quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Outra visão da vida

João morava na capital. Filho único de uma família mediana, na impossibilidade de entrar na Universidade estatal por falta de média, frequentava o segundo ano de economia na Universidade Lusíada. Os pais faziam o sacrifício económico, porque até então João não tinha perdido um único ano. Conheceu a namorada, de seu nome Sofia, na escola secundária e desde então nunca mais se largaram.    
Gostava de se divertir com os amigos
Era um jovem igual a tantos outros, não lhe eram conhecidos vícios, mas gostava de se divertir com os amigos, namorar e ir aos bares do Cais da Rocha aos fins de semana. Aos domingos de manhã, em qualquer época do ano, ia surfar para o Guincho, outra das suas grandes paixões. Remar para uma onda, apanhá-la, envolver-se e acompanhá-la, navegar na crista e meter-se dentro do túnel deslizando ao sabor da mesma era como viver o sonho de sentir o oceano em toda a sua plenitude. O stress duma semana de trabalho estudantil e o caos citadino eram postos para trás das costas. O voo rasante das gaivotas e o barulho das ondas era a perfeita harmonia para uma liberdade total.    
Compreendendo o sacrifício que os pais estavam fazendo, tinha como objetivo principal não chumbar ano nenhum e, mesmo que deixasse alguma disciplina para trás, iria fazê-la no semestre seguinte.  
Aos dezoito anos os pais fizeram mais um sacrifício e João tirou a carta de condução.O dinheiro que tinha amealhado por ter trabalhado em ATL’s durante as férias grandes não era suficiente para comprar um carro, mesmo em segunda ou quarta mão. Mas os pais, uma vez mais, arranjaram o restante. Afinal João era filho único e merecia tudo e até precisava mesmo do carro, assim não ficava dependente dos outros para as suas deslocações. Já podia ir para o Guincho sem ter que pedir ao pai para o levar, por exemplo.
Era inverno. Apesar de no sábado ter chovido torrencialmente em todo o país, o amanhecer
A paixão pelo mar
de domingo apresentava-se com o céu limpo e o sol um pouco envergonhado começava a despontar. 
João telefonou à namorada para irem até Cascais, queria ir surfar. Sofia, que além de namorada era a sua melhor amiga e sua confidente, acedeu. Compreendia perfeitamente a paixão que tinha pelo mar e como era belo e deslumbrante ver o João dentro daquele túnel ou como se equilibrava na crista das ondas, algumas tão altas e terríveis que metiam medo a qualquer Adamastor.
De regresso a casa, o sol continuava o seu ciclo de secagem do dia anterior, muito embora ainda não tivesse sido suficiente, porque aqui e ali ainda havia muita água na marginal. 
Depois de uma manhã tão bem passada, vinham felizes e João colocou um CD dos Simon & Garfunkel, o ambiente convidava a ouvir “The sound of Silence”.
O inevitável aconteceu!
Quando estavam a entrar na curva do Mónaco, e apesar de seguir numa velocidade mais ou menos moderada, não conseguiu segurar o carro. O inevitável aconteceu. Capotou, não se sabe ao certo quantas voltas deu. Apareceram os bombeiros, era preciso desencarcerar o João, ficou preso naquela amálgama de destroços e estava inconsciente; Sofia parece que teve mais sorte, não podia mexer a perna e o braço esquerdo. Atendendo à gravidade, João foi conduzido para o Hospital S. Francisco Xavier, enquanto Sofia para o de Cascais.
Ao fim de dois meses João despertou do coma induzido tendo à cabeceira a Sofia ainda de canadianas. Não se lembrava de nada, o que tinha acontecido, porque estava ali e, pior que isso, não sentia as pernas. Sofia não encontrou resposta para todas as perguntas e achou por bem ser o médico a dar-lhas.
E o terrível diagnóstico foi-lhe dado. João tinha ficado paraplégico. Uma lesão a nível da medula lombar ia impedi-lo de ser uma pessoa igual a tantas outras. Tinha perdido a coordenação motora e sensibilidade das pernas, porém iria manter o controlo do corpo e a força nos braços e nas mãos; iria fazer uma vida quase independente já que se poderia deslocar numa cadeira de rodas, poder-se-ia fazer transportar num automóvel adaptado, poderia ainda praticar alguns desportos adaptados, enfim, dentro de todas as suas condicionantes, não seria um mal maior. Agora teria de se adaptar à nova realidade, teria de aprender a fazer uma vida diferente, de nascer outra vez. Tudo isto lhe foi explicado com todo o cuidado pelo seu médico assistente.
Às palavras do médico, João reagiu muito mal, só queria morrer, não queria aprender a
Agora teria de nascer outra vez
viver outra vida diferente, queria que lhe devolvessem a que tinha anteriormente. Demorou alguns meses a encarar a dura realidade. Diariamente fazia-lhe muito bem a visita do psicólogo e as suas melhoras surgiam a olhos vistos, agora só queria saber quando poderia sair dali, afinal já tinha perdido tanto tempo naquela cama do hospital e tinha muita coisa ainda para fazer.
Quando saiu do hospital, João começou a elaborar prioridades. Começou por fazer fisioterapia no Hospital da Parede, aprender a deslocar-se na cadeira de rodas e não queria abandonar as consultas de psicologia. O curso de economia, esse ficaria para o final das prioridades. Foi interrompido e para já, não iria pensar mais nele.
Ao fim de um ano, João já sabia o que queria para o seu futuro. Teve uma conversa com os pais, na qual manifestou a sua vontade de desistir do curso de economia, queria tirar o de psicologia aplicada.
...fazer o que mais gostam.
Hoje João, casado com Sofia, sua eterna companheira, confidente e amiga, é pai de duas crianças maravilhosas. Entre outras coisas, dá aulas gratuitamente a crianças que se querem iniciar no surf; é um brilhante psicólogo e sempre que é convidado, dá palestras de norte a sul do país mostrando o lado positivo da vida, baseando-se na sua vida real.
Mas, apesar de toda a felicidade, um vazio na vida de ambos precisava de ser preenchido. E foi assim que Sofia aprendeu a arte de surfar e sempre que lhes é possível, vão para o Guincho fazer o que mais gostam. 

Afinal, em qualquer aventura, “o que importa é partir, não é chegar”. 


Maria Jorge ©2014,Aveiro,Portugal

2 comentários:

  1. Este trabalho revela que na realidade há sempre uma hipótese mesmo que ela se apresente ao fim dum longo e escuro túnel, quando tudo parece ter ruído e nada está de pé. E transmite-nos com muita certeza que, como o texto relata, “o que importa é partir, não é chegar”.

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  2. Quantas vidas como a do João se deparam com etapas tão difíceis de vencer... a derrota, o abatimento conduzem ao imobilismo, próprio dos que desistem... partir, ir em frente à procura, tantas vezes, de uma simples luz... o resto ou algo mais surgirá. O caminho faz-se andando: "O que importa é partir, não é chegar".

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