quinta-feira, 27 de março de 2014

Virar o mundo ao contrário

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Que linda a foca criança de pelugem branca, fica-lhe o vermelho cor sangue tão mal. E o cavalo, negro, castanho, malhado, tantos filmes, tanto espectáculo, e o burro de carga, a mula
A foca criança
da cooperativa, tanta história, tanta estrada.
Senhores, como me apraz o elevar da suricata, atenta, sagaz a qualquer predador atrevido que queira entrar no seu dominar, debaixo da terra, a sua família secreta. Lá ao longe, uma explosão de pó atravessa o horizonte, búfalos, bisontes, manadas a deixar para trás terra calcada à procura de outra morada, uns ficam outros seguem, envolvidos numa nuvem de força unida.
Porém tenho medo do tubarão branco, da baleia assassina, da enorme anaconda, e da peluda tarântula, patuda, gorducha, silenciosa, até me arrepio agora. E toda esta macacada faz-me lembrar do macaco piolhudo, então o narigudo é uma mossa, o malandro. Porém, o gorila que eu amo canta o fado, já quase sem ninguém, valha-lhe o Godzilla e a loira na mão, e quem já os olhou nos olhos, eu já, na televisão, sentem a (des) emoção de testemunhar uma futura memória.
O que são inocentes?
Porquê o fado, pergunta o pequeno, no gorila e no resto da turma, chama-se extinção, pela expansão, ambição, maldade e muita transgressão, dos outros. Digo-te quem no final. Agora os animais fogem, todos, e não há Arca de Noé, vão e outros ficam, porque chora o elefante junto à cria infinitamente, é comovente, parecem-se a nós. Quem sabe não andam em conversações os dragões que habitam numa ilha da Indonésia, os leões reis da selva, e o Nessie, vale tudo, combinando uma invasão, quem sabe uma revolução, não, claro que não. Seria um mundo ao contrário, claro que não. O mundo certo é assim: nós vemos os animais, que são maravilhosos, depois vemos os assassinos, que é um horror, e depois a nós, todos juntos envoltos num fedor de culpa que agora não interessa para nada.

sábado, 22 de março de 2014

PALAVRAS DE AMOR

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



                                      É Primavera, Amor, A Natureza
Mudou o seu aspecto, o seu vestido:
É verde em vários tons, todo florido,
Tem aroma, tem cor e tem beleza!

No ar que respiramos  há leveza,
Vibra meu coração entontecido;
Tua voz é canção no meu ouvido,
Não há mais ansiedade nem tristeza!

Anda comigo, vem, vamos lançar
Sorrisos de ternura a quem passar
Como se fossem pétalas de flor!

Meus olhos nos teus olhos, as mãos dadas,
Com palavras suaves, perfumadas,
Quero gritar bem alto o nosso amor!...

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 19 de março de 2014

O MAIOR AMIGO


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação




Às vezes , nos momentos de lazer,
Fecho os olhos e apago o meu presente.
Depois deixo as memórias reviver,
Deixo-as passar com força na corrente.

Então o meu passado volta a ser
E tu surges, meu Pai , à minha frente.
E deixo-me em teus braços me envolver
E sinto o teu abraço forte e quente.

Lembro os nossos passeios, lado a lado,
Os teus sábios conselhos, tua calma,
Todo esse teu amor desinteressado;

A dor, tal como um rio, ainda corre,
Mas tu vives comigo na minh’alma:
Quem tiver um Amigo, nunca morre!

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 16 de março de 2014

Os animais são nossos amigos

Era dia de festa em nossa casa. O Pluto, um cãozinho rafeiro com dois meses de idade, natural de Vagos, começava nesse dia a fazer parte da família.
Era traquinas, nos primeiros tempos roeu tudo o que lhe aparecia pela frente mas, com o avançar do tempo, aprendeu a ser controlado, educado e muito, mas muito meigo.
Viveu connosco cerca de dezasseis anos, deu-nos muitas alegrias, muito carinho e algumas preocupações.
É que ele está apaixonadíssimo
pela minha cadela...
As preocupações deviam-se ao seu apurado sentido de independência que o levava a sair de casa e desaparecer por vários dias. Até que nos habituássemos às suas ausências sofraemos bastante. Fazíamos de carro e a pé grandes percursos à sua procura. Era um cão que se apaixonava com grande facilidade, e quando assim acontecia ficava junto da companheira sem vir para casa.
Um dia recebemos um telefonema:
Os senhores por acaso são donos dum cãozinho que tem uma placa ao pescoço com este número? É que ele está apaixonadíssimo pela minha cadela, não sai de junto dela e nem se alimenta.
Claro que era o nosso Pluto, fomos buscá-lo e tivemos que fazer esse caminho mais algumas vezes porque ele não desistia. Era sem dúvida um povoador, não lhe escapava cadela que ele quisesse e comparticipou em larga medida para a continuação da espécie.
Por vezes parecia uma criança, amuava sempre que íamos de férias. No nosso regresso a casa, ignorava-nos completamente, virava a cabeça quando lhe falávamos e assim se mantinha durante algum tempo.
Pressentia quando um dos elementos da família estava doente, deitava-se junto do doente, lambia-nos as mãos e não saía de junto de nós.
Quando os amigos nos procuravam na casa que habitávamos durante o verão na praia, ele passava à frente deles e guiava-os para o local onde nos encontrávamos.
Era um companheirão
Brincava às escondidas com a nossa filha, só mesmo presenciando é que se podia acreditar.
Era um companheirão, foi o primeiro cão que tive e fez-me acreditar que a presença de um animal em casa é salutar, faz bem às crianças e gera à sua volta um ambiente de alegria e entusiasmo para além de ajudar as crianças a sentirem-se responsáveis.

Morreu velhinho quase cego, atropelado em frente à casa. Foi o primeiro desgosto que tivemos com a morte de um animal de estimação, era um membro da nossa família muito dedicado a nós, sentimos muito a sua falta.

Dores Topete ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 10 de março de 2014

O meu menino

Está frio, hoje! Este tempo anda esquisito: ora chove ou faz um calor sem limites. Mas hoje estou mesmo cansado: calcorreei quase toda a cidade e nada me agrada. Nem um sítio, nem um banco de praça, nem um vão de escada… Falta-me qualquer coisa, falta-me um calor que não é quente ou uma brisa que não é vento.
Que saudades daquele menino
Que saudades daquele menino: dava-me vontade voltar lá só para o ver, só para rir com o seu sorriso e brincar com as suas mãozitas. Éramos amigos, muito amigos mesmo. Quando ele nasceu eu era ainda muito pequenino mas percebi logo que tinha perdido o meu lugar no centro das atenções daquela família. Depressa, porém, compreendi que uma criança é um raio de sol que entra casa adentro. Eu também gostei de o ouvir chorar pela primeira vez. Eu também gostei de espreitar para o berço e ver as mãozitas dele, muito pequeninas, a agarrar o espaço e a abrirem-se e a fecharem-se como se o mundo coubesse dentro delas. Deu-me vontade de o abraçar e sem ninguém dar conta dei-lhe a minha mão e deixei-o brincar com ela. Devagarinho porque ele é muito pequenino e eu tive medo de o magoar.
Se vissem: quando eu chegava, olhava para ele, fazia-lhe umas caretas e, certo e sabido,
...aquela criança gostava de mim
deixava de chorar. Eles nem compreendiam o que se passava mas o que é verdade é que aquela criança gostava de mim. Podem crer: gostava mesmo! Assisti ao seu primeiro choro, à mudança da primeira fralda, ao vestir da primeira roupinha, ao primeiro brinquedo que fazia dlim-dlão… Era um bebé tão lindo! Depois começou a gatinhar pela casa fora e eu sempre ao seu lado arrastava-me pelo chão a fingir que andava mais devagar do que ele. Um dia sentou-se e foi uma festa: bateram-se palmas, cantaram-se as canções de que ele gostava mais e houve direito a sobremesa melhorada. Até eu usufrui da alegria geral e lá comi o que todos comeram e saltei como todas as crianças e com os adultos que fizeram de crianças e corri pela casa fora.

sábado, 8 de março de 2014

MIGALHA DE GENTE

E porque hoje se celebra o dia internacional da Mulher,  o EVOLUIR  não pode deixar de assinalar esta data, agradecendo ao autor o envio deste poema.

Criança eu já fui e  já tive na mão
Um mundo dif´rente a todos vedado;
Já tive bonecas, já tive um pião
E já fui princesa num reino encantado.

Cresci, fui mulher e senti a paixão;
Depois, com amor, outro ser foi gerado.
Porém perdi tudo… veio a solidão,
Fui barco à deriva num mar encrespado.

Então tu vieste, migalha de gente,
Teus braços abertos , puxando-me em frente,
Teus olhos azuis a falar de esper´rança.

Contigo de novo voltei a brincar…
Entrei no teu mundo por muito te amar
E avó me tornei e outra vez criança!

Maria Celeste ©2014,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 5 de março de 2014

É muito bom ouvir isso.

Ainda não eram seis da manhã e a porta do curral das vacas rangia. obedecendo ao empurrão daquele homem que tão cedo começava o dia. Lá dentro, duas vacas que reagiam com um olhar sereno de quem não se surpreende e pareciam já esperar a visita daquele amigo que, antes de ele comer, lhes ia sempre deitar qualquer coisa na manjedoura. No meio de ambas, falava-lhes e acariciava uma e outra com umas festas na barbela e umas pancaditas carinhosas no dorso. 
Agradeciam com umas lambedelas que, esperavam, estimulassem o dono a servir-lhes o mimo matinal, normalmente um pouco de milharada que elas tanto apreciavam. Tratadas as vacas já podia ir comer ele para, de seguida, iniciar a faina de um dia de trabalho que agora lhe era bem mais pesado do que há uns anos atrás. Pequeno agricultor fazia algumas terras herdadas, outras de renda e uma muito especial, a “regadinha”, fruto do roubado ao estômago e aos luxos proibidos de quem neles nem sequer poderia pensar. Aqueles animais, dois porcos que criavam todos os anos, um para vender e outro para matar para casa, juntamente com o resultado do amanho das terras, perfaziam a totalidade dos parcos rendimentos daquela família. As vacas, uma de leite e outra de trabalho, eram peças importantes desta microeconomia. A venda do leite e de um ou dois bezerritos por ano eram essenciais ao regular funcionamento da engrenagem que dava sustento a uma família de quatro pessoas. As vacas, sendo da mesma espécie, eram de raças diferentes e, coabitando o mesmo estábulo, isso fazia-as sentir o que de diferente era a vida delas. A frísia, outrora conhecida por leiteira, era ali uma verdadeira princesa a quem tudo serviam sem fazer rigorosamente nada, limitando-se a comer do bom e do melhor. Esta era a opinião da de trabalho, outrora, amarela e agora marinhoa. A frísia, entretanto, observava: 
— És uma ciumenta… Ainda não percebeste que eu é que dou dinheiro a esta casa? Tu serves para trabalhar e pouco mais…
— “Para trabalhar e pouco mais”. Sou eu que todos os dias carrego com a erva que tu hás-de comer. Ingrata é o que tu és, nem sequer sabes agradecer…
— Olha, eu não tenho culpa é que tu não entendas nada. Eu estou sempre aqui fechada e o que querem é que eu passe a vida a comer para depois me esvair em leite.

domingo, 2 de março de 2014

O Palhacinho

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Era um cão doce, muito doce. Tinha o pelo preto, em novelos de algodão que se ofereciam para receber carícias. Segurava-se em pé, nas patinhas detrás, e percorria as distâncias que o separavam daqueles que ele amava. Eu tive a sorte de ser querida por ele e, quando o chamava, os dentes do Palhacinho entreabriam-se num sorriso cativante. Depois, deitava-se em rodilha à espera de mimos que o faziam alongar as patinhas e estender a língua em carícias. Quando veio para minha casa, já era velhinho pois vivera com outro dono que o
Quando nos vimos pela primeira vez ficámos
logo amigos
recolhera do canil. Quando nos vimos pela primeira vez, não nos estranhámos e ficámos logo amigos. Escolhemos juntos o seu canto para descansar e o seu espaço para deambular. Quando eu saía de casa, despedia-se de mim com os seus caninos em festa e ia para o seu cestinho dormir. Quando estava calor, quase derretia ao sol, junto à porta da cozinha, sempre à espera de um olá. Nessa altura, saltava na pontinha das patas e dançava ao sabor dos meus chamados, elogios e ternuras. E assim vivemos meses e anos. Nas férias, quando me ausentava por algum tempo, ficava ao cuidado dos meus filhos que o consideravam também como seu. Numa dessas ocasiões, uma amiga da minha filha levou-o com ela para uma quinta, no Douro. Eu estava, na altura, nos Açores. Todos os dias perguntava por ele à minha filha que me punha ao corrente do que se ia passando com o Palhacinho. E assim foram passando os dias, longe do meu doce amigo, é certo, mas descansada por saber que ele estava bem.
Um dia, recebi um telefonema estranho. Perguntei pelo Palhacinho e do outro lado do oceano disseram-me que ele não aguentara o calor tórrido daquele verão. Como devem imaginar, o meu coração ficou muito triste; não reencontraria o meu querido e doce amigo quando regressasse.

Ainda tentei encontrar outro cãozinho que me ajudasse a superar o meu desgosto, mas não consegui. O Palhacinho, ainda hoje, passados muitos anos, continua no meu coração.

Maria Cacilda Marado ©2014,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Afeição pelos animais

Numa aldeia, humilde como tantas outras, vivia uma criança, franzina e pequena para a sua idade, de seu nome Lídia.Como os pais eram lavradores pobres, ela não tinha tempo de brincar como as outras crianças.
Foi para a escola, mas pouco tempo; tudo o que aprendeu foi porque tinha mesmo muita
A família vivia com
grandes dificuldades
curiosidade e procurava quem lhe explicasse. E como ela tinha vontade de saber mais e andar mais tempo na escola como os outros meninos!
A família vivia com grandes dificuldades; lavradores, com muitos filhos, comendo só o que a terra produzisse e mesmo assim era pouco.
Tinha oito irmãos mais novos que ela. Ajudava os pais no que podia, mas tão pequenina era, que pouco ajudava.
Como referi, andou pouco tempo na escola e logo teve que se fazer à vida, para ajudar no sustento dos irmãos. Mesmo assim aprendeu a ler e a escrever, não se esquecendo das histórias do livro da terceira classe, porque as achava bonitas e também não teve ninguém que lhe ensinasse .Ensinaram-lhe sim, a fazer os trabalhos dos adultos.
Os pais puseram-na a morar, ou seja, ela foi viver e trabalhar para casa de outros lavradores para se sustentar e angariar mais alguma coisa para os irmãos.
Qual era o trabalho desta criança que tinha apenas dez anos, ou menos?
Ela sonhava ser como as outras crianças que andavam na rua a brincar à macaca, a saltar à corda, enfim, brincadeiras que todos gostavam.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Livre como os pássaros que me habitam

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos - Relação entre o homem e o animal. Aproveitamos para convidar todos os que queiram colaborar para o fazerem, na medida em que ainda estão a tempo de remeter os vossos trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Olhos castanhos profundos, pele muito bronzeada, contrastando com os seus cabelos muito louros, postura descontraída de quem observa: menino quase homem, homem ainda menino a interrogar o sentido da vida que já pressente muito diferente de todos os seus sonhos de criança.
Rui estava a passar o fim daquele dia de verão, que queria ficar lembrado pelo calor excessivo, à beira da piscina. O vento fora sempre quente, parecendo soprado de uma enorme fornalha. Tinha sido um dia de muitos mergulhos, muita conversa com os amigos, com desconhecidos e família. Dentro de água, as pessoas riem sem saber bem de quê, conversam como se todos se conhecessem, irmanam-se como se tivessem de vencer num só mergulho toda a timidez a que a rotina de um ano de trabalho obriga.
Ao longe, estendiam-se campos, onde pontuavam algumas manchas verdes de árvores de copas largas e folhas abundantes.
Os pássaros tinham ali um refúgio natural. Não tardaria, começariam a esvoaçar para se refrescarem numa pouca de água, procurarem alguma comida e ficarem tranquilos para passarem a noite.
Ele reconhecia o canto de todas as espécies da região. E os seus olhos expressivos iam pousando nas pessoas que se haviam aquietado: o regresso a casa estava iminente. Naquele silêncio conjugador de efabulações, naquela dormência gostosa de fim de tarde, Rui fixava uma pessoa e logo ela se punha a esvoaçar… A determinada altura, o recinto da piscina era um tumulto de sons dissonantes: o entorpecimento, em que se aquietara, fizera-o transformar a piscina num riacho onde as pessoas passaram a ser pássaros que se refrescavam alegremente depois daquele dia de calor intenso.
Quando ouviu a voz da mãe, abriu os olhos e sorriu. Muitas pessoas já tinham partido. Em casa esperava-o uma tarefa rotineira: ele e o pai tinham de cuidar dos muitos pássaros que possuíam.
O Rouxinol do Japão
Havia o viveiro dos pequenotes, assim chamado por nele habitarem pássaros de pequeno porte, como o Pintassilgo, o Dom Fafe, o Verdilhão, o Rouxinol do Japão, ou o Canário Arlequim Português.
A Catatua de Crista Amarela estava bem representada noutro viveiro: aves com um grande sentido gregário entre si, estabelecem também relacionamento rápido com os seres humanos, deixando-se domesticar.
Por ouvir o pai e por investigação autónoma, o Rui era já um conhecedor de aves, pelo menos esclarecido.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A procissão

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


A procissão - Angeja, 1973
Está quase chegando à Igreja, de passagem pela Praça, centro cívico da Vila, onde fez mais uma pausa, para os devotos colocarem uma nota - de valor pecuniário, com um alfinete sobre uma das fitas que esticadas descem das pontas do manto da padroeira até à base do andor, - passando de seguida por baixo do mesmo, como complemento da promessa; ao lado, de opa branca como as demais, que as vermelhas já passaram com os estandartes e pendões, um mordomo de bandeja na mão estende-a aos que a veem passar, juntando mais umas moedas que complementarão o estendal de notas, das mais variadas, de pequeno e grande valor, nacionais e estrangeiras, estas daqueles que, emigrados, regressaram para férias. A Banda de Música da Vila em festa, está ainda tocando a sua vez, depois de o ter feito a Banda convidada vinda de fora, como tocando estão os sinos da Igreja; colchas e colgaduras qual delas a mais vistosa pendem das janelas, e no ar que se respira, há um cheiro a carne assada - matou-se a cabra para a festa (1) - saindo ele também pelas janelas das cozinhas, misturando-se com o cheiro que evola, da erva doce que atapeta a rua - escorregadia de paralelipípedos de granito polido - esmagada pelos calcantes de todo este cortejo, até ao pálio que cobre o Pároco local, e um padre convidado que veio para a missa; agora, também um cheiro a incenso, saído do turíbulo fumegante que um acólito transporta. A Banda de fora acentua o ritmo de marcha, com o tré, tré, tré, trr..é, na tarola do músico ao lado do que toca o bombo, e este a dado passo, dá dois toques na pele esticada e redonda, que outrora também de cabra foi, e a música irrompe uma vez mais; atrás o povo caminha, mais mulheres que homens, e muitas destas vão descalças, algumas vão de costas para a frente, agarradas por uma de cada lado, em penitência como que contando os passos, que a Igreja está mesmo ali à vista, e já estralejam foguetes.

(1) Aqui não posso esquecer o desfile do rebanho, chocalhando pelas ruas ainda poeirentas da vila, em semana de festa, fins dos anos cinquenta, para serem vendidas porta a porta, e mortas para o almoço do domingo de festa.
Nota: Texto escrito pelo autor em 19 de Julho de 2011
                                                                      Manuel Oliveira Costa©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A tradição já não é o que era!

Era uma vez, uma velha, muito velha que contava uma história sobre uma sociedade de recreio que existiu em Lisboa, designada BPN — Bando de Palhaços Notáveis. As práticas
Era uma vez uma velha, muito velha
de gestão fraudulenta tinham sido tantas que o assunto acabou por ser debatido numa assembleia extraordinária. O presidente da assembleia era, na altura, um jurista muito conhecido naquele tempo que dava pelo nome de Marinho Tinto. Muitas e complicadas histórias se contavam em plena rua de falcatruas e desmandos que implicavam principalmente quatro elementos que detinham lugares de destaque ou ocupavam posição de relevo nacional. Depois de abertos os trabalhos, Marinho Tinto, homem sem papas na língua, disse que estavam todos fartos de boatos e maledicências e havia que esclarecer tudo interrogando os perseguidos para dizerem de sua justiça. Dirigiu-se a um tal Videira e Costa que era há muito tempo o administrador de serviço.
— Então o Sr. tinha poderes para pôr em prática as medidas arbitrárias que tomou?
— Ó Sr. doutor, obviamente que sim. As atas estipulam tudo.
— Bem… O Sr. Manuel Dias Toureiro, que nos pode contar sobre aqueles negócios…
— Sr. doutor, eu não tenho nada a ver com isso. Esses negócios foram todos feitos por ele. E apontava o dedo para o tal Videira e Costa.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MILAGRE

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação





Passaste e eis que um sopro de magia
Passou tambem contigo e tudo encheu;
Teve mais brilho o brilho da alegria,
Tornou-se mais azul o azul do céu!

Na luz dessa manhã triste e sombria
Não sei quem tantas luzes acendeu!
No ar vibram murmúrios de poesia,
Um estranho milagre aconteceu!

Não sei o que em verdade se passou,
Como tudo num instante se mudou
Só porque tu passaste,meu amor!

Vejo tudo dif´rente e renovado…
E até na humildade do valado
Há pérolas de orvalho em cada flor!

Maria Celeste ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A Voz do Silêncio

Com este trabalho encerramos o Ciclo denominadoViolência sobre o ser humano” que temos vindo a desenvolver: agradecemos a todos os que connosco quiseram colaborar.


Os olhos desmedidamente abertos, um esgar de pavor, enrolada sobre si mesma, os pés quase tocando a boca e o olhar perdido do rafeiro acossado pelo bater da porta, ou por um passo forte que se adivinha e se ausenta.
Corria sentada...
Corria sentada, revirando a cabeça de um lado para o outro, à procura de alguma coisa, ou de alguém, ou de nada, ou com medo de ser notada, de ser encontrada, de ser achada.
Permanecia imóvel na soleira da porta, encostada à parede como se quisesse fugir para dentro dela e um turbilhão de medos acossava-a. O medo, sempre! Sem saber o que fazer, sem saber para onde ir ou onde ficar. O medo tornara-se um amigo presente, uma ideia de fugir e uma vontade de ficar, um querer esconder-se, um desejo de se dissolver numa nebulosa onde pudesse recomeçar: de novo!
Receava que a vissem, que não a vissem, que fosse notada, que ninguém a encontrasse no vão daquela escada, que alguém subisse ou que descesse… Receava viver e tinha medo de ter de morrer!
Se o sol aparecesse… não, melhor é o escuro da noite, quando as sombras vagueiam e os rostos se calam. E pedir ajuda estava fora de questão: a vergonha de dar a conhecer a cara magoada, as nódoas negras, o sangue escorrendo daquela ferida no peito, o cabelo desgrenhado, aquele pedaço que lhe fora arrancado…
Sabe-se impotente, acusa-se de tudo por que passam os seus filhos, julga-se responsável
E aquele silêncio...
pelo sofrimento deles. Inunda-a uma dor imensa, sem medida nem peso, sente que perdeu completamente a capacidade de reagir, de falar, de gritar, de se revoltar contra a vida em que se enredou e se envolveu nela, como um casulo se envolve na sua teia. E aquele silêncio que se impõe a si mesma e a impede de abrir a boca e gritar!
Os amigos, que sempre a avisaram, as crianças que continuavam lá em cima e que, indefesas, nem sabem o que fazer, a ansiedade de as ver, de as abraçar, de lhes sorrir mesmo na tristeza do seu olhar. O melhor mesmo era subir as escadas e voltar para aquela casa: talvez ele já estivesse a dormir, talvez se lhe desse um beijo, talvez se lhe fizesse aquela comida especial, talvez…

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A violência e a vida

Maria era muito jovem quando casou, enamorada e confiante. O João era meigo, gentil e prometia ser um bom marido. Ela queria sair de casa dos pais; o seu pai era bom homem mas bebia e em resultado disso batia e maltratava a mulher e os filhos. A mãe achava normal e sofria calada, mas Maria não entendia essa violência e queria uma vida melhor para si.
Casou e foi para uma pequena casa com o marido; ela trabalhava em costura e o João na fábrica.
Levou a primeira bofetada 
Depressa descobriu que o casamento afinal não era o que tinha pensado e desejado. Levou a primeira bofetada do marido três meses depois de ter casado, porque, para acabar um trabalho de costura, atrasou o jantar. O João pediu desculpa, que estava nervoso, o dia tinha corrido mal, não voltava a acontecer; ela aceitou e sentiu-se ainda um pouco culpada por ter provocado, com o seu atraso, aquela reação.
Aquela agressão foi a primeira de muitas. Estava grávida de seis meses quando entrou pela primeira vez no hospital, vítima de um espancamento que pôs em risco a sua gravidez. Por vergonha e medo negou que tivesse sido agredida e, depois de dois dias de internamento, teve alta para regressar a casa.
Não tinha ninguém a quem confiar o seu sofrimento, a sua dor, sentia-se desesperada, desamparada e com um medo horrível de chegar a casa.
Resolveu passar por casa da mãe.
Mãe, preciso de ajuda...
Chorou agarrada à mãe, pediu-lhe ajuda, não queria ficar em casa com o marido. Tinha medo e temia pela vida do filho que estava em risco. A mãe chorou com ela mas disse-lhe que o lugar dela era em casa, que não respondesse quando o marido estivesse a implicar, as mulheres sempre tiveram uma vida sofredora, que era assim mesmo.
— Mas mãe, ele não tem o direito de me bater. Só te peço que me deixes ficar aqui até eu resolver o que fazer.
— Não Maria, não pode ser, até era uma vergonha se deixasses a tua casa. O que queres ser? Uma mãe sem marido? Ter um filho sem pai? Tem paciência filha, mas aqui não podes ficar, nem o teu pai o permitia.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

COMEÇAR DE NOVO

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Hoje escreverei sobre a violência ao contrário. Dos heróis que dela se elevam. E há muitos por esse mundo fora, enchendo livros de histórias que nos tocam, inundando a televisão de imagens que nos emocionam, primeiro por pena, depois por raiva, e no fim por orgulho, porque são heróis e a violência que os chagou ficou lá atrás. Bravos, eles. Bravas, elas.
...violência também pode ser  um acto
solitário
Mas eu não conheço o mundo e não quero contar uma história criativa. Hoje quero ser a palavra prática e falar-vos dos heróis que tive a honra de conhecer, aprender, tocar e abraçar, sim, eu já abracei um herói - quem disse que o mundo não nos pertence?
Não sei se concordarão da minha opinião, mas violência também pode ser um acto solitário, involuntariamente sádico, sem que o agressor se aperceba à primeira vista que se inflige de dor: primeiro começa por precisar de um escape, e usa o seu corpo, depois a sua mente habitua-se passando ela a comandar as rédeas do seu corpo, e zás, já passou a vítima, já se violenta todos os dias, mais do que uma vez por dia, e aqui não há entidade, ou pessoa, que possa resolver este acto de violência antes da vontade do próprio agressor.
Como se prende a mente alheia?
Como se comanda a mente alheia?

sábado, 1 de fevereiro de 2014

OS HOMENS DE DANIELA - UMA HISTÓRIA QUASE REAL

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Daniela, jovem brasileira, morena e de cabeleira leonina, fora casada com Jair, durante 10 anos.
Natural de S. Paulo, era filha de portugueses, emigrados há vários anos no Brasil.
Daniela tinha conhecido Jair numa mercearia de bairro, perto de sua casa. Ele era o filho
onde vendiam bacalhau seco e salgado
único dos donos da loja onde vendiam, entre muitas coisas, produtos importados genuinamente portugueses, como o bacalhau seco e salgado, a morcela, o azeite,  o queijo da Serra e o vinho fino do Douro…
Sendo oriunda de uma modesta família, aos 18 anos, terminados os estudos liceais, Daniela pensou em começar a trabalhar, pois queria ter alguma autonomia financeira. Sonhava ser “balconista” ou “secretária”. Toda entusiasmada, começou a procurar trabalho em diversas lojas, escritórios e restaurantes. Não foi fácil. Mas foi na mercearia do Sr. Santos, pai de Jair, que conseguiu emprego como balconista, pois a anterior empregada tinha sido despedida. E o Sr. Santos, o patrão que entretanto enviuvara, já sentia alguma dificuldade  em tomar conta de tudo, apesar da ajuda do filho, que não quisera ser “engenheiro” ou “doutor” como o pai sonhava.
Daniela sentia medo
O Sr. Santos gostou dos modos cativantes da menina Daniela. Pensou que seria uma boa aposta contratá-la para ajudar no atendimento ao balcão. E Daniela aceitou as condições oferecidas. Jair, o filho, ocupar-se-ia da “escrita” e dos contactos com os fornecedores.
Passado pouco tempo, o patrão começou a assediar a nova empregada com propostas inconvenientes. Daniela, que ainda não conhecera homem, sentia medo. Medo, por várias razões. Principalmente por perder o emprego, pois considerava-se bem paga para aquilo que fazia. Já tinha sentido na pele a dificuldade em arranjar trabalho. E, além disso, gostava daquele contacto diário com a clientela. Alguns clientes tratavam-na carinhosamente por “Minina”.
Daniela, sempre afável, solícita e risonha para com toda a gente, já tinha feito aumentar a clientela e os rendimentos da mercearia.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Por falar em violência…

A sala, nova e generosamente iluminada pela luz do sol, franqueada por duas janelas rasgadas, bem podia ter sido um local acolhedor. 
... um fogão a lenha
A um canto, um fogão a lenha, oferecia-se para nos mimar com um pouco de calor nos invernos demasiado rigorosos para os nossos agasalhos tão singelos. Mas tudo à nossa volta era frio e impessoal. Na frente, sobre o quadro preto, as fotografias emolduradas de Oliveira Salazar e Américo Thomaz impunham-se aos nossos olhos indefesos. A meio da parede, entre os dois - que mais pareciam o bom e o mau ladrão - um Cristo agonizante, na cruz.
Era neste cenário que pontificava a D. Cândida. Cândida? Que nome desajustado! Confirma bem o caráter arbitrário do signo linguístico! A residir e a lecionar na aldeia há duas gerações, era vulgarmente apelidada de “a senhora velha”. Sem qualquer sentido pejorativo, esta designação, a um tempo, ingénua e rude, servia para a distinguir dos professores e professoras dos rapazes, sempre mais jovens, que nunca por lá permaneciam por muito tempo. 
Ninguém discordava dos seus
métodos repressivos
Comparada com os seus colegas, a “senhora velha”, de acordo com os parâmetros do povo, ganhava-lhes invariavelmente aos pontos - pela assiduidade e pontualidade, pelos resultados dos alunos, mais visíveis nos exames, onde, segundo dizia, nunca sofrera uma reprovação e o desempenho variava entre o Bom e o Excelente. Era considerada uma professora modelar, com uma autoridade que ninguém ousaria contestar. Ninguém dava mostras de discordar dos seus métodos repressivos, o que aumentava ainda mais a nossa fragilidade e vulnerabilidade perante ela.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Mulher do Mar

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Manhã cedo vais para a praia

No silêncio da praia
Ao cair da noite
A mulher vareira
Contempla o mar!
Fixa os olhos nas ondas
Que reflectem o brilho do luar!

Tua vida castigada
Entre ser mãe e vareira!
Tanta luta, tanto amor
Uma vida de canseira.

Tuas noites mal dormidas
Envoltas em sonhos de aflição!
Manhã cedo, vais para a praia
Para vender teu pregão!

Oh, mar cruel!
Porque mataste quem amo?
Se me dás pão para a vida
Não sejas tão desumano!

Mulher que a força da vida
Fez dela um exemplo
De luta e dedicação!
Enxuga tuas doces lágrimas
O mar pedirá perdão!

Isabel Maria ©2014,Aveiro,Portugal
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