Fernanda Reigota
Tentava perceber o que se estava a passar. O
leito paradisíaco que desde sempre conhecera, transformava-se. O amortecedor de
líquido em que costumava saltitar nas horas de atividade esvaziara-se, mas a
temperatura, a maciez e a sensação de satisfação continuavam. Apenas o
aconchego ficara um pouco mais aconchegado. Pouco a pouco começou a sentir-se
verdadeiramente apertado, sendo mesmo expulso do seu leito primordial.
Olhou para aquela porta que tinha sido obrigado a transpor, mas depressa novas
sensações prenderam a sua atenção: gritou e assustou-se com o seu próprio
grito, respirou e espantou-se com aquele vento ligeiro que ia lá dentro
refrescá-lo e depois saía quentinho, abriu os olhos e, por causa daquela luz
forte, fechou-os imediatamente, quis sentir o seu corpo e a pele não era a
mesma. Uma voz conhecida falava em roupinha. Era melhor descansar, dormir, logo
compreenderia o que lhe tinha acontecido.
...a porta que tinha sido obrigado a transpor... |
Tal como aquela criança, naquela maternidade
já tinham nascido muitas outras naquele dia. Todas tinham passado por sensações
idênticas, todas haviam transposto a
porta da vida. Branca, com algumas marcas genéticas, esta porta fora a
primeira de muitas outras que pautam todas as vidas.
À volta daquela criança projetava-se e
movimentava-se em espiral um feixe de luz em contínuo movimento circulatório:
este rasto de luz ia construindo a estrada do seu tempo e o tempo da sua
estrada. Inexoravelmente a criança acompanhava esse traçado desde a porta de
entrada para a vida.
Aquele feixe de luz encobria muito mais do
que aquilo que mostrava. Se olhava para a esquerda perdia, para sempre, a
oportunidade de conhecer o que o tempo tinha acabado de levar. Neste espaço de
tudo e de nada, a criança não podia falhar a escolha ou a recusa da próxima
porta que cruzasse o seu caminho. Recusou a porta da ignorância e
rapidamente
teve de decidir: é que, mesmo pegada a ela, vinha a porta da curiosidade. Atravessou-a e, já do lado de dentro, reparou
que estava decorada com as conquistas mais significativas que tinham nascido do
sonho humano. Intuiu a importância do sonho e do conhecimento para a vivência
da estrada do Tempo e do tempo da estrada, enquanto observava as sugestivas
pinturas de belos monumentos, sinfonias reveladoras do som cósmico, teatro,
dança, globalização, aventura, magia científica, tecnologia, velocidade...
Então, sentiu-se a saborear o cheiro inebriante da felicidade possível. Foi assim
que enxergou uma mancha que servia de base a toda aquela maravilha: era uma
amálgama de poluição que arrastava a vida do planeta Terra para a não
sustentabilidade.
...a porta da curiosidade... |
Tinha companheiros, mas a maior parte do
tempo a viagem era feita em silêncio, embora todos fossem falando,
maravilhando-se com as suas próprias palavras. Apesar disso, conseguiu
sintonizar-se com algumas outras crianças para brincarem. E um arco-íris de sonho e descobertas
desenhava-se sobre as suas estradas.
O tempo da sua estrada, esse continuava a sua
caminhada imparável numa marcha lenta, parecia-lhe. Mas a sua estrada do Tempo
transformara-se: aos seus olhos parecia-lhe uma gigantesca árvore deitada,
sobre o eixo temporal. No tronco, junto à raiz, costumava refugiar-se para
observar o mundo possível. Sabia que a sua visão não era absoluta. Pelo
contrário, tinha um ângulo limitado e limitações acrescidas pela reduzida
superfície iluminada pelo feixe de luz projetado em contínuo movimento
circulatório à sua volta. Desta forma, consciencializou que muito conhecimento
ficava perdido para sempre. No entanto, era fácil deslocar-se aos espaços a que
as portas já transpostas e conquistadas lhe proporcionavam. Outras portas que já
franqueara haviam sido a porta da
tradição e a porta do inconformismo: haviam-se apresentado em espelho e,
por isso, passando uma, a outra era automaticamente transposta. Quando a luz
iluminou a porta da tradição, foi atraído pelas suas belas pinturas: festas
ancestrais, os rituais das estações do ano, a relação do homem com a Natureza,
tudo apresentava cores fortes, aveludadas e saborosas. Essas pinturas até
pareciam exalar um perfume a ternura, a humanidade. No entanto, reparou que
havia alguns desenhos a tinta negra, de recortes miudinhos. Observou-os e viu
cenas de crianças e homens explorados, humilhados, sacrificados, viu mulheres a
serem violentadas, espancadas, mortas, viu que o trabalho libertador e
participado estava outra vez a dar lugar ao trabalho escravo que nenhuma
realização pessoal trazia a quem o executava para não morrer à fome. Quer
dizer, para morrer à fome, mas mais lentamente.
Portas que se apresentam em espelho |
O impulso foi procurar refúgio e transpôs-se
para a porta do inconformismo.Tomou consciência de que cada espaço era
frequentado por outras pessoas com interesses comuns naqueles momentos de
partilha. Consciencializou também que o tempo da sua estrada havia acelerado um
pouco. Como todas as portas que já penetrara, também aquela era robusta,
austera e até um pouco tosca, quando vista do lado de fora. A diferenciação das
portas era interior e nesta atraiu-o a longa lista de laureados com o Prémio
Nobel da Paz. Foi lendo alguns ao acaso. Ou talvez estivesse a ler aqueles a
que não fora associada qualquer reticência:
Comité internacional da Cruz Vermelha,
UNICEF, OIT, Amnistia Internacional, Médicos sem Fronteiras, Martin Luther King
Jr., Madre Teresa de Calcutá, Tenzin Gyastso (Dalai Lama), Rigoberta Menchú
Tum, Nelson Mandela, José Ramos-Horta, Wangari Maathai, Al Gore, Ellen Johson
Sirleaf,Leymah Gbowee,
Estupefacto com tanta pessoa que, desde
sempre, se manifestou inconformada com a barbárie do ter sobre o ser,
estupefacto por tanta mulher e tanto homem terem dedicado a vida a lutar pelos
Direitos Humanos, pela irradicação da fome e pela melhoria das condições de
saúde e conforto da humanidade, sentiu necessidade de alguma atividade física.
Precisava urgentemente de desentorpecer os músculos. Aconchegado por uns raios
de sol primaveril, caminhou ao longo de uma vereda que protegia campos onde a
vida germinava como promessa renovada em cada Primavera. Ao longe, um campo de
malmequeres amarelos atraiu-lhe o olhar e foi a testemunha de uma ideia que lhe
surgiu: os homens verdadeiros e os verdadeiros homens nunca vendem nem o génio
nem a alma.
Novamente consciencializou que o tempo da sua
estrada havia acelerado um pouco mais. Era jovem e novas portas passavam,
insinuando-se. Foi atraído pela porta do
amor
e do sexo. Espaço esquisito, aquele: era o primeiro espaço que,
transporto, apresentava uma porta rotativa que lançava as pessoas no espaço do
sexo ou no espaço do amor e sexo. Tinha de observar e experienciar com muita
perspicácia aquela novidade. Foi permanecendo. E a sua primeira admiração foi
para o facto de a porta principal ser exteriormente igual às outras, mas pelo
lado de dentro ser apenas pintada de branco, como uma folha de papel que se
oferecesse a cada pessoa para nela escrever de forma individual, ou como uma
tela que pintasse a seu gosto e ao sabor das circunstâncias. Um pequeno
letreiro advertia que, uma vez iniciada a escrita ou a pintura, a folha ou a
tela plasmar-se-ia no interior da própria pessoa.
Porta do amor e do sexo |
Porta da preguiça e da acomodação |
Sim, visitaria com frequência aquele espaço,
mas tinha de começar a reparar noutras portas, pois o movimento da sua estrada
do Tempo estava a tornar-se alucinante e a vida, sabia-o já, tinha de ser
continuamente enriquecida. No entanto, foi adiando este propósito e por simples
curiosidade e por ver tantas vezes a porta
da preguiça e da acomodação insinuar-se-lhe, um dia entrou e foi-se
entretendo por ali.
Foi assim que a tecnologia do seu tempo o foi
enredando longos dias. Sempre de telemóvel no bolso, nunca perdia de vista o
seu iPod ou o seu Tablet. Conectava-se e entrava em órbita durante longas
horas, vivendo da verdade da ilusão virtual. Passou a conviver com pessoas que
consumiam almofadas químicas para descansarem do stress e aliviarem o tédio que
a vida causava. Também transpôs esta porta algumas vezes, mas passou a não se
sentir confortável naquele espaço desde que descobriu, na parte interior da
porta, lá muito em cima, uma expressão em letras muito pequeninas “Antecâmara
de morte prematura”. Sempre que lia aquela expressão procurava a porta do amor
e do sexo, entrava na porta rotativa e não se importava onde ia ser disparado.
Claro que a porta o largava onde tinha paragem automática: sexo.
Um dia, num restaurante com um grupo de
amigos teve um momento de paz como não sentia há muito tempo. O jantar
tinha-lhe sabido muito bem e, no momento em que terminava, ouviu uma
trivialidade que o fez sorrir. Não podemos viver para comer, temos de comer
para viver. Curioso! Ele tinha comido para viver ou vivia, entre outras duas ou
três coisas, para comer? O que era certo é que se sentia muito bem e aquela
amiga ocasional de grupo o divertia. Ela disparou mais algumas trivialidades em
direção de recetores muito bem escolhidos. Ao amigo que se tinha queixado da
sua sorte durante todo o jantar, aconselhou-o a preparar-se para o que
verdadeiramente queria ser. A outro, que desbobinou a sua vida como um rol de
vitórias, lembrou-lhe que na vida também se aprende muito com as derrotas e o
sofrimento.
Ele precisava de estar só. |
Ele
precisava de estar só. Queria saborear aquele momento de
felicidade como não vivenciava há muito tempo. Reparou na grande velocidade que
ganhara a sua estrada do tempo. A vida não podia ser aquela acomodação que
tinha vivido. Despediu-se daqueles amigos com quem jantara e foi ao encontro de
outros amigos com quem não contactava há muito, de quem não sabia novidades.
Que livros novos teriam publicado os seus autores preferidos? E entrou numa
livraria porque precisava de estar só, precisava de começar a reequilibrar as
portas da vida, incluindo a porta da leitura.
Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal
Num percurso que nos conduz através de uma viagem em que, degrau a degrau, se vai transpondo o caminho, como uma linha que se recorta e se encurva, este trabalho é uma enumeração das várias etapas que, queiramos ou não, vamos buscando (entrando, percorrendo e saindo) sem delas podermos distanciar as portas que se abrem ou se fecham de acordo com o desejo, a persistência ou a renuncia. E o caminho não se faz de uma forma estática mas, dinamicamente exploramos o desconhecido e procuramos encontrar sempre novas saídas ou novas portas que nos motivam para continuar a caminhada. Excelente, Fernanda, como sempre!
ResponderEliminarLamento a demora em vir aqui e pela qual peço desculpa. Se não tivesse vindo, perderia uma mensagem bem escrita, muito bem escrita, de alerta. Afinal, de quantos alertas que nos são dados e teimamos em não querer ver. Para além do texto, uma palavra ao aparo da caneta que o desenhou: muita qualidade na construção suave das frases. Com muito prazer aqui virei mais vezes. Obrigado, Fernanda.
ResponderEliminarObrigada, João Madeira! Será muito bem-vindo a este Blogue Evoluir. Ficamos a aguardar o prazer de outros comentários.
EliminarA estrada da vida percorrida por alguém que a ela não quer ficar alheia descrevendo com minúcia e profundidade os seus pontos vitais, reservando à leitura o poder da ajuda para o reequilíbrio da vida.
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