intenções dele?
Referia-se ao comandante que, decididamente, ia sozinho, imbuído nos seus
galões. De repente, já em plena serra de Monsanto, tudo para. No carro de
combate onde seguia o comando viam-se dois soldados a espreitar os depósitos de
combustível. O que estaria a acontecer? A melhor prenda que no momento se podia
ter. Um dos depósitos estava quase vazio, o que era extraordinariamente
perigoso. Toda a coluna passa então a dirigir-se para o quartel, ali próximo.
Crianças e cravos... |
— Vaz, se nos apanhamos
dentro da unidade, já não saímos, que me dizes?
— Mas estão a dizer que a
ideia do gaijo é ir atestar. Lá veremos. Temos que ver o que se passa lá
dentro. Nada de atitudes individuais. Sair da unidade será uma loucura, agora
que isto parece estar no papo. Vamos ver, vamos ver…
A ansiedade atingia uma dimensão
difícil de explicar, própria de momentos de altíssima tensão. Estes rapazes,
comandados por um louco que ainda se não tinha apercebido que já não tinha ninguém
do seu lado, nem sequer podiam tentar fosse o que fosse para travar a sua
cegueira. Entraram na unidade. Foi a loucura. Todos os que nela permaneciam
abordavam os recém-chegados dizendo-lhes que o fascismo tinha acabado e que
daquela unidade mais ninguém sairia. Assim foi.
— Estou, Tina, finalmente,
mulher, somos livres!
— Estás bem, só agora me dás
notícias?
— Entramos agora, mas
ninguém mais sairá daqui, depois vou contar-te tudo, o mais importante, é que a
nossa filha vai viver em liberdade.
— Que bom, que bom… Então
não te envergonhas de teres andado a apoiar o regime até às sete horas da
tarde? Segundo estou a ouvir nas notícias, vocês são os únicos resistentes.
— O quê, que história é
essa?
— Depois te contarei, foi
uma peta do comandante.
Ó Zé Luís isso é que foi uma grande peta que o vosso comandante vos pregou... Gostei muito desta descrição do movimento do 25 de Abril contada por uma pessoa que o viveu intensamente. A descrição dos acontecimentos tão detalhada.
ResponderEliminarMas que maravilha Zé Luis. Até parece que foi ontem de tão presente estar nas nossas memórias todos os acontecimentos vividos na altura. Agora compreendo o teu comentário ao meu texto. Na noite, o Eduardo Jorge, também ele furriel miliciano, e sendo a patente mais alta que estava de serviço, tinha instruções para se visse algum movimento estranho e fora do normal, que abrisse os portões e deixassae entrar os carros militares. Como nós vivemos ainda estes momentos... e, para espanto meu, vejo na TV os jovens dizerem que Marcelo Caetano foi um capitão de Abril e foi ele o mentor do movimento. Onde estavam os pais destes meninos no 25 de Abril? Há Deus? Valha-me Deus...
ResponderEliminarAgora estava aqui a noite toda a falar do 25, 26 de Abril e por aí adiante... E o primeiro, 1º de Maio? Foram dias tão felizes!!!
ISTO JÁ NADA NEM NINGUÉM NOS PODE TIRAR, FOI VIVIDO POR NÓS.
Adorei Zé Luis. Obrigada
A escrita tem destas coisas... Apesar de já ter ouvido estas histórias dezenas de vezes, não fui capaz de parar de ler até que o texto acabasse! Tanto pelos detalhes que só a escrever são descritos, como pela intensidade da emoção da escrita... Eu sou o irmão da bebé de 9 meses. Sou o 25 de Abril + 2.
ResponderEliminarConcerteza que se tivesse estado na tua pele me teria (desculpem a expressão) borrado de medo, mas esse medo, como já disse no comentário ao texto da Maria, há de ter dado lugar a uma felicidade e emoção extrema! Como não houve sangue nem dois lados da barricada, devem ter sido dias e mesmo semanas fantásticas de tanta emoção por poder ter um país livre para nós e acima de tudo para os filhos!
Gostava de ver a continuação deste texto. As histórias (algumas) que também já ouvi, mas que valem a pena ser esmiucadas, recordadas e eternizadas !
Será possível realizar a vontade deste humilde leitor?
Quase que me apetecia dizer: isto dava um livro! É mesmo verdade: aí está o tema que, mesmo sem dizer nada, andavas á procura. Não são histórias, são vivências que, na maior parte das situações, permanecem na memória de tantos anónimos que as viveram e que as guardaram no baú fechado do passado. Há acontecimentos que marcam uma geração: nós somos os privilegiados que viveram uma época em que se quebraram as amarras do obscurantismo. Quantos jovens saberão, por exemplo, que este blogue já teria sido calado se ainda existisse o “lápis azul”? Quantos mesmo saberão o que fazia esse lápis?
ResponderEliminarEsta narrativa tão viva dos acontecimentos faz-me ainda reviver a emoção daquele dia. Nada, porém, que se compare com a do furriel miliciano Luís Vaz. Depois daquela madrugada tão misteriosa e duma manhã cheia de enigmas e silêncios, com uma peta à mistura, e a tensão ao rubro, o desfecho deve ter tido um duplo sabor a vitória.
ResponderEliminarE, parafraseando a Albertina, podermos escrever livremente, sem a ameaça constante do implacável lápis azul foi uma das grandes conquistas da revolução.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarQuando montarmos a estratégia adequada para acabar com a ditadura do setor financeiro, que nos asfixia, quantos "Ferrand de Almeida" e "Romeiras Júnior" sairão à rua e com que armas? Ou já estarão na praça pública e não lhe conseguimos divisar o rosto?
ResponderEliminarEstas histórias do passado também têm de ser lidas à luz do futuro.
Muito bom, José Luís.