domingo, 28 de abril de 2013

Incoerências

A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! 
Obrigada. O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

Texto IV

Conceição Cação

Cancro era uma palavra medonha
Às duas meninas, as mais ligadas ao avô Albano, ambas no estrangeiro, chegou-lhes, em roupagens eufemísticas, o nome da doença: diabetes. Cancro era uma palavra medonha, um tabu. Dizer-lhes que o avô estava nos cuidados paliativos iria preocupá-las muito. E para que serviria? Uma tia, a quem telefonaram, considerou mais justo revelar-lhes a verdade; ofereceu-se até para as ajudar, caso pretendessem fazer-lhe a última visita. Demasiado tarde! A decisão teria de ser muito rápida. Os filhos, emigrantes, estiveram com ele no início do internamento no hospital, mas depois regressaram aos seus trabalhos. O filho, o Vítor, ainda quis voltar novamente. Que podia vir – opinou alguém  – mas não vinha cá fazer nada.
Íamos visitar o senhor Albano
Naquela tarde, a caminho da aldeia, fizemos um pequeno desvio: íamos visitar o senhor Albano. Um painel colocado na fachada facilitou-nos a identificação – Barco Azul. O edifício, térreo, semelhante às restantes casas da aldeia, levou-me a imaginar um ambiente familiar, acolhedor. Por cima do muro, baixo, lancei um olhar avaliador: interrompendo, de onde em onde, a monotonia cinzenta do betão, pequenos canteiros, onde as sardinheiras salpicavam de vermelho o verde, pouco convicto, da relva a suplicar mais assistência. Paredes-meias com o lar de idosos, um infantário. Menos mal! Talvez as brincadeiras dos pequenos, os seus risos, o alarido da brincadeira pudessem atenuar a melancolia dos idosos.  
Tanto ruído e silêncio
Pura ilusão! Entrámos. Do hall, em semiobscuridade, passámos a um corredor e depois a outro – paredes nuas, sem cor. Cruzámo-nos com alguns idosos, que, ignorando a nossa saudação, se arrastavam, de cabeça baixa, capitulando ao peso da degradação, do abandono, da solidão. Arrancados ao seu cantinho, despojados de família, amigos, ambientes, sentiam que tinham deixado para trás a sua dignidade, a sua própria identidade. O acaso ou qualquer poder acima da sua compreensão tinha-os juntado, na última etapa da jornada, todos no mesmo barco. Tudo ali lhes era estranho: o barco, a tripulação, os companheiros… Neste barco, sempre de velas enfunadas, lá iam fazendo a travessia. Uma viagem sem regresso. Já se tinham despedido do mundo, do seu mundo; faltava apenas o último adeus. Tudo o que desejavam era alcançar a outra margem, envolta em densa neblina, mas o desconhecido já não os perturbava, parecia até atraí-los. Iriam, assim esperavam, deixar para trás o sofrimento.    
E eis-nos no quarto. Paredes pálidas, cor de agonia; janela semicerrada. Mal destacadas na penumbra, uma cama de hospital; uma pequena mesa retangular, encostada à parede – o apoio para uma garrafa de água, um iogurte… O quarto deve ser funcional. Para quê carregar o espaço com objetos inúteis, se já não restam olhos para a beleza?
Uma vida - um nome
E lá estava o senhor Albano, em posição fetal; o rosto cadavérico, irreconhecível; o corpo, esquelético, a negar-lhe os movimentos. Só com ajuda, a da sua incansável afilhada, a Madalena, que lhe dedicou muito do seu tempo, envolvendo-o sempre em extremo carinho. Pouco falou, mas ouviu-nos com atenção. Vimos até o seu olhar iluminar-se quando lhe falámos do filho, das netas…
Àquela hora, lá longe, as lágrimas rolavam pelas faces dos filhos, entregues às suas rotinas; as netas, procurando mitigar a dor entre os seus círculos de amigos, alheavam-se das conversas, estendiam o pensamento até àquele homem, tão longe e tão dentro do coração.
Numa aldeia, perto dali, num café à beira da estrada, os amigos, reunidos para a sueca, olhavam tristemente a cadeira vazia do Albano e lamentavam a ausência daquele parceiro, mas o jogo prosseguia.
Tanta gente,tantas flores,
tantas lágrimas...
Saímos. Lá fora, a luminosidade daquele sol de verão devolveu-me à outra realidade. Ia estar com amigos, no dia seguinte haveria festa. Enfim, a vida continuava.
Poucos dias depois, chegou-nos a notícia da morte. Uma morte esperada. Quase todos compareceram, filhos, outros familiares, amigos, conhecidos, o cemitério cheio… Flores, muitas flores.
Quando todos se retiraram e o cemitério regressou à sua paz, já instalado na campa, ao lado da da esposa – tinham-nas adquirido alguns anos antes, menos uma preocupação para os filhos – o senhor Albano tentou a comunicação:
- Lúcia, estás a ouvir-me? O meu funeral foi muito bonito, não foi?
Do outro lado, silêncio.
Sinal de concordância.
- Tanta gente, tantas flores, tantas lágrimas… Nunca pensei… E eu que tantas vezes repeti à minha querida afilhada, numa voz cada dia mais sumida: “Se não fosses tu, Madalena, eu não tinha ninguém”.
E mergulhou no sono eterno.

5 comentários:

  1. Conto exemplar pela seleção dos elementos e apresentação das imagens que dão moldura à morte.
    Conto perturbador: por exemplo, com a frase "capitulando ao peso da degradação, do abandono, da solidão."
    A degradação nunca se aceita...
    O abandono e a solidão não são só uma questão de família. É também uma questão social, mas que não pode passar por armazéns de velhos. Estes, até podem desejar "alcançar a outra margem", mas sem serem envolvidos em neblina.
    A vida é vida e a morte é morte. Entre as duas, o abandono e a solidão são o pior sofrimento.

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  2. Concordo plenamente contigo, Fernanda. Mas infelizmente há exemplos por aí, de pessoas totalmente sós. Rodeadas de pessoas, mas sós. Este texto muito bem escrito e tão bem relatado deixa-me pensativa. É a realidade que temos.

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  3. Dolorosamente real: quase se sente nas linhas e em cada palavra que se entrecruza e se entrelaça. Complicada esta vida que nos não permite viver perto de quem nos fez crescer e cuidar de quem nos cuidou. Às vezes a solidão não é feita de ausências mas de presenças ausentes a que a distância alonga e a vida obriga. Estar longe pode não ser deixar de gostar – é, hoje em dia, uma exigência da vida em sociedade. Pode até ser uma dolorosa forma de gostar. A sociedade familiar em que se entrecruzavam várias gerações quase que desapareceu. Infelizmente! Essa era talvez a melhor forma de humanizarmos a vida e completarmos um ciclo perfeito.
    Um trabalho pleno de reflexão e intimidade cuja ilustração se tornou extremamente difícil: espero ter correspondido ao pensamento da autora. Excelente, São!

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    1. Claro que correspondeu, Albertina. Como habitualmente, a sua seleção de imagens clarifica e corrobora a mensagem do texto.
      Bem haja!

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  4. Há pessoas esquecidas em hospitais... Nunca morri,não sei como será. Não sendo rapidamente, talvez seja menos má, se sentir uma mão amiga. "Incoerências" coerentemente retrata com grande profundidade o que de mais cruel pode acontecer no fim da vida. O mais incrível é considerar-se que a morte é só a última etapa da vida, mas esta, a nossa sociedade, aquela em que havemos de morrer,investe em flores, em carros, cerimoniais, em caixões...

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