Revisitar
os Provérbios e, com eles, desnudar o Presente
Fernanda
Reigota
Voluntário! |
Pedro trabalhava como voluntário numa
instituição de solidariedade social. Após trinta e oito anos de serviço como
enfermeiro no hospital da sua cidade, deitou contas à vida e percebeu que a
reforma com que ia ficar era suficiente para si e para a neta acabar o curso de
medicina. Ela frequentava, então, o primeiro ano. A remodelação de que a sua
casa precisava ficaria para depois de a neta acabar o curso e ganhar a sua
autonomia financeira. Era toda a família que lhe restava.
Apesar de todos os desgostos que a
vida lhe trouxera, apesar de muitos sonhos se terem desmoronado, como o algodão
doce que uma criança deixa cair numa poça que reflete o arco-íris, não perdera
o ânimo, nem ficara apático. Doía-lhe o desalento com que via os novos
enfermeiros, acabado o estágio, partirem para a parede negra do desemprego, sem
perspetivas de trabalho. Apesar de ainda sentir uma profunda realização
profissional, quando pensou que a sua reforma poderia dar trabalho a um jovem,
não hesitou em se retirar. Pedro poderia continuar a ser útil, como enfermeiro
voluntário.
O sol quando nasce é para todos! |
Em conversa com a neta, concluiu que queria fazer voluntariado,
integrado numa instituição que lhe sinalizasse crianças e jovens com doenças
impeditivas de saírem de casa por períodos longos ou definitivamente. A sua
ideia era ser solidário com os pais e cuidadores, quase sempre anulados como indivíduos,
e dar oportunidade às crianças e jovens de conviverem com outras pessoas. O sol
quando nasce é para todos!
Foi um longo percurso. Visitou
amigos, demorou-se em conversas para ter a certeza de que compreendiam o que
queria implementar, foi ouvindo muitos problemas que justificavam, para os
amigos, a quase não saída de casa… Eram reformados como ele, ativos e válidos,
mas iam entregar-se àquilo que pensavam merecer depois de uma vida de trabalho:
a solidão ou a atividade ociosa do café como fonte e espelho de ecos e de
vaidades do passado. A vaidade é o espelho dos ociosos.
A diversidade faz a força! |
Dois ou três amigos aderiram de
imediato. Mas era preciso mais. Para realizar este trabalho, ele concebia
equipas multidisciplinares: para além de enfermeiros, muitas pessoas com outras
valências ou conhecimentos e vivências diferenciadas trariam valor acrescido ao
projeto. Os jovens seriam indispensáveis: estariam muito mais sintonizados com
os doentes, intercambiando interesses e conhecimentos. Seriam eles o adoçante
humanizado das crianças e jovens em sofrimento. A diversidade faz a força!
Como apressado come cru, mas água mole em pedra dura, tanto dá até que fura, Pedro foi
disseminando as suas ideias, divulgando os seus objetivos, contactando
instituições de ajuda e enquadramento legal, criando redes de contato…
Um dia saiu a primeira
equipa com endereço definido: quatro pessoas, incluindo André, um jovem de dezasseis
anos, iam passar uma tarde com o João, um rapaz de catorze anos que convalescia
de complicadas e múltiplas intervenções cirúrgicas. Entre estadias no hospital
e tempos de espera em casa, João e a mãe viviam em uníssono há ano e meio.
Naquele dia iam respirar outros ares, quebrar o isolamento…
Pedro tinha este ponto de
felicidade que lhe iluminava a vida: sentia que o projeto, que agora era de
muitos, fazia a diferença para muitas pessoas. Uma tarde de descanso para uns,
um rasgar de janelas de convívio e partilha para outros. Mesmo na doença!
Já a neta frequentava o
terceiro ano da faculdade, quando Pedro começou a ter dificuldades em
satisfazer os seus compromissos financeiros.
Por necessidade
imperiosa, comprara casa há cerca de vinte anos, ainda pagara juros a 28% e
nunca esqueceria este esbulho. Faltavam onze longos anos de prestações e a
reforma diminuíra substancialmente. Um mês apurou os impostos sobre os consumos
diários e na sua mente ficou a atormentá-lo o provérbio “Quem pede a Pedro e paga a Gaspar, volta a pagar.”
Não
conseguia fazer face a todas as despesas da faculdade da neta. Começaram a conviver
com a dura realidade de quem sabe que ave de rapina não canta, mas lança garras
afiadas que destroem vidas e a dignidade da vida.
No dia
em que fez contas e verificou que não podia comprar uns sapatos de que
necessitava, pôs pernas ao caminho com os sapatos que tinha.
O seu
projeto de voluntariado e solidariedade estava fortificado e com gente capaz de
lhe dar continuidade.
Agora
seria o tempo de correr com aqueles a quem a ambição cerra o coração.
APRe!Quem porfia, mata caça |
A valentia com os fracos,
só cobardia revela e ele estava decidido a congregar vontades que se opusessem
ao esbulho de que os reformados estavam a ser vítimas. Também não suportava a
ideia, lançada em simultâneo com a espoliação dos reformados, de serem estes os
parasitas da sociedade.
A fome faz sair o lobo do
mato. Pedro e o Lobo iriam gravar o disco das sonoridades da palavra BASTA. APRE!
Quem porfia, mata caça.
O pobre do Pedro pagava as contas sem pedinchar! E o Pedro queria trabalhar sem receber e sem pagar! Coitado do Pedro! Então ele não sabe que a “espécie grisalha” tem de ser exterminada? Vá lá, Pedro, tens de produzir, tens de trabalhar… e se não puderes, já sabes, continua a trabalhar.
ResponderEliminarSe o Pedro conhecesse o Filipe trocavam um abraço e nascia um só, um sorriso, um outro, um nós. E depois continuavam o voluntariado de que tanto recebiam – até que um dia, com persistência, haviam de chegar. Onde? Lá, onde o nós não precisa de trabalhar.
Eu vou pensando no cá, onde, sem horário de salário mas com horário solidário, há tanto para fazer! Tantos abrigos a construir para as intempéries com que a vida a todos surpreende.
EliminarObrigada, Albertina!
Muito bom Fernanda...continue a deliciar-nos! :) beijinhos
ResponderEliminarMuito obrigada, Susana. Quando nos surpreendes outra vez? Beijinho.
Eliminar"Alcança quem não cansa"?, "Pedro"?, "Gaspar"?
ResponderEliminar- Não sei porquê, não estou a perceber... Mas estes entre comas sugerem-me alguma coisa... Há! Já sei.
Quem não alcança? - Pedro e Gaspar
Resta-nos, cansa? - Obviamente os Pedros
Solução? - APRE
Claro, para a voz e a razão de Pedro se imporem!
EliminarUns Pedro já se iniciaram cansados de maldade e ignorância.
Outros Pedro não se cansam em busca dos direitos e da dignidade que lhes querem retirar.
Obrigada, José Luís.
Este texto é um verdadeiro muitos em um: um tema que se ramifica, abrangendo vários problemas da atualidade e encontrando realce numa profusão de provérbios, um deles muito oportunamente inventado.
ResponderEliminarAgora, para o nosso protagonista:
-Força, Pedro! Com sapatos rotos ou descalço, corre, berra, grita... Com direito por teu lado, nunca receies dar brado.
Se algum dia eu fosse Pedro, gostaria de ouvir um incentivo tão forte e límpido como o que dirige à personagem.
EliminarObrigada, São!
Não percebi porque não comentei este texto tão cheio de força de viver; ver o desenvolvimento da sua neta. Afinal, quando pensou que a vida estava organizada, eis que surgiram os tropeções.
ResponderEliminarInfelizmente é o que mais acontece, nos dias de hoje.