domingo, 21 de abril de 2013

UTOPIA, POR QUE NÃO?


A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! Obrigada.
O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

                                                                                                          José Luís Vaz
Texto III

O vento assobiava
O vento assobiava e, desvairado, projectava com uma violência indescritível a água que caía, como se nunca mais acabasse. Pelo ar, papéis, cartões, pedaços de madeira e lixo voavam, acabando por ser projectados contra tudo o que lhe tentasse fazer frente. A água corria em riachos desordenados, que se subdividiam, parecendo um rio ao contrário, em que os afluentes, em vez de se juntarem, deslizavam por onde a natureza fazia, naquele dia, questão, de que se desirmanassem, inundando aqueles pavimentos térreos que separavam as inúmeras barracas, umas melhor calafetadas que outras… Os ruídos, alguns esporádicos, outros permanentes, eram o reflexo daquele vento vadio que decidira implicar com os improvisados e débeis materiais que, na sua função, deveriam proteger alguém que, à falta de melhor, se enganava com tamanho conforto. Faltava ainda o granizo que agora também decidira fazer uma visita ao bairro, provocando um barulho ensurdecedor ao embater, sem dó, nem piedade, naqueles pedaços de chapas trazidas, sabe-se lá de onde, para garantirem um isolamento de maior qualidade. Tinham passado cerca de vinte minutos. 
Era um bairro de lata
Francisca deslocara-se a um bar, localizado nos arredores da cidade, e foi de lá, no alto de um morro, numa espécie de esplanada fechada com acrílico dos lados e de frente, que em vez de saborear um café que, normalmente, lhe era muito agradável, teve um pesadelo horrível, que não sonhou, que não imaginou, mas antes viu, sentiu, e, pior que tudo, gravou. Era um bairro de lata, como tantos outros, que ela se habituou a ver e que lhe transmitia a miséria, que ela rejeitava, mas embora a deprimisse, tinha a capacidade para racionalizar os factos e perceber a amarga conclusão de que não era só ela que podia mudar o mundo. Naquele dia, vinte minutos, ou à volta disso, provocaram naquela pessoa, bem formada, de princípios sólidos e solidários, de um humanismo, às vezes, ingénuo, de tão puro, uma convulsão de sentimentos que a transportou para um verdadeiro estado de inquietação. Já em sua casa, sentada no sofá, não conseguia concentrar-se em nada, a não ser no que lhe havia ficado gravado, quem sabe, se para sempre. 
Não deixava de se lembrar daquela mãe que, completamente ao tempo, obcecadamente, tentava com uns bocados de plástico, remendar aquilo que a mal fadada tempestade roubava àquela barraca, como se dali fosse sítio para se roubar alguma coisa. O menino, de idade de escola, armado em homem, descalço, com uma camisita a escorrer que tentava secar ao vento, labutava joelhado, e fazendo das suas mãos pás, empurrava terra, à volta de toda a barraca, contra as tábuas, que de parede faziam. Aquele velhote, corcunda, com uma careca rodeada de cabelos brancos, que, na rua, procurava uma pequena cadela, a sua cadelinha, que no regaço levou para casa, como se debaixo de telha ficasse. 
As imagens eram muito nítidas

As imagens eram muito nítidas, os sons horrendos, os pensamentos muito dolorosos. Como era possível conciliar o sonho dela, que de utópico chegou a ser apelidado, com tanta falta de recursos mínimos a uma vida digna? Aquela ansiedade que depressa passou a inquietação, tornou-se agora, numa espécie de remorso, como se houvesse razão para tal. A sua hipersensibilidade estava a provocar-lhe momentos muito penosos. Nunca, como agora, havia reflectido sobre situações tão miseráveis, tão degradantes, não por egoísmo, mas foi necessário o trauma sofrido, para que, no mais fundo de si, sentisse o que de mais funesto a poderia atormentar. Passaram-se alguns dias e aquela cabeça não parava de sonhar… Aquela gente, de gente, de pessoas, se tratava, deveriam ter direito, a pelo menos, paredes de tijolos com umas telhas em cima. Chamar-se-lhe casa… Isso não seria de certeza, o mais importante, para quem com água, vento, calor, frio, tem uma relação de necessidade/horror. Francisca foi acordando muito lentamente do longo pesadelo mas, em simultâneo, arquitectou, sem ser arquitecta, planeou, sem nada perceber de planeamento e imprimiu o diálogo, com quem, de costas para o mundo à sua volta, sempre andou. Em escasso tempo, conseguiu sensibilizar vontades e sentar à mesma mesa pessoas que, pelas funções que desempenhavam na comunidade, poderiam dar um contributo válido, para evitar a miséria, que todos viam no dia-a-dia, com o velho sentimento de impotência. Ela, dotada de um dinamismo contagiante e provocador, sentada naquela mesa grande, agora cheia de pessoas, que iam desde o presidente da Junta de Freguesia ao padre daquela paróquia, fazia desafios às consciências instaladas e com uma alegria, que lhe iluminava o rosto, propunha o impossível, conseguindo provocar silêncios comprometidos e envergonhados.
 
Dar a mão

Com o mesmo saber, quebrava os silêncios, como uma verdadeira agente de desenvolvimento, procurando “dar a mão” aos mais encravados e com uma positividade impressionante, passava a dar sugestões que mais pareciam orientações a tomar em conta. Francisca, ser eminentemente solidário, genuíno, dominava por completo a situação, a que se tinha proposto dedicar com toda a sua força, mas, acima de tudo, a sua pertinaz inteligência. As pessoas presentes, presidente do clube de futebol, directora do Centro Social, representantes partidários, directora da Escola local, representante da GNR, dois empresários ligados à construção civil e outras, mulheres e homens, que, de alguma forma, eram influentes no meio em que viviam, reconheciam a enorme capacidade de liderança daquela mulher, que rebuscava na sua extraordinária sensibilidade, a energia, a força, a determinação, de quem aposta sempre para ganhar. Agora, que já tinha conseguido agitar aquela gente, e obter, das pessoas, um compromisso mínimo, não podia deixar passar muito tempo, não fossem acoitar-se no sossego do seu conforto. Era chegada a hora de pedir ajuda ao seu amigo Antunes, que deveria, nesta altura, tomá-la por uma irresponsável que nem pelo seu assunto se interessava. Parecia ter-se esquecido do seu projecto, que tanto a entusiasmou, e que agora pouco lhe ocupava o pensamento. Um telefonema e o encontro de que necessitava acontecia. Ficou a saber que o encantamento de Antunes pelo projeto “bairrocasahotel” continuava a aumentar de tal forma que começou por lhe comunicar que havia já um investidor, para quem ele iria trabalhar, ou antes, já estava a começar a elencar os paradigmas que ele achava importantes para a prossecução dum projecto daquela natureza. Claro que ainda não tinham sido adquiridos terrenos, nem sequer determinado com rigor o local e o investidor, já existente, pretendia encontrar um consórcio.
— Uma coisa, Francisca, te posso afirmar: vais, seguramente, poder contar com o projecto que idealizaste, sim, porque foste tu a responsável pela minha nova paixão profissional. Mas, já dei as minhas novidades e ou estou enganado, ou me parece, que não tens estado a ouvir nada e que essa cabeça já está noutra.
— Não deixas de ter razão, embora continue interessada em tudo o que falámos. Nesta altura, acredita, necessito muitíssimo da tua ajuda. Trata-se de um novo projecto para o qual te vou pedir imenso sem ter nada para te dar em troca. Quando se tem amigos o abuso não existe e a solidariedade fica próxima. Com toda esta conversa quero dizer, que  estou a solicitar, muito de ti, sem ter qualquer hipótese de te pagar, pelo menos, de imediato.
— Vamos, desde já, assentar que eu tenho imenso trabalho, conforme é, aliás, do teu conhecimento, mas estarei sempre disponível para os meus amigos, portanto agradeço que comeces a desenrolar esse novelo que te está a atrofiar.
O sonho dá lugar à obra
A conversa deveria alongar-se e Francisca tomou a iniciativa de convidar Antunes para jantar num restaurante agradável e sossegado que lhes permitiria estar à vontade. Sem rodeios foi direta ao assunto. Falou, falou, falou, e o seu interlocutor estava estupefacto com a desenvoltura daquela senhora, que de tudo era capaz. Reagir a algo que muito a traumatizou, esboçar mentalmente um projecto para ultrapassar uma situação tão difícil, mobilizar vontades, mesmo as mais avessas à colaboração, e agora com uma humildade rara, solicitava-lhe ajuda para com ela ombrear naquela luta, que de fácil nada teria. Garantiu-lhe ajuda incondicional, evidenciando, ser para ele, uma honra, poder colaborar, num desafio destes ao lado dela.
— Eu sabia, que ia poder contar contigo. Às vezes, comporto-me como uma miúda atrevida. Foi completamente inconsciente, ter reunido as pessoas, sem primeiro, ter falado contigo… Uso e abuso dos amigos, sou assim, já não tenho emenda.
A conversa continuou com um entusiasmo, agora alucinante, e as ideias brotavam como a água cristalina dos ribeiros mais despoluídos, do alto da serra. Ali, também os serviços, como a água, a energia, TV, Net e gás, deveriam ser pagos pela Junta de Freguesia (JF), mas que não fosse isso motivo para cobranças de serviços que tornassem inviável a ideia e que só servisse para a J.F. se subsidiar. Difícil seria, era que todos pudessem aspirar a todos os serviços, mas esses seriam os problemas do futuro. Francisca tinha muitas ideias e pensava mobilizar uma quantidade de colaboradores que tornariam possível o sonho. Por exemplo, expectava que a equipa de futebol local pudesse organizar um torneio com outras equipas vizinhas, montando tendas de “comes e bebes”, que poderiam amealhar bom dinheiro, a juntar ao realizado com o referente às entradas. Muitas outras coisas iriam surgir. O importante agora era ambos delinearem estratégias de atuação de forma a convencer os que precisavam e os que tinham o poder de facilitar procedimentos por uma boa causa.
— Penso que é importante, fixarmos a nossa atenção no essencial, e não nos dispersarmos com aspectos acessórios para um projecto desta natureza. Se pensarmos que para toda essa gente o que importa é dar-lhe condições mínimas de dignidade, teremos um longo percurso a percorrer, não concordas Francisca?
— Sim, incondicionalmente de acordo. Apesar das limitações dum projecto desta natureza, nas devidas proporções, teremos que, também aqui, ter em atenção, enquadramento urbanístico, sustentabilidade do planeta, raciocinar de forma a inovar, sobre a quase inevitável claustrofobia, participação integrada das instituições de solidariedade social da zona? Sabes o que te digo: Ainda a procissão vai no adro… Há tanto para pensar, fazer, mas é para a frente é que é o caminho, e a nossa determinação vencerá.



— A trabalhar, ao teu lado, só assim é possível. Tu não dás outras oportunidades.
— Antunes, a tua mãe teria muito orgulho em ti, e sabes que mais, acabo de ter uma ideia, “SE ÉS GENTE, TRAZ UM TIJOLO”. 


10 comentários:

  1. Que linda história de amor, Zé Luis...
    Mas... não será mesmo e tão só utopia?
    Era tão bom que isto fosse a verdade...
    No entanto, acredito na tenacidade do homem e também sei que há muitas Franciscas neste país e não só.
    Deliciei-me. Obrigada Amigão

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    1. A utopia, só o é, enquanto não conseguirmos mudar as coisas."Que linda história de amor". Fiquei muito feliz (estado utópico)por associares o amor à utopia. É isso mesmo, a utopia é e sempre foi linda!O que fica a seguir à utopia (quando se alcança)ainda é mais bonito. Obrigado.

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  2. Por vezes, o acaso traz até nós situações que se impõem aos nossos olhos e nos desinstalam do nosso comodismo, forçando-nos a agir.
    Que se multipliquem as Franciscas (Até já temos o papa Francisco! Parece-me um bom prenúncio.)É urgente a mudança.

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    1. "É urgente a mudança". Franciscas com as ajudas preciosas dos Antunes,ou se preferir, equipas de pessoas (de carne e osso) envolvidas em objetivos comuns, sem que, prioritariamente,não tenham como obsessão o dinheiro, podem lutar pela mudança, por muito utópica, que nos pareça. Não tentar, é que não. Ex: papa Francisco, sim senhor.Obrigado.

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  3. Se eu não conhecesse o autor pensava que deveria ser um homem de sonhos a sonhar uma vida diferente. Realmente a vida tem destas coisas: surpreende-nos a cada momento. E até nos surpreendem aqueles que melhor conhecemos. Passei muito anos – praticamente uma vida inteira – a ser reencaminhada para a realidade. E para a realidade dura e permanente do dia-a-dia. Vejo agora que afinal ainda acreditas que, se quisermos, podemos fazer impossíveis! E quando se oiço dizer: UTOPIA,PORQUE NÃO? só me apetece responder-te: é só mesmo o que nos resta – acreditarmos nela! Só mais uma coisa: estás a escrever cada vez melhor!

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    1. Apanhei-te. Não me podias ter dado melhor "deixa"."Podermos fazer impossíveis!" Eu sempre me afirmei de pés bem assentes no chão, o que nunca me impediu de ver na utopia, o sonho a atingir.Tu foste a Francisca que me inspirou, não só no texto, mas na vida. Obrigado.

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  4. Segregar (pôr de lado; separar; apartar; marginalizar; discriminar)é uma ideia perigosa. Vamos saborear os nossos cafés de olhos bem abertos e conjugar o verbo terrível na forma negativa: não segregar crianças, idosos, portadores de deficiências, famílias sem pão...
    Boa utopia esta, José Luís!

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    1. Esta é uma utopia à medida da sociedade em que vivemos. Proporcionar um mínimo de dignidade a quem nada tem é nesta sociedade ainda utópico. O, por que não? É a expressão do desafio que lamentavelmente ainda hoje se coloca por este mundo fora. A grande utopia, sem riscos, a mais justa, a mais fraterna, a mais igual, sinto-a cada vez mais distante.Parabéns. Penso que "CICLOS DE VIDA",provocaram a reflexão dialogante que idealizou. Mais uma utopia vencida? Muito obrigado.

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  5. Eu, fiquei deliciada com a leitura deste texto. Realmente há uma necessidade absoluta de mais Franciscas neste mundo tão cheia de egoísmos e de senhores do seu nariz. Obrigada ao autor de tão belo texto.Já sabia que o autor escrevia belas coisas mas assim... Parabéns.

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    1. Quando tomei a decisão de me juntar ao grupo, creia que foi para mim, o primeiro passo a caminho de uma utopia,a da escrita. Cá vou, no meu passo...Olhe, desculpe, estou a dar conta que já escrevi duas vezes "passo". Quer dizer, dois, plural, passos...Já fiz asneira. É melhor ficar por aqui. Obrigado.

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