Uma em cada oito pessoas no
planeta passa fome, destaca um relatório divulgado pela ONU em 2013.
Um
dia vi uma colega desmaiar na sala de aula. Sem aparato. Sem aviso prévio. Um busto
de criança ruindo sobre o tampo da carteira, é isso que eu recordo. Depois, num
quase sussurro, o diagnóstico a passar de boca em boca: fome. A menina padecia
de fome.
Finais da década de 1940. Um tempo de profundas desigualdades sociais.
Em muitas aldeias do interior, a pobreza era endémica. Quando o trabalho e o
pão faltavam, punha-se a esperança na caridade do próximo. Ou então, com alguma
sorte, emigrava-se. Ou então, discretamente, como quem pede desculpa por
incomodar, desmaiava-se de fome.
Segundo Herta Müller, o anjo da fome, quando chega, chega em força. Apedreja
os corpos por dentro, derrubando aos poucos o vigor e a dignidade.
É
inverno na minha memória sempre que recordo aquela coleguinha de escola tombando
como punhado de neve sobre a carteira. Não há um único som colado à imagem. Porque
a fome amordaça as vítimas. Porque a fome labora em silêncio.
Porque a fome labora em silêncio |
Foi
nessa manhã, diferente de todas as outras manhãs, que pela primeira vez a minha
infância de bem-estar chocou de frente com uma realidade tão próxima mas tão
desconhecida. Sendo criança, arquitectei um plano de criança. Como nos contos
de fadas, imaginava eu, uma maçã, um pão com marmelada, um chocolate, oferecidos
no recreio, iriam magicamente revigorar aquele corpinho desnutrido. Oh, a
alegria de ter para dar! Oh, o constrangimento de ser eu a dar, a vergonha de
poder envergonhar quem das minhas mãos recebia!
Cedo, porém, me apercebi de que qualquer semelhança entre a vida e um
conto de fadas é mera coincidência. Vindos de várias regiões do planeta,
diariamente nos chegavam relatos de conflitos políticos e civis, de gritantes
injustiças na distribuição das riquezas, de trabalho forçado, de guerras. Ali
estavam foto-reportagens enfatizando tais notícias. Ali estavam, em primeiro
plano, corpos desvigorados onde a fome traçara a geometria da morte.
Esqueci há muito o nome da coleguinha que, esfaimada, desmaiou sobre o
tampo da carteira, mas nunca conseguirei esquecer o gelo que nesse momento
encheu a sala de aula, nem o arrepio tatuado na minha pele.
São
sempre anónimas as crianças que chamam a nossa atenção nas imagens ainda hoje
captadas em zonas de extrema pobreza. Nos olhos de todas elas, o silêncio
exangue da fome. Algumas seguram tigelas vazias. Outras, dobradas como bichos,
a boca rente ao chão, tentam aproveitar as migalhas caídas. Outras, esqueletos
cambaleantes, mal conseguem prender com o arame dos seus dedos o quase nada
que, de tempos a tempos, lhes é caritativamente distribuído.
O
anjo da fome, quando chega, chega implacável. Lança-se em voo picado sobre os
milhões de não-eleitos. Nunca são brancas as asas do anjo da fome.
Helena Maltez ©2014,Aveiro,Portugal
Sem palavras - é como nos deixa este trabalho, de uma sensibilidade quase chocante. E afinal tudo seria tão mais fácil, se todos quiséssemos. Na mesa dos senhores do mundo sobra sempre o suficiente para matar a fome a todos os que "o anjo da fome" persegue e destrói. Muito obrigada Maria Helena, pela excelente reflexão que nos ajudou a fazer.
ResponderEliminarSensibilidade, realismo, ironia, inconformismo, ingredientes que a autora reuniu num texto tão rico, quanto bonito, repleto de fome... E, como se tudo isto fosse pouco, fá-lo sem qualquer arremesso de hipocrisia. Pouco dado a anjos, não vou esquecer "O anjo da fome", enquanto, como a autora e outros, me sinto privilegiado, mas inconformado por ter sempre presente os imensos - milhões !!! - que não têm anjos e que quando os julgam ter nem sequer têm asas e muito menos brancas.
ResponderEliminarRealismo que nos incomoda...
ResponderEliminarMas quem morre são os outros...
E em silêncio...
E esquecidos!
Realismo...