sábado, 20 de abril de 2013

Num comboio regional, à hora de ponta


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Helena Maltez


O sujeito tinha um corpo anguloso, sem ordenamento territorial. Tudo à balda, das feições ao trajar. Como único adereço, um embrulho de suspeitáveis contornos. Parou um momento junto da porta, topografando o interior da carruagem, e só depois tomou de assalto o lugar mesmo à minha frente. Remexi-me no banco num desassossego de maus agouros. Inquietava-me aquela coisa embrulhada em papel de jornal que o fulano empunhava com aprumo militar. Um facalhão de magarefe? Uma catana? Fosse o que fosse bulia com os arquivos da minha memória, obrigando-me a rever lúgubres imagens televisivas: ataques à mão armada… bombistas embuçados…reféns…explosões. Céus! E se…

Isto é um assalto!
Pus-me a fantasiar um assalto em versão soft, uma espécie de desenrascanço à portuguesa: comboio regional quase lotado… homem sem emprego a chafurdar na crise…arma branca…Estava a minha efabulação prestes a atingir o seu clímax dramático, quando no enredo se veio enredar um segundo suspeito, um tipo grandalhão, com excedentes adiposos e voz de parada militar.
No banco da frente, viajavam agora, traseiro a traseiro, dois alegados terroristas. Arrepiei-me toda.
Que podia eu fazer? Mentalmente tentei rascunhar uma estratégia de defesa: olho atento, ouvido à escuta. Não que a conversa a decorrer fosse minimamente reveladora. Um circuito fechado de fruta, pomares e podas.
Tratar-se-ia de algum código secreto? O arrepio voltou. Então, com dedos de prestidigitador e vagares de criar suspense, o sujeito desalinhado retirou o cordel que atava o embrulho, abriu as folhas de jornal como quem abre um relicário e, erguendo à altura do coração um singelo galho de árvore, disse:
Bravo Esmolfe
- "Bravo Esmolfe. Finalmente consegui um enxerto."
Eu boquiaberta. Imaginem, um facalhão a virar garfo!! Bravo de Esmolfe! Mas as maçãs sempre gostaram de protagonismo nas histórias: a maçã proibida de Eva, a maçã envenenada de Branca de Neve, a maçã-alvo de Guilherme Tell e, claro, a lendária maçã de Newton.
Relaxei. Um espreguiçar interior, um abandonar-me ao embalo do comboio. Dentro da carruagem a mesmice do costume: conversas ao telemóvel, lamúrias (doenças, desavenças, apuros financeiros, golos falhados). Aqui e ali uma gargalhada, aqui e ali uma irreverência juvenil. Os dois sujeitos sempre em mansa cavaqueira. Descartado o assunto do enxerto, eles falavam agora de problemas laborais: os colegas, os chefes, os turnos. Foi então que, de repente, eu entendi tudo. Sem farda, sem armas, à minha frente viajavam (imaginem!) dois agentes policiais.
Ah, se eles soubessem! E vi-me algemada, a caminho da esquadra. À minha direita, o gordalhaço, à minha esquerda, o mal-encarado. Ou vice-versa.


8 comentários:

  1. Mais um colaborador que, pela primeira vez, começa a participar no Evoluir. Um texto pleno de suspense, que perspectiva com um enorme realismo os tempos que vivemos e o trabalho que a nossa imaginação consegue arquitectar. Às vezes não passam de novelas... felizmente!
    Obrigado Maria Helena: queremos continuar a contar consigo.

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  2. Um texto muito interessante. A esperada qualidade literária de braço dado com o "gostinho" pelo teatro. Terei razão?

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  3. Verdadeira escrita de invulgar criatividade poética. Não é a imaginação a "doida" da casa?

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  4. Grande criatividade, variedade e precisão vocabular, riqueza de imagens, suspense, emoção, humor... Enfim,um texto que nos prende fortemente do princípio ao fim. Apetece-me parafrasear Saroyan: se isto não é literatura, quem perde é a literatura.
    Obrigada, Maria Helena!

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  5. Eu sabia que o estilo da Maria Helena nos iria surpreender. Uma pessoa que se conhece dificilmente mas nos encanta com a forma versátil, multifacetada, e cheia de uma surpresa que nos prende e nos leva a ler os seus trabalhos com um misto de curiosidade e espanto. Uma boa gargalhada não se arranca facilmente e a Maria Helena sabe aliar o imprevisto ao riso, qualidade esta que prende o leitor e surpreende mesmo quem a conhece.

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  6. Depois destes comentários que traduzem toda a qualidade do texto, resta-me perguntar: quando vem o próximo? Aguardo-o interessada.

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  7. Há pessoas com uma imaginação invulgar para "fazer filmes" como costumo dizer. E a quem, que habitualmente se desloca em transportes publicos, já não aconteceu fazer um filme parecido com este? Agora passá-lo para o papel com esta qualidade...
    Gostei imenso.

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  8. Bom, ao ler este texto vi-me envolvida sem querer num filme de pistoleiros. Grande imaginação e bela escrita. Gostei muito.

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