Era
quase noite e a tarde teimava em não se despedir. O sol, ou as réstias dele, lá
ao longe, projectava uns raios indecisos entre o laranja e um vermelho tão
forte que mais parecia sangue, raiando o vale verdejante subdividido em
pequenas parcelas. A manta de
retalhos, um verdadeiro jardim, lindo de ver,
árduo de trabalhar, espelhava uma agricultura tipicamente minifundiária que
teimava em persistir romanticamente à espera de que alguém, quem sabe, um D.
Sebastião, fizesse o milagre com a terra como a Rainha fez com os pães. Este
quadro deslumbrante, embora perspectivasse natureza morta, era a paisagem
assombrosa avistada dum pequeno jardim, onde naquele fim de tarde, como
noutros, um avô usufruía do seu maior gozo: ver brincar os netos e com eles
partilhar um diálogo permanente nem sempre inspirador de liderança porque a
ternura falava mais alto e o resultado era bem compensador.
A manta de retalhos |
—
Noni…noni…noni…noni… foge avô, tu não ouves?
—
Mas não ouço o quê? Afinal quem me persegue?
— É
o carro dos bombeiros. Houve um fogo numa casa… foge, foge, avô…
Pronto
e perante tal urgência, não havia outra atitude, obedecer e imediatamente.
Retirava
mais umas folhas velhas de um canteiro e assobiando uma das suas
modinhas preferidas preenchia um pouco mais de tempo, até que as crianças
quisessem fugir do anoitecer. E à procura de luz entravam netos e avô em casa
acabando com o sossego que àquelas horas alguns reclamavam depois de um dia de
trabalho.
Foge avô, tu não ouves? |
—
Ouve lá Mafalda, tu queres ser bombeira?
—
Sim, avô.
—
Mas sabes que ser bombeira é uma profissão muito perigosa. Os bombeiros correm
muitos perigos quando andam a apagar os incêndios e…
— Ó
avô, mas eu não quero ser a bombeira que vai apagar os fogos. Eu o que quero
ser é a chefe que manda os bombeiros trabalhar.
As
inevitáveis risadas eram seguidas de pormenorizados esclarecimentos em que
todos participavam começando a emagrecer o mundo dos sonhos de criança.
O
avô era um agricultor de fins de tarde ou de fins de semana, tendo como
actividade principal ser funcionário administrativo numa empresa bem perto da
sua casa. Herdou uma série de parcelas, que se não separadas, poderiam já
constituir uma exploração bem dimensionada, da qual seria credível obter um
rendimento considerável. Mas não era assim, e, então, tinha que programar muito
bem os investimentos que ia efectuando porque numa agricultura só abençoada
pela tradição e sorte, “os tombos” aconteciam e poderiam deixar mazelas,
quantas vezes, suficientemente profundas para afetar a normal gestão da casa.
Tinham
o privilégio de serem avós que, todos os dias, conviviam com os netos. Esta
partilha de afetos, boa para crianças e adultos, prendava os dias “complicados”
vividos no dia a dia de uma sociedade repleta de atributos para todos os
gostos.
Era
frequente ver as crianças encarrapitadas em cima do atrelado do tratorque o
avô conduzia quando alguma coisa tinha que fazer numa propriedade. Faziam-no,
obrigadas a uma disciplina treinada e imposta pelo condutor que nessas coisas
era muito exigente, “não fosse o diabo tecê-las”…
Nestas fainas as crianças iam
exibindo diversos comportamentos: enquanto o Carlitos e a
Rosa se “pelavam” por
ir dar uma volta no trator, a Mafalda não só gostava do passeio como de
acompanhar o avô, o mais possível, e interrogá-lo sobre tudo o que fazia. Ela
lembrava-se de perguntas “que não lembram ao diabo” contava com um brilhozinho
nos olhos aquele avô babado.
Ela lembrava-se de perguntas... |
Os
anos iam passando e as crianças de ontem eram hoje adolescentes já com outras
vidas e afazeres que deixaram de lhe possibilitar a convivência diária, outrora
possível, com os avós. Vinham, sempre que podiam, mas agora mais como “visita
de médico” para verem os velhotes e degustarem as delícias que só a sua avó
sabia fazer. Um comportamento diferente de entre os três: a Mafalda nunca se
separou daquelas idas com o avô às propriedades, deliciando-se com as conversas
que mantinha persistentemente com ele.
Eram
diálogos, que, por via de norma, eram sobre as terras, as pessoas que nelas
trabalhavam, a influência climática na agricultura, especificidades de algumas
culturas, enfim, um conjunto de assuntos que exigiam do avô muito rigor nas
respostas perante a exigência e profundidade com que a interlocutora lhe
colocava as suas perguntas e as deduções inteligentes fruto de uma conversa
rica de conteúdo.
Mas orgulhoso porquê, avô? |
—
Avô faz-me muita confusão que vocês, proprietários destes terrenos, não
estabeleçam diálogo de forma a darem a volta a este enorme obstáculo que é o
facto de terem áreas consideráveis mas distribuídas por tantas parcelas,
algumas vezes bem distantes, e que, por viverem esta realidade, tenham muito
mais trabalho e em contrapartida muito menos rendimento.
— Ó
minha filha nem imaginas como me sinto orgulhoso em te ouvir essas palavras:
isto é como ser surpreendido pelo primeiro gomo floral numa árvore que
plantámos. Que maravilha!
—
Mas orgulhoso porquê, avô?
— Eu
vou contar-te. Há muitos anos que a minha luta tem sido tentar convencer estes
teimosos todos de que nos deveríamos mobilizar no sentido de juntarmos as
nossas terras para passarmos, como tu disseste muito bem, a trabalhar menos e a
ganhar mais. Mas entenderem? Fico muito satisfeito por perceber que das nossas
conversas possas tirar, entre outras, essa conclusão. Não irei desistir nunca
de continuar a teimar. Por aquilo em que acreditamos nunca, mas nunca, devemos
desistir. O importante é acreditar e depois, sabes o que te digo, fazer como
fazia o Zeca Afonso: dar forma ao nosso inconformismo e agitar…”Traz outro amigo
também” pode ser um bom mote.
—
Sabes, avô, eu penso que também não deve ser fácil para as pessoas aderir a
qualquer
projecto porque tem para aí havido tantas vigarices… Mas, por outro
lado, qual seria no teu entender a melhor forma para desenvolver um projecto
desta natureza?
Mudança de mentalidades. |
— Numa
perspectiva legal ou jurídica há várias hipóteses: associação, cooperativa,
agrupamento de produtores, eu sei lá… e
outras. Pessoalmente, penso que uma cooperativa seria talvez a melhor solução,
mas o importante era ver disponibilidade mental nas pessoas e isso, Mafalda,
podes crer que é o mais difícil. Há muita tacanhez de espírito. É horrível.
— Se
bem te percebo para lá chegarem tem que haver um grande trabalho que leve as
pessoas a uma profunda mudança de mentalidade. Só tu, avô, vais ser capaz de o
conseguir. Sempre foste um líder.
—
Podemos entrar, ó de casa, somos dois, dá-nos de jantar? Não se assuste avó,
somos nós.
Abraçando-se
à avó, beijava-a carinhosamente, gravando naquela memória momentos que ela
cultivava com o mesmo carinho com que era mimada por aquela neta tão dedicada.
Mas a provocação fazia parte duma cena já habitual que era a avó dizer à neta
que os miminhos dela eram todos para o avozinho da menina. E com olhos
lacrimejantes acrescentava sensibilizada:
—
Mas gosto muito da grande amizade que vos une. Nem conheço nada assim!
Os
anos passaram-se e a Mafalda, sempre boa aluna, nunca dispensou as lições do
seu grande mestre, conforme dizia orgulhosamente quando do seu avô falava a
colegas e mesmo a professores. A influência daquela empatia e as conversas que
desde menina se habituou a ter com o seu avô vinham vincando nela tendências
que foram determinantes na hora de decidir a sua candidatura à universidade.
Apaixonada pela Agricultura e pelo Ambiente não deixava de o ser também pela
Veterinária ou mesmo pela Zootecnia. A vertente vocacional da Mafalda era tão
ambiciosa que na hora da verdade, em vez de a ajudar, a dispersava
retirando-lhe a lucidez necessária a estes momentos.
O avô esperava noticias... |
O
avô esperava ansiosamente notícias da sua neta. E, como se de um filme se
tratasse, recordava a sua bombeira, tão pequenina, que bombeira só o queria ser
sendo a chefe, a menina sempre desejosa de obter respostas às perguntas que não
paravam e ultimamente a rapariga decidida, sempre sedenta de conhecimento, que
estabelecia desafios a si mesma, nunca se acomodando com o talvez, com o mais
ou menos ou com o parece que… Era noite e, como de costume, via alguma
televisão e dedilhava o teclado do seu portátil, um pouco ao sabor do vento,
não escalpelizando nada até ao fim porque o correio podia a qualquer momento
trazer-lhe novas. Desta vez, tratava-se de uma pesquisa que só tinha tido
início para um jogo que não tinha fim. A impaciência era notada pela
companheira que bem o entendia e naquele jogo sem palavras passavam a noite até
que um salto no cadeirão pôs fim ao jogo do silêncio.
— A
nossa Mafalda entrou em Sociologia!
— Ó
Manuel, mas… afinal o que se passa com a menina. Ela não era para esse curso
que queria entrar...
O
mail explicava tudo e cheio de emoção, o avô das conversas, leu alto em tom determinado.
—
Boa-noite, Avós!
Só
agora consigo escrever este e-mail para vos dizer que a vossa neta está na
Universidade. Entrei num curso com que muita gente da nossa família vai ficar
baralhada por pensarem que seguiria outros em que eu própria acreditei. Poderei
vir a ser um dia Agrónoma, Engenheira do Ambiente ou mesmo Zootécnica. De
momento, e depois de me ter debatido com um grande confronto de ideais que
pairam na minha cabeça reflecti muito e muito me ajudou a memória sempre
presente das longas e profícuas conversas que ao longo da vida tenho tido com o
meu avô. Foi nelas que eu encontrei a resposta que precisava. Candidatei-me e
entrei no curso de Sociologia. Lembrei-me da tacanhez, avô, e de toda a
problemática que englobam os atrasos de mentalidade quando se quer progredir,
seguir em frente, vencer. Estou muito feliz e ainda mais estarei no dia em que
possa pôr em prática este desafio que coloquei a mim mesma: com formação
adequada trabalhar com e pelas pessoas.
Mal
possa estarei aí para matar saudades.
Muitos
beijinhos para os meus queridos avós.
A
grande emoção, que, como um manto maternal, aquecia a satisfação incontida, o
mais profundo prazer da obra conseguida, a pomba que ousava voar, com a
determinação de quem sabe, que se não partir, é impossível chegar, não travou o
dedilhar imediato da resposta.
Olá,
Srª Dr.ª SOCIÓLOGA!
O importante é que ousaste viajar! |
Estamos
felizes e sendo tu a responsável estamos muito agradecidos pela prenda que
sempre tens sido para nós. O orgulho que sentimos aquece a vida e a chama
continua a seres tu. Seres socióloga ou outra coisa qualquer não será o mais
importante. As competências que conquistes ajudam e contribuem para o delinear
das estratégias. O importante, minha querida neta, é que há muito ousaste
viajar. A tua vida: por valorizares o desafio, porque dentro de ti existe a
permanente autodeterminação do agir e porque nunca te acomodas, tem sido uma
viagem em que o mais importante foi partir.
Vem
quando puderes, continua a tua viagem!
Beijinhos
dos avós.
José Luís Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Vejo nesta Mafalda muito de algumas pessoas que por cá conheço... boas inspirações certamente!
ResponderEliminarUma boa história contada com emoção, recordada com o coração e escrita com a sabedoria de quem sabe que a vida é "uma viagem em que o mais importante" é partir.
ResponderEliminarUm texto em que as referências de uma criança circulam à volta dum velho que é avô! Uma criança que vai crescendo e evoluindo através de uma escrita fluente, versátil e subtil que nos seduz e nos atrai pela forma serena como descreve um caminho em que o que realmente importa é partir, não é chegar.
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