Ainda
não eram seis da manhã e a porta do curral das vacas rangia. obedecendo ao
empurrão daquele homem que tão cedo começava o dia. Lá dentro, duas vacas que
reagiam com um olhar sereno de quem não se surpreende e pareciam já esperar a
visita daquele amigo que, antes de ele comer, lhes ia sempre deitar qualquer
coisa na manjedoura. No meio de ambas, falava-lhes e acariciava uma e outra com
umas festas na barbela e umas pancaditas carinhosas no dorso.
Agradeciam
com umas lambedelas que, esperavam, estimulassem o dono a servir-lhes o mimo
matinal, normalmente um pouco de milharada que elas tanto apreciavam. Tratadas
as vacas já podia ir comer ele para, de seguida, iniciar a faina de um dia de
trabalho que agora lhe era bem mais pesado do que há uns anos atrás. Pequeno
agricultor fazia algumas terras herdadas, outras de renda e uma muito especial,
a “regadinha”, fruto do roubado ao estômago e aos luxos proibidos de quem neles
nem sequer poderia pensar. Aqueles animais, dois porcos que criavam todos os
anos, um para vender e outro para matar para casa, juntamente com o resultado
do amanho das terras, perfaziam a totalidade dos parcos rendimentos daquela
família. As vacas, uma de leite e outra de trabalho, eram peças importantes
desta microeconomia. A venda do leite e de um ou dois bezerritos por ano eram
essenciais ao regular funcionamento da engrenagem que dava sustento a uma
família de quatro pessoas. As vacas, sendo da mesma espécie, eram de raças
diferentes e, coabitando o mesmo estábulo, isso fazia-as
sentir o que de diferente era a vida delas. A frísia, outrora conhecida por
leiteira, era ali uma verdadeira princesa a quem tudo serviam sem fazer
rigorosamente nada, limitando-se a comer do bom e do melhor. Esta era a opinião
da de trabalho, outrora, amarela e agora marinhoa. A frísia, entretanto, observava:
— És
uma ciumenta… Ainda não percebeste que eu é que dou dinheiro a esta casa? Tu
serves para trabalhar e pouco mais…
—
“Para trabalhar e pouco mais”. Sou eu que todos os dias carrego com a erva que
tu hás-de comer. Ingrata é o que tu és, nem sequer sabes agradecer…
—
Olha, eu não tenho culpa é que tu não entendas nada. Eu estou sempre aqui
fechada e o que querem é que eu passe a vida a comer para depois me esvair em
leite.
— Se
tivesses vergonha nem o dizias. Só queres é massagens no úbere? Aqui, na
marinhoa, ninguém põe as mãos. Nos meus tetos só cá mexem os meus filhos e por
isso mesmo são sempre esbeltos e desenxovalhados. Não são como os teus, uns enfezadinhos.
E sabes que mais, tomaras tu que o teu leitito tivesse a importância da carne
marinhoa. Fazemos parte de uma DOP. Imaginas, por ventura, o que isso é?
—
Uma Denominação de Origem Protegida? Ó triste vaca, contentas-te com pouco… O
meu “leitito” vai todo para Leite Pasteurizado e para os iogurtes de melhor
qualidade.
— Só
sabes urrar… Qualquer coisinha ficas logo doente. Em mim, nunca veterinário
nenhum
me pôs a mão em cima. E eu faço carne óptima, não
sou nenhuma escanzelada. Passo a vida a trabalhar: Ela é lavrar, ela é gradar,
semear, carregar lenha e trazer ervinha fresca à princesa…
— O
teu problema é só inveja. Sendo preta e com diversas malhas brancas ao longo de
todo o meu corpo fazem de mim uma vaca atraente e isso, amarela, tu não
perdoas.
—
Amarela e com muita honra, mas é bem melhor se dobrares a língua e disseres
marinhoa. Agora também és cegueta, não vês estes lindos brincos? Vê lá se tens
uns iguais? Querias… Estes são especiais só para nós. Quanto a beleza, ó filha
não me queixo, as pessoas fartam-se de gabar o meu traseiro, o meu dorso e a
beleza da minha cabeça com um focinho que tomaras tu…
—
Marinhoa, cala-te. Vem aí o nosso dono e ele, bem sabes… Só quer que sejamos
amigas.
—
Não vem para aqui. Deve andar ali ao lado a tratar daqueles suínos mal
cheirosos. Que horror… Quando é que nós conseguíamos viver naquela estrebaria?
Cá a marinhoa nem pensar e lá nisso acho que contigo devia ser o mesmo.
—
Claro que sim. Se tu és asseada, está bem de ver que eu não sou menos.
— A
frisiazinha não é menos? Ora aí está. Tu sabes lá o que é trabalhar? E depois,
não queres que te chame princesa… Vamos é mudar de conversa antes que o Sr.
Manel ouça alguma coisa. Ele é muito nosso amigo e merece tudo de bom.
— Lá
nisso tens toda a razão. E eu que o diga. Quando a tua mãe foi para o
Matadouro, tu ainda eras uma vitelinha muito pequenita, mas vi bem o que ele
sofreu. Para te dizer a verdade, até a mim me custou muito. Aquele homem andava
com um olhar tão triste, tão triste que até parecia terra abandonada sem ser
amanhada.
—
Imagino… Deve ter sido como quando chega a altura de vender os nossos filhos…
Olha a conversa para onde havia de dar? Disseste aí uma coisa que me ficou cá
no goto… Então, princesa, eras assim tão amiga da minha mãe?
— Ó
marinhoa, posso ser tudo o que tu quiseres e discutir contigo a toda a hora,
mas não é impunemente que vivemos debaixo do mesmo teto, ao lado uma da outra,
durante tanto tempo.
— A
minha alma está parva. Quem havia de pensar que esta princesa era capaz de ser
amiga de alguém? Mas, sabes o que te digo? Mais vale tarde do que nunca. É
muito bom ouvir isso.
José Luís Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Maravilha de texto Zé Luís. “É muito bom ouvir isso” – é muito bom ler isto de tão real que parece ser. Se os humanos fossem assim, o mundo seria muito melhor.
ResponderEliminarObrigada por este bocadinho.
Texto muito interessante pelo profundo conhecimento que revela da vida dos agricultores de há umas décadas: a aquisição de novas terras como um dos principais objetivos, a austeridade permanente, um dia a dia marcado pelo trabalho árduo, a relação tão próxima com os animais... Animais que aqui ganham voz e revelam os seus sentimentos num curioso diálogo. Gostei também de ficar a conhecer os termos técnicos para a raça das vacas. Conhecia-as por "vaca amarela" ou "vaca de trabalho" e "vaca leiteira" ou "turina".
ResponderEliminarUma troca de pontos de vista , uma consciência profunda da diferença, um apontar de pequenos azedumes, o acerto de convergências, uma conversa como todas deviam ser: com frutos. É uma história com a grande virtude de lembrar aos homens o valor da frontalidade e da amizade.
ResponderEliminarQuantas vezes não gostaríamos de, como estes animais, concluir que "é muito bom ouvir isso!" É que a indiferença com que nos cruzamos na rua não nos permite sequer pensar que, ao nosso lado, circulam pessoas, iguais a nós, a quem as desigualdades se colaram, como um estigma que não se consegue arrancar,
ResponderEliminarEste trabalho fala para além dos seus personagens e transporta-nos para o nosso lado e para um olhar mais atento que nos permite ver que está lá alguém.
Gostei muito deste texto, Zé Luís. Ora se todos os seres humanos tivessem a amizade e a ligação que essas vacas, o mundo era melhor.
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