terça-feira, 23 de abril de 2013

Alcança quem não cansa


 Revisitar os Provérbios e, com eles, desnudar o Presente

Fernanda Reigota

Voluntário!
Pedro trabalhava como voluntário numa instituição de solidariedade social. Após trinta e oito anos de serviço como enfermeiro no hospital da sua cidade, deitou contas à vida e percebeu que a reforma com que ia ficar era suficiente para si e para a neta acabar o curso de medicina. Ela frequentava, então, o primeiro ano. A remodelação de que a sua casa precisava ficaria para depois de a neta acabar o curso e ganhar a sua autonomia financeira. Era toda a família que lhe restava.
Apesar de todos os desgostos que a vida lhe trouxera, apesar de muitos sonhos se terem desmoronado, como o algodão doce que uma criança deixa cair numa poça que reflete o arco-íris, não perdera o ânimo, nem ficara apático. Doía-lhe o desalento com que via os novos enfermeiros, acabado o estágio, partirem para a parede negra do desemprego, sem perspetivas de trabalho. Apesar de ainda sentir uma profunda realização profissional, quando pensou que a sua reforma poderia dar trabalho a um jovem, não hesitou em se retirar. Pedro poderia continuar a ser útil, como enfermeiro voluntário.
O sol quando nasce é para todos!
 Em conversa com a neta, concluiu que queria fazer voluntariado, integrado numa instituição que lhe sinalizasse crianças e jovens com doenças impeditivas de saírem de casa por períodos longos ou definitivamente. A sua ideia era ser solidário com os pais e cuidadores, quase sempre anulados como indivíduos, e dar oportunidade às crianças e jovens de conviverem com outras pessoas. O sol quando nasce é para todos!
Foi um longo percurso. Visitou amigos, demorou-se em conversas para ter a certeza de que compreendiam o que queria implementar, foi ouvindo muitos problemas que justificavam, para os amigos, a quase não saída de casa… Eram reformados como ele, ativos e válidos, mas iam entregar-se àquilo que pensavam merecer depois de uma vida de trabalho: a solidão ou a atividade ociosa do café como fonte e espelho de ecos e de vaidades do passado. A vaidade é o espelho dos ociosos.
A diversidade faz a força!
Dois ou três amigos aderiram de imediato. Mas era preciso mais. Para realizar este trabalho, ele concebia equipas multidisciplinares: para além de enfermeiros, muitas pessoas com outras valências ou conhecimentos e vivências diferenciadas trariam valor acrescido ao projeto. Os jovens seriam indispensáveis: estariam muito mais sintonizados com os doentes, intercambiando interesses e conhecimentos. Seriam eles o adoçante humanizado das crianças e jovens em sofrimento. A diversidade faz a força!
Como apressado come cru, mas água mole em pedra dura, tanto dá até que fura, Pedro foi disseminando as suas ideias, divulgando os seus objetivos, contactando instituições de ajuda e enquadramento legal, criando redes de contato…
Um dia saiu a primeira equipa com endereço definido: quatro pessoas, incluindo André, um jovem de dezasseis anos, iam passar uma tarde com o João, um rapaz de catorze anos que convalescia de complicadas e múltiplas intervenções cirúrgicas. Entre estadias no hospital e tempos de espera em casa, João e a mãe viviam em uníssono há ano e meio. Naquele dia iam respirar outros ares, quebrar o isolamento…

Pedro tinha este ponto de felicidade que lhe iluminava a vida: sentia que o projeto, que agora era de muitos, fazia a diferença para muitas pessoas. Uma tarde de descanso para uns, um rasgar de janelas de convívio e partilha para outros. Mesmo na doença!
Já a neta frequentava o terceiro ano da faculdade, quando Pedro começou a ter dificuldades em satisfazer os seus compromissos financeiros.
Por necessidade imperiosa, comprara casa há cerca de vinte anos, ainda pagara juros a 28% e nunca esqueceria este esbulho. Faltavam onze longos anos de prestações e a reforma diminuíra substancialmente. Um mês apurou os impostos sobre os consumos diários e na sua mente ficou a atormentá-lo o provérbio “Quem pede a Pedro e paga a Gaspar, volta a pagar.”
Não conseguia fazer face a todas as despesas da faculdade da neta. Começaram a conviver com a dura realidade de quem sabe que ave de rapina não canta, mas lança garras afiadas que destroem vidas e a dignidade da vida.
No dia em que fez contas e verificou que não podia comprar uns sapatos de que necessitava, pôs pernas ao caminho com os sapatos que tinha.
O seu projeto de voluntariado e solidariedade estava fortificado e com gente capaz de lhe dar continuidade.
Agora seria o tempo de correr com aqueles a quem a ambição cerra o coração.
APRe!Quem porfia, mata caça
A valentia com os fracos, só cobardia revela e ele estava decidido a congregar vontades que se opusessem ao esbulho de que os reformados estavam a ser vítimas. Também não suportava a ideia, lançada em simultâneo com a espoliação dos reformados, de serem estes os parasitas da sociedade.

A fome faz sair o lobo do mato. Pedro e o Lobo iriam gravar o disco das sonoridades da palavra BASTA. APRE! Quem porfia, mata caça.



9 comentários:

  1. O pobre do Pedro pagava as contas sem pedinchar! E o Pedro queria trabalhar sem receber e sem pagar! Coitado do Pedro! Então ele não sabe que a “espécie grisalha” tem de ser exterminada? Vá lá, Pedro, tens de produzir, tens de trabalhar… e se não puderes, já sabes, continua a trabalhar.
    Se o Pedro conhecesse o Filipe trocavam um abraço e nascia um só, um sorriso, um outro, um nós. E depois continuavam o voluntariado de que tanto recebiam – até que um dia, com persistência, haviam de chegar. Onde? Lá, onde o nós não precisa de trabalhar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu vou pensando no cá, onde, sem horário de salário mas com horário solidário, há tanto para fazer! Tantos abrigos a construir para as intempéries com que a vida a todos surpreende.
      Obrigada, Albertina!

      Eliminar
  2. Muito bom Fernanda...continue a deliciar-nos! :) beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada, Susana. Quando nos surpreendes outra vez? Beijinho.

      Eliminar
  3. "Alcança quem não cansa"?, "Pedro"?, "Gaspar"?
    - Não sei porquê, não estou a perceber... Mas estes entre comas sugerem-me alguma coisa... Há! Já sei.
    Quem não alcança? - Pedro e Gaspar
    Resta-nos, cansa? - Obviamente os Pedros
    Solução? - APRE

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro, para a voz e a razão de Pedro se imporem!
      Uns Pedro já se iniciaram cansados de maldade e ignorância.
      Outros Pedro não se cansam em busca dos direitos e da dignidade que lhes querem retirar.
      Obrigada, José Luís.

      Eliminar
  4. Este texto é um verdadeiro muitos em um: um tema que se ramifica, abrangendo vários problemas da atualidade e encontrando realce numa profusão de provérbios, um deles muito oportunamente inventado.
    Agora, para o nosso protagonista:
    -Força, Pedro! Com sapatos rotos ou descalço, corre, berra, grita... Com direito por teu lado, nunca receies dar brado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se algum dia eu fosse Pedro, gostaria de ouvir um incentivo tão forte e límpido como o que dirige à personagem.
      Obrigada, São!

      Eliminar
  5. Não percebi porque não comentei este texto tão cheio de força de viver; ver o desenvolvimento da sua neta. Afinal, quando pensou que a vida estava organizada, eis que surgiram os tropeções.
    Infelizmente é o que mais acontece, nos dias de hoje.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...