quarta-feira, 5 de março de 2014

É muito bom ouvir isso.

Ainda não eram seis da manhã e a porta do curral das vacas rangia. obedecendo ao empurrão daquele homem que tão cedo começava o dia. Lá dentro, duas vacas que reagiam com um olhar sereno de quem não se surpreende e pareciam já esperar a visita daquele amigo que, antes de ele comer, lhes ia sempre deitar qualquer coisa na manjedoura. No meio de ambas, falava-lhes e acariciava uma e outra com umas festas na barbela e umas pancaditas carinhosas no dorso. 
Agradeciam com umas lambedelas que, esperavam, estimulassem o dono a servir-lhes o mimo matinal, normalmente um pouco de milharada que elas tanto apreciavam. Tratadas as vacas já podia ir comer ele para, de seguida, iniciar a faina de um dia de trabalho que agora lhe era bem mais pesado do que há uns anos atrás. Pequeno agricultor fazia algumas terras herdadas, outras de renda e uma muito especial, a “regadinha”, fruto do roubado ao estômago e aos luxos proibidos de quem neles nem sequer poderia pensar. Aqueles animais, dois porcos que criavam todos os anos, um para vender e outro para matar para casa, juntamente com o resultado do amanho das terras, perfaziam a totalidade dos parcos rendimentos daquela família. As vacas, uma de leite e outra de trabalho, eram peças importantes desta microeconomia. A venda do leite e de um ou dois bezerritos por ano eram essenciais ao regular funcionamento da engrenagem que dava sustento a uma família de quatro pessoas. As vacas, sendo da mesma espécie, eram de raças diferentes e, coabitando o mesmo estábulo, isso fazia-as sentir o que de diferente era a vida delas. A frísia, outrora conhecida por leiteira, era ali uma verdadeira princesa a quem tudo serviam sem fazer rigorosamente nada, limitando-se a comer do bom e do melhor. Esta era a opinião da de trabalho, outrora, amarela e agora marinhoa. A frísia, entretanto, observava: 
— És uma ciumenta… Ainda não percebeste que eu é que dou dinheiro a esta casa? Tu serves para trabalhar e pouco mais…
— “Para trabalhar e pouco mais”. Sou eu que todos os dias carrego com a erva que tu hás-de comer. Ingrata é o que tu és, nem sequer sabes agradecer…
— Olha, eu não tenho culpa é que tu não entendas nada. Eu estou sempre aqui fechada e o que querem é que eu passe a vida a comer para depois me esvair em leite.
— Se tivesses vergonha nem o dizias. Só queres é massagens no úbere? Aqui, na marinhoa, ninguém põe as mãos. Nos meus tetos só cá mexem os meus filhos e por isso mesmo são sempre esbeltos e desenxovalhados. Não são como os teus, uns enfezadinhos. E sabes que mais, tomaras tu que o teu leitito tivesse a importância da carne marinhoa. Fazemos parte de uma DOP. Imaginas, por ventura, o que isso é?
— Uma Denominação de Origem Protegida? Ó triste vaca, contentas-te com pouco… O meu “leitito” vai todo para Leite Pasteurizado e para os iogurtes de melhor qualidade.
— Só sabes urrar… Qualquer coisinha ficas logo doente. Em mim, nunca veterinário nenhum
me pôs a mão em cima. E eu faço carne óptima, não sou nenhuma escanzelada. Passo a vida a trabalhar: Ela é lavrar, ela é gradar, semear, carregar lenha e trazer ervinha fresca à princesa…
— O teu problema é só inveja. Sendo preta e com diversas malhas brancas ao longo de todo o meu corpo fazem de mim uma vaca atraente e isso, amarela, tu não perdoas.
— Amarela e com muita honra, mas é bem melhor se dobrares a língua e disseres marinhoa. Agora também és cegueta, não vês estes lindos brincos? Vê lá se tens uns iguais? Querias… Estes são especiais só para nós. Quanto a beleza, ó filha não me queixo, as pessoas fartam-se de gabar o meu traseiro, o meu dorso e a beleza da minha cabeça com um focinho que tomaras tu…
— Marinhoa, cala-te. Vem aí o nosso dono e ele, bem sabes… Só quer que sejamos amigas.
— Não vem para aqui. Deve andar ali ao lado a tratar daqueles suínos mal cheirosos. Que horror… Quando é que nós conseguíamos viver naquela estrebaria? Cá a marinhoa nem pensar e lá nisso acho que contigo devia ser o mesmo.
— Claro que sim. Se tu és asseada, está bem de ver que eu não sou menos.
— A frisiazinha não é menos? Ora aí está. Tu sabes lá o que é trabalhar? E depois, não queres que te chame princesa… Vamos é mudar de conversa antes que o Sr. Manel ouça alguma coisa. Ele é muito nosso amigo e merece tudo de bom.
— Lá nisso tens toda a razão. E eu que o diga. Quando a tua mãe foi para o Matadouro, tu ainda eras uma vitelinha muito pequenita, mas vi bem o que ele sofreu. Para te dizer a verdade, até a mim me custou muito. Aquele homem andava com um olhar tão triste, tão triste que até parecia terra abandonada sem ser amanhada.
— Imagino… Deve ter sido como quando chega a altura de vender os nossos filhos… Olha a conversa para onde havia de dar? Disseste aí uma coisa que me ficou cá no goto… Então, princesa, eras assim tão amiga da minha mãe?
— Ó marinhoa, posso ser tudo o que tu quiseres e discutir contigo a toda a hora, mas não é impunemente que vivemos debaixo do mesmo teto, ao lado uma da outra, durante tanto tempo.

— A minha alma está parva. Quem havia de pensar que esta princesa era capaz de ser amiga de alguém? Mas, sabes o que te digo? Mais vale tarde do que nunca. É muito bom ouvir isso.

José Luís Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Maravilha de texto Zé Luís. “É muito bom ouvir isso” – é muito bom ler isto de tão real que parece ser. Se os humanos fossem assim, o mundo seria muito melhor.
    Obrigada por este bocadinho.

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  2. Texto muito interessante pelo profundo conhecimento que revela da vida dos agricultores de há umas décadas: a aquisição de novas terras como um dos principais objetivos, a austeridade permanente, um dia a dia marcado pelo trabalho árduo, a relação tão próxima com os animais... Animais que aqui ganham voz e revelam os seus sentimentos num curioso diálogo. Gostei também de ficar a conhecer os termos técnicos para a raça das vacas. Conhecia-as por "vaca amarela" ou "vaca de trabalho" e "vaca leiteira" ou "turina".

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  3. Uma troca de pontos de vista , uma consciência profunda da diferença, um apontar de pequenos azedumes, o acerto de convergências, uma conversa como todas deviam ser: com frutos. É uma história com a grande virtude de lembrar aos homens o valor da frontalidade e da amizade.

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  4. Quantas vezes não gostaríamos de, como estes animais, concluir que "é muito bom ouvir isso!" É que a indiferença com que nos cruzamos na rua não nos permite sequer pensar que, ao nosso lado, circulam pessoas, iguais a nós, a quem as desigualdades se colaram, como um estigma que não se consegue arrancar,
    Este trabalho fala para além dos seus personagens e transporta-nos para o nosso lado e para um olhar mais atento que nos permite ver que está lá alguém.

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  5. Gostei muito deste texto, Zé Luís. Ora se todos os seres humanos tivessem a amizade e a ligação que essas vacas, o mundo era melhor.

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