Conceição Cação
Uma
onda de calor invade-me o rosto, o coração bate aceleradamente… Sem
ressentimento pela minha longa ausência, o Bairro Norton de Matos (o meu Bairro
Marechal Carmona) abre-se-me como um livro de história, de estórias. A dominar
a colina, acolhe-nos, prazenteira, a rua de Angola. A emoção em crescendo,
caminho ao longo do passeio empedrado. Como num espelho, os raios de sol
miram-se na calçada polida; mais além, pedras soltas clamam pela mão que as
enquadre no puzzle e faça renascer a
estrela que deixaram apagar. Como num índice, vão-se apresentando as ruas
principais que, bem alinhadas, terão o seu epílogo na rua de Moçambique,
contracapa deste livro de páginas de betão. Entro na rua Vasco da Gama. As
mesmas vivendas de outros tempos, bem conservadas, quase todas mantêm a traça
inicial. Agrada-me ver que este bairro, resistindo à febre imobiliária, soube
preservar o seu património e a qualidade de vida dos seus moradores. Lá está a
casa da Maria João, mais além a da Arlete… Onde estarão as minhas colegas do
liceu? Os jardins, bem cuidados, lembram-me que ali a vida continua a fluir,
aquelas paredes vão acumulando décadas de memórias, enquanto acolhem no seu
seio geração após geração. Viro à direita para a rua Bartolomeu Dias… Sim, toda
a toponímia evoca os tempos áureos dos descobrimentos, do império, bem ao gosto
do Estado Novo.
Bairro Norton de Matos |
Chegámos
agora a um pequeno jardim – vários bancos de pedra, um retângulo de relva ao
centro bordejado de petúnias multicores; dois renques de árvores frondosas
prontas a oferecer sombra a alguém que, passando, ali queira aliviar o cansaço
ou simplesmente deleitar-se com aquele pedacinho de paraíso. Num painel de
azulejo, pode ler-se Praça da Índia
Portuguesa. Anacronismo e quietude a transportarem-nos para outras eras.
...um pequeno jardim |
De
súbito, duma moradia em obras, dá-se início a um martelar incessante. É melhor
afastarmo-nos. Mas inesperadamente algo nos detém – junto dum contentor verde,
em cima dum pequeno muro, vários livros, alguns deles dentro dum saco de
supermercado. Livros de capa rígida… Vejamos: Contos da Cantuária – sim, o conto do Moleiro, da Freira… Parece-me
um sonho! Quantas recordações me despertam! E que mais? Ah! Balzac, Fielding,
Galland, Dostoievski, Tolstoi. Olha, estão novos, até parece que nunca foram
folheados! Porque terão ido parar ali?
Trinta centímetros de literatura |
Trinta centímetros de literatura
certamente adquirida para completar a decoração duma sala. Será que a
simplicidade da lombada já não satisfaz os gostos dos novos locatários? Muito
novo-riquismo e pouco amor à arte? Nunca o saberemos. Como filhos indesejados,
foram ali abandonados para que a sensibilidade dos transeuntes decidisse o seu
destino. Não, o lixo não! Penso nas minhas estantes, os livros já arrumados em
segunda fila… Não importa, não tenho nenhum destes, já os li há muito, hei de
voltar a lê-los um dia. Depois, bem, depois posso guardá-los (mais umas boas
horas de leitura como herança para os filhos e netos), doá-los a uma biblioteca
ou, quem sabe, poderão até seguir para a banca da Paula, que certamente
apreciará o aumento do seu stock de livros
usados. Assim, tomada a decisão, como a fragilidade do saco ameaçava soçobrar
ao peso daqueles tesouros, transportei-os ao colo, bem juntinho ao coração.
Revejo-os a todos... |
E cá
está a rua da Guiné, a minha rua. Aquela era a casa onde vivi parte da
adolescência. Também ela mantém ainda a antiga fachada. Só a cor mudou: as
paredes amareladas a contrastar com o verde das portas e janelas dá-lhe um ar
digno de quem soube acompanhar sucessivas gerações, adaptar-se continuamente e
resistir corajosamente aos efeitos devastadores do tempo. O que haverá por
detrás daquelas cortinas de renda? A entrada, estreita, deixa entrever parte do
pátio. Era ali que nos reuníamos para conversar depois de terminar as tarefas
escolares. Revejo-os a todos: a Lídia, o Afonso, a Lurdes, a Luísa e também o Zé e a Clara, os universitários que nos
olhavam com um sorriso condescendente do alto da sua erudição de capa e batina.
Vasos de begónias
garridas ladeiam o cinzento tristonho da passagem. Indiferente
à minha presença, um gato de pelo preto luzidio transpõe dum salto o pequeno
portão de madeira e, após um breve avanço decidido, para e fixa o olhar na
árvore do quintal contíguo, onde dois pássaros chilreantes esvoaçam de ramo em
ramo.
Um
pouco contrariada, afasto-me deste cenário nostálgico. Levanto os olhos para o
céu. As nuvens, ainda há pouco graciosos castelos de algodão a coroar o azul
celeste, já se carregaram dum cinzento ameaçador. Os raios de sol são agora
mais pálidos. O outono a impor-se a um verão desejoso de continuar. É preciso
iniciar a viagem de regresso.
Salvei os Clássicos! |
Em
silêncio pela nacional, satisfeita, vou revendo os títulos resgatados. Vou relê-los
sim, todos! Sob um céu de chumbo, rompem-se as nuvens, precipita-se sobre a
estrada uma chuva diluviana. Bem aconchegados no banco de trás, o príncipe
Michkin, Ana Karenine, Tom Jones, Lucien Chardon, Xerazade, o Moleiro… salvos
das águas. Na praça deserta, o velho dicionário e a gramática de francês de
folhas amarelecidas estarão a ser transformados pela chuva impiedosa numa
amálgama ininteligível e inútil.
Sinto-me orgulhosa – revisitei o passado e salvei os clássicos!
Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal
Orgulhosa e com motivo grande. A vivência da personagem traduz um dilema muito intenso que a sociedade nos vai colocar, cada vez com maior frequência. O texto digital tenderá a impor-se e banir o texto impresso?
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