terça-feira, 30 de setembro de 2014

VIVÊNCIAS DE ESCRITA

Fernanda Reigota

Quatro duplas vivências de escrita nas suas vertentes antagónicas: TEMPO, ESPAÇO, PERSONAGEM, AÇÃO. Foram estes os elementos que deram corpo ao psicodrama que em mim se desenrolou: o som da ave da imagem que fotografei muito impulsionou esse psicodrama.

PRIMEIRA
Tempo sem tempo

Corria aquele mês em que o tempo é lento.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
Mas os olhos sem tempo não colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo e ele aí estaria, o mês perfeito.
Mas os olhos queriam o Norte e o tempo deslizava para Sul.

Sem rumo, sem norte, que apareça a Estrela Polar.
A noite dos tempos envolveu os mares, a terra e a vida,
Mas o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

Tempo com tempo

Corria aquele mês em que o tempo é leve.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
E os olhos com tempo colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo! Eis o mês perfeito.
E os olhos deslizavam de Norte a Sul.

Com rumo e com norte apareceu a Estrela Polar.
A noite dos tempos desvendou os mares, a terra e a vida,
E o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

SEGUNDA


Espaço sem espaço

Curva de estrada
Nuvem parada
Janela fechada
Rosa muralhada

Barcos sem cais
Ilhas infernais
Casas transversais
Sentimentos superficiais.                                    

Afetos nevoentos
Abraços cinzentos
Seres pardacentos.


Espaço com espaço

Planície rasgada
Nuvem ensoalheirada
Janela franqueada
Rosa vivificada

Barcos aproados
Ilhas siderais
Casas reais
Sentimentos fortificados.

Afetos absorventes
Abraços abrangentes
Seres resplandecentes.

TERCEIRA
Personagem sem personagem

Eu sou sede!
Eu sou fonte…

Eu sou dor e mágoa!
Eu sou água…

Eu sou a estrela Canícula!
Eu sou prado orvalhado…

Eu sou cansaço!
Eu sou rebentação de onda…

Eu sou solidão!
Eu sou porto de abrigo…

Eu sou silêncio!
Eu sou cantar de ave…

Eu sou caminho escolhido!
Eu sou caminho…

Personagem com personagem

Eu sou rio!
Eu sou leito…

Eu sou alvorada!
Eu sou luz inebriada…

Eu sou a estrela da manhã!
Eu sou céu iluminado…

Eu sou impulso!
Eu sou rebentação de onda…

Eu sou alegria!
Eu sou euforia…

Eu sou melodia!
Eu sou cantar de ave…

Eu sou caminho!
Eu sou caminho…

QUARTA
Ação sem ação

Um estilhaço do Mundo vive na casa do meu ser!

Ouço e não percebo,
Permaneço e estou ausente,
Falo e não me entendo,
Caminho e não tenho horizonte,
Vou e nunca parto,
Chego e nada encontro,
Ajo e sinto dispersão.

Ação com ação

Um reflexo da harmonia cósmica vive na casa do meu ser!

Ouço e assimilo,
Permaneço e integro-me,
Olho para o espelho e reconheço-me,
Caminho e revela-se o horizonte,
Vou e sempre regresso,
Chego e partilho,

Ajo e sinto união.

Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Nesta manhã de sábado a querer mostrar que o outono já chegou, no silêncio da minha casa, apenas se ouvia o movimento dos carros na rua passando um agora outro mais tarde. Liguei o computador para espreitar as novidades que havia por aqui.
    Li uma primeira vez; li uma segunda em voz alta para entranhar cada frase que estava escrita.
    Simplesmente fabuloso, não sei mais adjetivos.
    Obrigada Fernanda por este momento.

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  2. A emoção transparece no teu comentário. Obrigada, Maria!

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  3. As contradições destas denominadas “Vivências de Escrita” conduzem-nos por um labirinto em que as suas componentes preenchem uma sequência inimaginável, sabendo que todos os cenários possíveis aí se encontram dissecados. Um poema duma beleza muito intrínseca, onde as interrogações da vida se espraiam para que nada lhes escape. De um modo surpreendente, fui devorando, palavra a palavra, e interiorizando a acção que é e não é. Mas a união com que terminas estas tuas reflexões não será apenas uma ambição? É que, no mundo globalizante em que vivemos, cada vez mais estamos unidos em dispersão – e essa é mais uma contradição. Parabéns Fernanda, está soberbo.

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    1. Soberbo está também o teu comentário, Albertina. Penso que não há contradição: apenas os opostos com que se tece a vida a reivindicarem o seu lugar.

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  4. Tempo, espaço, personagem e ação - os quatro elementos que num jogo de enigmas fabulosos em que a palavra é rainha nos exibe ensaios de ser ou não ser. E tudo, devido a uma ave inspiradora que poderá, não sei, simbolizar a liberdade. Com a profundidade destas "Vivências de Escrita" me fico perfeitamente maravilhado.

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