sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Casa dos meus Avós Paternos


Maria Jorge


Agora que as noites são mais longas e a idade vai avançando, sentada à lareira, olhando o crepitar da madeira que me vai aquecendo a casa e o espírito, dou por mim, recuando no tempo, a recordar a minha meninice e o quanto fui feliz em casa dos meus avós, apesar das parcas condições de habitabilidade que a mesma tinha comparada com os tempos de agora, onde, por exemplo, a eletricidade, o saneamento ou a canalização da água eram ainda uma miragem.
Era uma casa pequena
Era uma casa pequena, toda feita em adobe e caiada, mesmo à beira do caminho com uma porta ao meio e duas janelas com portadas interiores. Essa porta só era aberta em dias muito especiais. As janelas correspondiam a duas divisões sendo uma da sala do senhor que era composta por uma mesa que tinha como ornamentação um crucifixo, uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, o anjo da guarda, e outras imagens de santos da devoção dos meus avós e ainda por uma lamparina com uma vela que era acesa de vez em quando; duas cadeiras completavam a decoração da sala. A outra janela correspondia ao quarto principal, cuja decoração era composta por uma cama não muito grande, um guarda-fatos, duas mesinhas de cabeceira, uma cómoda e ainda um lavatório em esmalte, que era composto por uma bacia um jarro colocado dentro da bacia e um balde para aparar a água quando era; paralelamente à bacia, um varão onde se colocava uma toalha, que tinha de estar sempre impecavelmente lavada, já que tinha como finalidade ser usada por alguém de referência, como por exemplo, o médico ou o senhor prior.                                                                                            
Este quarto só era usado quando alguém estivesse seriamente doente e precisasse da visita do médico ou ainda onde era depositado alguém que morria enquanto não era levado para o cemitério. Esta divisão comunicava com a sala do senhor que, por sua vez, dava para o interior da casa, onde era o quarto dos meus avós e uma sala grande, com janela para o pátio, que comunicava com a cozinha principal, através duma cortina que servia de porta. No quarto, que não tinha janela, havia apenas uma cama encostada a uma das paredes, uma mesa pequena e baixa que servia de mesa-de-cabeceira onde estava o candeeiro de petróleo, uma arca onde era colocada a roupa de cama e ainda uma cadeira; na sala existia uma mesa grande, servida de bancos corridos de igual tamanho da mesa, um aparador que era ornamentado por papel colorido que era cortado minuciosamente com uma tesoura e que dava efeitos muito bonitos. 
Aqui era colocada a loiça, toda ela de barro pintado e também de alumínio; a um canto existia um banco alto onde era colocado um pote em barro natural que conservava a água sempre fresca, trazida da mata, quando se ia lavar a roupa e que estava sempre coberto por um pano branco; a completar a decoração, havia uma enorme lareira que por cima tinha uma prateleira a todo o comprimento da mesma, também ela decorada com os ditos papeis coloridos e recortados, onde era colocada a loiça em cobre, tal como o tacho de fazer os rojões e outra de menor dimensão. Esta sala dava para o pátio da casa, onde existia outra cozinha pequena, também com uma lareira onde se fazia praticamente tudo, desde o defumar dos chouriços, cozinhar para os animais e fazer a nossa comida. 
Panela de ferro
Para isso existia uma trempe no centro da fogueira, onde era colocada uma panela de três pés, em ferro, para fazer o nosso comer e, para os animais, havia um latão; nesta cozinha havia também a salgadeira que não era mais que uma enorme caixa em madeira, onde era colocada a carne de porco, após a matança e que era conservada camada sobre camada alternando o sal novo com uma de carne e que daria até à próxima matança; havia ainda os potes, também em barro, onde se conservavam os rojões; faziam-se todas as refeições numa mesa muito rudimentar com 4 bancos e quem viesse e não tivesse onde se sentar ia ao pátio procurar qualquer coisa que servisse para o efeito. Era também nesta cozinha que tomavam banho semanalmente, de água quente, num alguidar em zinco.
No pátio existia um pequeno poço de água coberto. Ao lado, tínhamos a bomba de tirar água. Em frente à casa principal e, por esta ordem, havia a retrete, o curral dos porcos, o curral da vaca e o celeiro, onde se guardavam as batatas, o milho, as abóboras, palha para os animais e as alfaias agrícolas; as galinhas andavam à solta e quando a noite se aproximava procuravam um canto no curral da vaca para se resguardarem; mais ou menos a meio do pátio existia a estrumeira para onde iam todos os restos de comida e não só, era depositado tudo que servisse para estrumar a terra e não servisse para os animais.
O pátio era servido por dois portões: um, nas traseiras, que dava para o terreno anexo à terra que era cultivada todo o ano para sustento dos meus avós e ainda para quem batesse à porta. No terreno havia ainda um poço grande e profundo, com alcatruzes que, puxados pela vaca, regava o que estivesse cultivado. 
Fazia-se a meda de palha
A um canto, no final do verão, fazia-se a meda da palha que não era mais que uma armação em madeira, com um espaço interior onde as pessoas se pudessem movimentar e que também dava para brincarmos; na parte exterior era colocada, em camadas, a palha proveniente do milho. Esta palha servia para alimentação do gado existente e ainda para substituir a palha dos colchões. O outro portão, que era o principal, dava para a rua. Era bastante largo, de modo a que o carro da vaca pudesse passar, e era feito em duas metades. Numa das metades, havia uma porta que servia de passagem às pessoas. Esta porta era fechada ou aberta por uma tramela. Não havia necessidade de haver portas fechadas à chave, trancas ou cadeado.

5 comentários:

  1. Que memória e que grande lição de "História da vida privada"! A coerência, o pormenor e a ternura são as tintas com que foi conservada a casa dos avós paternos.
    Tudo nos foi fazendo e com tudo nos vamos reconstruindo.
    Lição de fidelidade às raízes! Obrigada, Maria.

    ResponderEliminar
  2. Realmente,Maria, as casas de então eram uma tristeza, mas eram mesmo assim. Estava a ler o teu texto e ao mesmo tempo a visualizar outras imagens semelhantes.Foram essas mesmas casas que nos viram crescer.Memórias belas.

    ResponderEliminar
  3. Este é o mundo rural que eu bem conheço. E é encantadora esta descrição. Tão minuciosa, tão real... O cenário patenteia-se aos nossos olhos, as personagens ganham vida, movimentam-se... É um capítulo da nossa história que nos revisita.
    Muito bem, Maria!

    ResponderEliminar
  4. Uma forma de visitar o passado afectivo com imensa ternura e minúcia.Recordar é também viver!

    ResponderEliminar
  5. O poder de descrição minuciosa deste trabalho fez-me parar e refletir sobre uma realidade que não está assim tão longe quanto se julga. Entrei, durante o meu trabalho profissional, em muitas casas como a dos teus avós e não me parece que as pessoas fossem menos felizes do que as que vivem em apartamentos fechados, em prédios tão próximo de tudo e tão isolados de si mesmos.Nem mesmo penso que a felicidade possa ser associada a riqueza ou pobreza - a felicidade é uma busca contínua que parte de dentro e se encontra no outro. É isso que encontro neste texto Maria: uma felicidade enorme que se reflete no teu olhar minucioso e no teu orgulho pelas tuas raízes. Gostei muito, muito, Maria!

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...