Jorge Santos
Nem
frio, nem calor, apenas o sol suficiente para aquecer o corpo no parque e
esquecer o longo inverno e uma primavera mais húmida do que me consigo lembrar
– mesmo que a memória já não seja a mesma há muitos anos. Nestes dias, a rotina
era sempre a mesma, depois do almoço vínhamos para ali, ocupávamos um lugar
numa das mesas em cujo tampo alguém teve o discernimento suficiente para pintar
um tabuleiro, talvez até tenha sido eu. Não creio. Pego no saco das pedras
redondas e coloco-as no tabuleiro. Doze peças pretas e doze peças brancas,
todas iguais, de marfinite gasta pelo tempo. Disponho-as para começar uma
partida de damas.
Ele
chegará, lento e cambaleante, cigarro na boca. O cheiro a tabaco denuncia-o
sempre. Senta-se na cadeira da frente e começa a jogar. Não diz uma palavra. Trinta
anos de amizade e dez na reforma não deixam muitos assuntos pendentes. Ganha-me
frequentemente. Ou deixo-o ganhar, já não sei. O resultado não interessa,
apenas o tempo que é passado para que resulte.
Jogo agora sozinho |
Jogo
agora sozinho. Imagino-me a jogar com ele. Repetidamente. Ganho-me e perco-me.
Não interessa. Dentro de pouco tempo até o calor do sol me deixará de
interessar.
Faço
o último movimento. Como uma pedra no jogo. Com raiva. A pedra comida desliza
para fora da mesa e cai ao chão de erva rala. Inclino-me para a apanhar, uma
aventura na minha idade. Sinto todas as articulações do meu corpo a estalar.
Estico o braço, a mão esbranquiçada e manchada quase que chega à pedra, mas
outra mão mais jovem antecipa-se e apanha-a.
A solidão não era um exclusivo da velhice |
“Acabou
a bateria”, queixou-se ele. Eu sorrio: “O meu jogo não precisa de pilhas.
Queres que te ensine?”
O
rapaz olhou com estranheza para as pedras durante algum tempo e depois aceita,
sentando-se no banco que era do meu amigo. Apetece-me avisá-lo dos malefícios
do tabaco, mas ainda é muito cedo para isso…
Com o exemplar diagnóstico de que " A solidão não É um exclusivo da velhice.", que subscrevo, fica a pergunta (utópica?):
ResponderEliminar-Quererá a população sénior contribuir para diminuir a carência de interação humana em que muitas crianças e adolescentes vivem?
O problema, quanto a mim, é que as crianças e adolescentes, com os seus sentidos atrofiados pelos exageros a que estão sujeitos, não sabem o que perdem com essa interacção. E assim se vai perdendo grande parte da nossa cultura que se exprime mais nas vivências do que na escrita.
EliminarSe as crianças e os jovens estão atrofiados, foram os adultos que lhes proporcionaram os contextos para que tal acontecesse. É preciso imaginar uma forma de voluntariado de humanidade e cultura a implementar nas escolas. Não temos de os ensinar, temos de viver com eles situações de verdadeira interação humana, com a qual todos aprendamos.
EliminarUm final que alivia o registo triste do texto - a interação de gerações. Quanto à pergunta da Fernanda, arriscaria uma resposta positiva. A interação de gerações nas fases opostas da vida seria uma benesse para as mesmas e para toda a sociedade. Isso passa pela mudança de mentalidades dos adultos, pela educação dos mais novos e, necessariamente, por alteração das circunstâncias que os envolvem. Se se conjugarem várias vontades, política e outras, podemos encetar o percurso que nos conduzirá a essa meta.
ResponderEliminarA solidão é terrível.Este texto não precisou de ser extenso para dizer o essencial. Que bom seria se os jovens interagissem com os séniores. Beneficiariam em conjunto. Oxalá cheguemos a esse percurso o mais rápido possível.
ResponderEliminarA globalização que respiramos parece não ter "remendos" para a falta de interação entre as (todas) gerações. Temos todas as ferramentas mas a sociedade (todos nós)decadente vive num suicídio remetendo para a solidão o indivíduo. Outras opções, outras opções...
ResponderEliminarO Jorge é muito rigoroso na análise que faz às diversas etapas e aos acontecimentos da vida mas fá-lo sempre com uma vertente simbólica o que transforma os seus escritos numa torrente de retratos sociais dignos de revelação e aprofundamento. É verdade que as crianças podem ser por vezes cruéis e incapazes de ouvir ou ver a vertente para além do eletrónico. Mas quantos de nós, adultos, dedicamos algum do nosso tempo a "brincar" com eles? E esta brincadeira não pode começar quando os vemos só agarrados á playstation ou à TV. É uma "brincadeira/afeto" que tem de começar mal a criança nasce e inicia o seu desenvolvimento. Depois é só desenvolver a atividade Parabéns, Jorge, continuamos a querer partilhar os seus projetos.
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