A procissão - Angeja, 1973 |
Está quase chegando à
Igreja, de passagem pela Praça, centro cívico da Vila, onde fez mais uma pausa,
para os devotos colocarem uma nota - de valor pecuniário, com um alfinete sobre
uma das fitas que esticadas descem das pontas do manto da padroeira até à base
do andor, - passando de seguida por baixo do mesmo, como complemento da
promessa; ao lado, de opa branca como as demais, que as vermelhas já passaram com
os estandartes e pendões, um mordomo de bandeja na mão estende-a aos que a veem
passar, juntando mais umas moedas que complementarão o estendal de notas, das
mais variadas, de pequeno e grande valor, nacionais e estrangeiras, estas
daqueles que, emigrados, regressaram para férias. A Banda de Música da Vila em
festa, está ainda tocando a sua vez, depois de o ter feito a Banda convidada
vinda de fora, como tocando estão os sinos da Igreja; colchas e colgaduras qual
delas a mais vistosa pendem das janelas, e no ar que se respira, há um cheiro a
carne assada - matou-se a cabra para a festa (1) - saindo ele também pelas janelas das cozinhas, misturando-se
com o cheiro que evola, da erva doce que atapeta a rua - escorregadia de
paralelipípedos de granito polido - esmagada pelos calcantes de todo este
cortejo, até ao pálio que cobre o Pároco local, e um padre convidado que veio
para a missa; agora, também um cheiro a incenso, saído do turíbulo fumegante que
um acólito transporta. A Banda de fora acentua o ritmo de marcha, com o tré, tré, tré, trr..é, na tarola do
músico ao lado do que toca o bombo, e este a dado passo, dá dois toques na pele
esticada e redonda, que outrora também de cabra foi, e a música irrompe uma vez
mais; atrás o povo caminha, mais mulheres que homens, e muitas destas vão
descalças, algumas vão de costas para a frente, agarradas por uma de cada lado,
em penitência como que contando os passos, que a Igreja está mesmo ali à vista,
e já estralejam foguetes.
(1) Aqui não posso
esquecer o desfile do rebanho, chocalhando pelas ruas ainda poeirentas da vila,
em semana de festa, fins dos anos cinquenta, para serem vendidas porta a porta,
e mortas para o almoço do domingo de festa.
Nota: Texto escrito pelo autor em 19 de Julho de 2011
Manuel Oliveira Costa©2014,Aveiro,Portugal
Durante a divulgação do livro Memórias a Mil Vozes, uma narrativa dos autores deste blogue, foi-nos possível contactar com um grupo de amigos que trocaram memórias dos tempos em que as histórias não passavam na televisão e os professores iam dar aulas, de comboio, a Cacia. Nessa partilha de memórias - que queremos seja abrangente - encontrámos o autor deste trabalho que manifestou vontade de colaborar neste blogue. E foi com muita surpresa que nos deliciámos com um retrato minucioso que nos traz sons, sabores, cores e cheiros que, alojados na arca da nossa memória, se reacendem com o colorido das suas palavras. Obrigada, Manuel, ficamos à espera que nos volte a surpreender.
ResponderEliminarE os professores depois de saírem do comboio ainda andavam a pé cerca de dois quilómetros para chegarem à escola. Ao fim dia, a mesma caminhada mas em sentido contrário. E agora chega-nos pela mão de Manuel Oliveira Costa as memórias de uma procissão do seu tempo de jovem. Apetece-me dizer “Memórias a Mil Vozes” mais uma.
EliminarObrigada Manuel e gostava de ver mais memórias suas por aqui.
Texto com tal poder evocativo que põe todos os sentidos despertos para as cores, os sons, os cheiros e os paladares que sempre acontecem em dia de festa.
ResponderEliminar"A procissão" conduziu-me a grande velocidade ao meu tempo de menino em que compassadamente seguia orgulhoso com um estandarte nas mãos que procurava exibir o mais alto possível.
ResponderEliminar"Nao ha na aldeia nada mais bonito || Que estes passeios de Nosso Senhor" Ao ler este texto, consegui ouvir Joao Villaret a dizer o poema "A Procissao" ao mesmo tempo que senti ainda o desconforto das asas e da coroa do meu fato de Anjo. Memorias que se entrelacam e se revivem atraves da magia das palavras. Obrigada, Manuel.
ResponderEliminarComo diz o Zé Luís, este texto transportou- me tempos atrás, muito atrás em que os rebanhos eram levados para a casa dum lavrador meu vizinho: eram mortos nas vésperas da festa e assados nos fornos a lenha, de cada um. Como cheirava bem a quem passava.Que saudade me deu.
ResponderEliminarUma agradável surpresa que sabe bem encontrar, ao dobrar da esquina, quando se vira para Cacia. Fez-me recordar aquele poema lindíssimo de António Lopes Ribeiro imortalizado pelo nosso grande João Villaret:
ResponderEliminarTocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
E quem quiser apreciar o resto basta só ir a
http://natura.di.uminho.pt/~jj/musica/html/vilaret-procissao.html