A partir da publicação do Texto I, aos
domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa
reflexão sobre CICLOS DE VIDA.
Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este
diálogo, participando com um texto! Obrigada.
O trabalho poderá ser enviado
para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do
blogue.
TEXTO II
Albertina Vaz
Vi-a cambaleando de um lado
ao outro da rua. Claro que era uma rua muito estreita mas o seu andar
prendeu-me: quis estender-lhe uma mão, quis alongar-me na sua direcção, quis encolher
a distância entre nós. Mas não, fiquei a olhá-la: imóvel, sem capacidade para
agir, sem habilidade para avançar, sem engenho para captar a sua atenção
Mas nem tempestade se presentia |
Mas nem tempestade se
pressentia por ali: tudo estava calmo, como se já nada fosse possível alterar,
como se tivesse chegado ao fim da rua e, do outro lado, apenas existisse um
precipício enorme que a poderia conduzir ao vazio eterno e ao descanso dum
deserto desabitado
E foi assim que a vi curvar
os joelhos, estender os braços ao longo do corpo e deixar-se cair como um peso
quase morto, largado da vida e desprendido da arte e do saber. Ficou ali, no
meio da rua, como um monte de areia, enrolado sobre si mesma, sem se
diferenciar a cabeça do tronco e o corpo dos pés. Parecia querer ter parado de
uma vez por todas, cansada talvez das caminhadas sem destino, dos companheiros
de jornada e de tudo e de nada e dos túneis sem fundo e das cavernas sem luz.
... como um monte de areia |
Passaram por ela olhando-a
sem a verem, olharam-na como alguém que tinha chegado ao fim da estrada ou a
uma estrada sem rumo onde tudo escurece e alguma coisa não acontece porque já
nada mais resta. Nem o sol parece voltar porque a chuva miudinha e macilenta se
instalou definitivamente naquela vida sem rumo.
Houve até quem lhe tocasse
com um pé, quem se agastasse com aquele monte de ser vivo que incomodava a
passagem e dificultava a visão de quem não queria ver ou ouvir o ruido que se
instalava.
Era uma rua estreita por
onde apenas uma nesga de claridade se divisava no fim do fim de quase tudo. Ali
ela podia cair à vontade e ficar com firmeza junto ao chão não sendo capaz de
se reerguer ou simplesmente de se levantar.
De repente alguém começou a
insurgir-se contra aquele monte de vida – porque ainda vivia – que conspurcava
o chão e refletia os restos do que fora uma história: e se se chamassem as “autoridades”?
e se ela estivesse doente? e se lhe dessem de comer? ou um copo de água?
Aquela mulher não tinha
fome, já não sabia o que isso era, e também não tinha sede! A sua sede era
outra: estava sôfrega de vida, de carinho, ávida de paixão… Queria estar no
mundo não ao lado dos outros mas com os outros, queria um lugar, queria não ter
fracassado, queria ser-lhe possível voltar atrás e ver os filhos que cresciam
sem ela, que brincavam sem correrem para o seu porto de abrigo porque um dia o
deixaram de ter.
... mas nada a estimulava |
Pegaram-lhe na mão,
perguntaram-lhe o que queria, houve até quem lhe fizesse uma festa na cabeça,
quem lhe afagasse o rosto, quem lhe quisesse pegar ao colo, quem a desejasse
embalar cantando-lhe umas canções de mãe… mas nada a estimulava.
E falou então do homem a
quem atraiçoara, do amor que havia esgotado, do emprego que havia perdido, das
noites passadas ao relento, dos excitantes, das bebedeiras não terminadas… dos
filhos a quem quase tinha vergonha de aparecer… Os filhos! Não os tinha
esquecido, mas já não queria vê-los: queria que se recordassem da mãe de outros
tempos que corria com eles na praia e se lançava numa queda de areia e mar
enrolando-se como uma bola que rolava, rolava afrontando a brisa marítima ou o
brasido solar.
Alguém lhe contou histórias de
sol e de vida, alguém lhe afagou a mão, alguém lhe cantou baixinho o desfolhar
de um malmequer e as ondas a desmancharem-se de mansinho na areia da praia…
... sonhar o colo de sua mãe |
Tinha chegado ao fim e já
não queria voltar a levantar-se. Não queria, não era não podia. Não queria! E
mesmo que o vento se fosse, que a chuva deixasse de cair e o rio continuasse o seu
caminho o que ela deseja é que a deixem sozinha com a sua vontade, que a deixem
ficar ali a volatilizar os seus fantasmas e a sonhar o colo de sua mãe.
Texto belo e horrível. Belo, na forma de escrita, que te é peculiar, horrível,no realismo do seu conteúdo. Só quem ama se pode expressar tão profundamente com a sensibilidade de quem sofre. Valha-nos a esperança no retorno.
ResponderEliminarSó a sua profunda sensibilidade humana para captar, sentir, o sofrimento desta mulher. Só a sua elevada competência literária para retratar tão fiel e expressivamente este drama.
ResponderEliminarComo disse, o nosso colega Zé Luís,este texto é tão belo, mas tão horrível. Como pode um ser humano sentir-se tão desamparado, tão abandonado por si próprio.O sofrimento que esta mulher sentia,tinha chegado ao limite.Só um ser humano, com tanta sensibilidade, para o descrever com uma competência enorme.
ResponderEliminarOutrora, mulher feliz,cheia de vida, de sonhos e projetos com o mundo a seus pés. Hoje, mulher sem nome; mulher sem esperança; mulher sem vida; mulher sem nada de nada; mulher que o único querer é morrer.
ResponderEliminarE... quantas não podemos encontrar por aí num beco qualquer sem saída?
Se alguém andar adormecido que leia este texto.
Obrigada Albertina por retratares tão bem esta triste e cruel realidade.
O texto, com o seu estilo exemplarmente sugestivo, está simplesmente belo.
ResponderEliminarQuantas mulheres lá vi retratadas? Muitas. E apenas fui enumerando os tipos de barbaridades que são cometidas sobre as mulheres.
Muito bem escrito Tia, parabéns.Precebo este texto melhor que a maioria dos que o vão ler.Muitas vezes precisei de amor e carinho, mas essencialmente do colo da minha Mãe. A vida é cruel e ingrata.bjs grandes
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